O caso Agamben expandido. Artigo de Sergio Villalobos-Ruminott

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15 Mai 2020

“Em outras palavras, essa animosidade contra as visões de Agamben sobre a pandemia não expressa uma simples discordância, mas a reivindicação de uma disputa capaz de desacreditar na raiz um nome associado a um pensamento que circula, talvez de maneira excessiva, nas feiras intelectuais e conferências acadêmicas nos últimos anos”, escreve Sergio Villalobos-Ruminott, professor na Universidade de Michigan, PhD na Universidade de Pittsburgh (2003), em artigo publicado por Ficción de la Razón, 28-04-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Alguns dos livros escritos por Villalobos-Ruminott são "Soberanías en suspenso. Imaginación y violencia en América Latina" (2013); "Heterografías de la violencia. Historia Nihilismo Destrucción" (2016); "La desarticulación. Epocalidad, hegemonía e historicidad" (2019).

 

Eis o artigo.

 

Não é que eu tenha um gosto especial pela polêmica. Porém, já que estamos nisto, quero advertir que escrevo essas notas como reação, sem raiva, nem segundas intenções, tanto às séries de intervenções de Giorgio Agamben em jornais de duvidosa proveniência na península itálica, como a séries de respostas que seus textos não deixam de produzir em um público que se já não responde à noção kantiana de publicidade burguesa, existe aparentemente na virtualidade não menos real das redes sociais. Neste sentido, basta que o italiano publique algumas opiniões para que estas tenham uma interessante ressonância no nível das redes, permitindo demarcar as posições em um confuso universo virtual. Como um Moisés paranoico diante da infinita sofisticação do biopoder, Agamben divide as águas do Facebook para separar os filisteus dos crentes, convidando-nos para uma jornada que passa pela confirmação apodítica de suas teses centrais.

Segundo ele, estaríamos encalhados em um estado de exceção já pré-configurado desde as próprias origens da política ocidental. A pandemia de covid-19 seria um dispositivo, como o telefone, orientado a controlar a existência, suprimindo a condição imprevisível da experiência. Com um tom oportuno e grave, Agamben parece diminuir a relevância das medidas tomadas pelos estados nacionais, denunciando sua sombria vocação totalitária. Certamente, além de sua incomum coincidência com a agenda libertária de um neoliberalismo desesperado diante da desaceleração de seus processos de acumulação, deve-se perguntar não sobre a relevância de seus estudos limitados para a pandemia atual, mas sobre as teses fundadoras que nos levam a conceber essa situação no horizonte imune de uma ordem biopolítica que parece não ter fissuras. Não é à toa que esse trabalho sólido de anos, e que não se refere apenas ao projeto agora completo de Homo sacer, esteve no centro de vários debates contemporâneos, para bem ou para mal.

No entanto, o que impressiona não é somente a ressonância que alcançaram seus juízos e prognósticos atuais, mas sim o rechaço generalizado que esses geram. É como se muita gente estivesse esperando o momento preciso para encarar seu desmerecido prestígio, suas leituras tendenciosas, seu protagonismo sem sentido. Em vez de confrontar o problema no dom de sua complexidade, hoje em dia pode se ler facilmente uma série de desqualificações que passam por desacreditar os meios nos quais o italiano publica, seu uso suspeito das estatísticas, seu prestígio duvidoso na academia norte-americana, sua condição de filósofo midiático, e uma série bastante interessante de argumentos ad-hominem.

O que pode ser feito frente a isso? Se não houvesse nada em jogo, talvez o melhor seria se unir à alegria ébria do consenso midiático e crucificar Agamben por sua paranoica leitura do presente. Depois de tudo, na perfeição do negócio midiático, tudo serve, quanto mais duro trabalhamos, mais se capitaliza sua “signature” e aumenta a rentabilidade de suas ações. Mais além das furiosas invectivas, seu nome segue circulando como um trade mark reconhecido.

No entanto, tenho a impressão de que o que está em jogo aqui é algo substantivo e vale a pena nos determos aqui. Em outras palavras, essa animosidade contra as visões de Agamben sobre a pandemia não expressa uma simples discordância, mas a reivindicação de uma disputa capaz de desacreditar na raiz um nome associado a um pensamento que circula, talvez de maneira excessiva, nas feiras intelectuais e conferências acadêmicas nos últimos anos. Passo a apontar algumas dimensões que de maneira alguma querem ser argumentativas, mas apenas indicativas do que realmente estaria em jogo no caso Agamben:

 

1.

 

Um confronto prolongado com Agamben não precisa ser, necessariamente, uma refutação ou uma negação, mas uma “solicitação” sistemática e rigorosa do que ele vem nos dizendo há anos. De sua leitura schmittiana de Benjamin, de sua redução singular da desconstrução à hermenêutica apolítica, de sua re-teologização da política, de sua reflexão sobre o franciscanismo da pobreza, etc., mas não para indicar qualquer erro (uma questão própria do discurso filosófico da universidade), mas para abalar suas decisões e conclusões. Tão importante quanto o desenvolvimento dessa questão é entender que ela não pode ser simplesmente uma crítica no sentido da universidade moderna.

1.1

Observe, portanto, que não se trata de desacreditar as opiniões do Facebook como “insuficientemente acadêmicas”, fugazes ou leves, mas, pelo contrário, de mostrá-las em sua profunda co-pertença ao discurso universitário moderno, como seu exagero e seu desvelar, um lugar onde estão expostas as mediações burocráticas da universidade, permitindo perceber a mecânica de uma operação crítica baseada no julgamento e no descarte que marcou a tradição crítica moderna, sujeitando-a à atuação de um sujeito racional que, à distância, avalia objetivamente. O fato de o Facebook poder ser lido como parte do aparato universitário moderno confirma, de uma forma ou de outra, não apenas os avisos lacanianos sobre as transformações do discurso do mestre, mas a necessidade de pensar na “lógica” do comentário (Averroes) mais além das exigências cartesianas de verdade e dúvida metódica, questão da qual Agamben está, é claro, bem ciente.

 

2.

 

Ao mesmo tempo, também seria interessante perguntar sobre a natureza sintomática não apenas de suas limitadas intervenções à crise da covid-19, mas também das respostas quase compulsivas que tentam refutá-lo, destituí-lo, desacreditá-lo e contestar um suposto local de saber, uma certa posicionalidade discursiva que permanece totalmente presa em uma estrutura de significado baseada em princípios, para a qual o problema com a filosofia de Agamben não é sua tentativa de determinar demais a experiência (de um dispositivo infalível por abstrato), mas o fato de que a “sua” filosofia não seria a mais adequada para nos permitir entender o presente, como se o problema fosse resolvido com a filosofia adequada para o nosso tempo, sem questionar sua própria posicionalidade arqueo-teleológica, arcôntica e de princípios. Afinal, sem esse questionamento anárquico, as disputas são reduzidas a lutas partidárias, a novas políticas de amizade.

 

2.1

 

Portanto, não se trata mais de encontrar “outro princípio”, mas de desatar o que a palavra crítica ainda nos promete desde a sua organização inicial, que organizou não tanto o pensamento, mas as narrativas da universidade encarregadas de produzir sua história. Se o interrogatório derridiano do pensamento heideggeriano passa pela mesma solicitação da história do ser como uma “narrativa” que é sempre problemática, seja nos termos de uma história da metafísica ocidental ou nos termos de sua organização época-principial, articulada no plexo dos onto-teo-antropo-logos, o certo é que a solicitação derridiana não passa por um simples descarte, refutação ou rejeição, nem aspira à promoção de uma organização de princípio alternativa. A partir daqui, então, além das fúrias geradas pelas opiniões de Agamben, a questão seria: até que ponto sua genealogia biopolítica da racionalidade ocidental ainda está ancorada em uma narrativa “tácita”, mas altamente operativa, relativa à organização da história teológico-política do Ocidente? Além disso, se essa narrativa “não dita” vier de Heidegger ou Carl Schmitt. Por outro lado, até que ponto no próprio pensamento agambeniano existem elementos que desoperam essa narrativa, mostrando-a como o simples remanescente de uma linguagem histórica destruída, como as peças de um mapa imperial abandonado no deserto, segundo o famoso conto de Borges sobre cartografia?

 

3.

 

Parece então que uma confrontação reflexiva com Agamben não poderia se limitar à impertinência de seus textos limitados à covid-19, nem à denúncia dos jornais em que esses textos apareceram. Me atreveria a dizer que tudo isso é secundário, quase irrelevante, a menos que sejamos capazes de mostrá-los como consequência de decisões complexas passadas em um momento no qual seu pensamento alcançou seu maior fulgor e, pelo mesmo, sua maior cegueira. E é ali, me parece, onde haveria que levar o assunto, à própria questão da soberania, do poder e da experiência, que Jacques Derrida apontou como instância central onde pensar a operação agambeniana. Precisamente porque o que está em jogo nesse confronto não é a mera formulação paranoica de uma hipótese policial baseada no ressentimento de Agamben com Derrida, ou do suposto desdém ou ódio de Derrida por Agamben, mas sim a questão da soberania, da violência e da política.

 

3.1

 

Pelo mesmo motivo, não deixa de impressionar que a lógica da rejeição e da denúncia impere no lugar de uma verdadeira confrontação com um pensamento fundamental da soberania e do direito, da força e da política. Não somente porque Agamben foi capaz de articular uma determinada narrativa sobre a tradição do biopoder ocidental, acentuando de uma maneira específica o pensamento de Arendt, Heidegger, Schmitt, Benjamin e Foucault; mas sim porque em sua acentuação se faz a composição de um verossímil epocal que, mais além de sua eficiência e de sua pertinência, sofreu um tipo de hipertrofia (segundo a acertada caracterização de Karmy), graças a seus usos e abusos pelo complexo industrial-editorial-universitário contemporâneo, aquele que marca o ritmo das publicações, leituras e discussões em um mundo quase totalmente universitarizado.

 

4

 

Minha hipótese de leitura então indica que na tensão entre as formas de pensar a questão da soberania, a violência e o poder, em Derrida e Agamben, faz-se a recepção, crítica ou não, do pensamento heideggeriano e a própria questão benjaminiana da violência divina. Porém o que se joga nesse jogo, se assim podemos dizer, não é tanto a legitimidade hermenêutica ou filológica de um pensamento baseado na recuperação-traição de seus antecedentes imediatos, mas sim a possibilidade de elaborar um pensamento crítico da facticidade que não se satisfaz com sua popularidade midiática, nem com sua posicionalidade arcôntica, auratizada e autorizante. Me inclino a pensar que, ao contrário, somente conseguiremos habitar na estrela aurática de uma publicidade virtual e partidária.

 

4.1

 

De fato, sem tal confrontação teremos de pensar o debate entre Derrida e Agamben não como o encontro de duas formas diferentes de problematizar a tradição e nossa relação com ela, mas sim como uma batalha entre duas marcas comerciais; uma batalha cuidadosamente configurada pelo complexo industrial-editorial-universitário, que ao modo das disputas entre consumidores de Coca-Cola e Pepsi, não é mais que o simulacro de uma retórica orientada a autoabastecer a lógica da produção e a circulação da mercadoria. Confrontar realmente o caso Agamben, considerando a complexidade de seu trabalho, implica, no mínimo, questionar a intelligentsia universitária identificada com a “filosofia” sem mais, como se a própria filosofia, agora sem aspas, não estivesse sempre habitada por um desassossego constitutivo relativo às ordens do currículo e da universidade profissional ou espiritual moderna.

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Claro, não seria menos irônico descobrir que o mesmo Agamben se contagiou, sem saber, com o vírus. Espero que não, e claro, mais além das diferenças com suas análises e, inclusive, da insatisfação que se experimenta ao lê-las, o certo é que a própria suspensão da “normalidade” imposta pela pandemia nos permite ver até que ponto as tomadas de posição e as tentativas de debate no Facebook, longe de serem meras questões anedóticas, são hoje mais do que nunca, uma nova encarnação do espírito universitário do juízo e da crítica. Também é preciso pensar nisso!

 

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