13 Outubro 2019
Há de ser fundamentalmente honesto para figurar entre os filósofos vivos mais importantes e escrever um último livro cujas primeiras páginas figuras a anedota de um psicanalista que confessa os limites de sua compreensão do mundo. Há que ser imensamente humano e comedido para escrever, em outro livro final, sou “um espectro inelutável que nunca aprendeu a viver”. Quando ambos piscares pertencem a um filósofo, então podemos antecipar que a experiência da leitura será uma revelação subsversiva. Esse autor é Jacques Derrida (1930-2004), um dos filósofos franceses mais impactantes do século XX e XXI.
O artigo é de Eduardo Febbro, publicado por Página/12, 11-10-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Jacques Derrida. Foto: Página/12
Sua obra não está em nada manchado de filosofia moral, de conselhos caseiros, compêndios políticos, doutrinas ideológicas, esquivas psicanalíticas ou divagações sem estrutura. Pelo contrário, Derrida pertence a essa geração de pensadores franceses que, junto a Michel Foucault, Roland Barthes, Emmanuel Levinas, Claude Lévi-Strauss ou Gilles Deleuze, irrompeu com ou uma originalidade e um poder de crítica radical a partir dos anos 1960.
Sua caneta (no sentido mais puro e primitivo do termo, o mais inspirado) é de uma beleza excitante. Os classificadores catalogaram entre as figuras centrais do pós-estruturalismo e a filosofia pós-moderna. No entanto, recorrer a ambos catálogos carece de interesse. Entre Derrida e o caixão onde se pôs meio uma obra totêmica, profusa e polifônica. Pudesse ser pinto, pianista ou fotógrafo. Foi tudo isso junto, no sentido de que um dos seus biógrafos, Benoît Peeters, o retrata como “o filósofo-artista”.
Sua esmagadora modéstia existencial inspira essa linhas, cujo propósito não consiste em um breve tratado de filosofia, em um árduo elogio acadêmico ou uma análise preconceituosa de sua obra. Se trata de devolver a descura de uma presença humana e a frondosa herança de uma obra que semeou um extenso campo de objeções a nosso instante contemporâneo antes mesmo de que esse se disparasse com a potência com que reina hoje. Prova disso, essa citação que parece escrita ontem: “As produções de massa que inundam a imprensa e a edição não formam os leitores, mas sim supõem de maneira fantasmagórica e primária a existência de um leitor já programado. De tal forma que estas produções terminam por formatar esse destinatário medíocre que postularam por adiantado”.
A nefasta empresa de colonização mental e cultural cabe nessas frases: a doença invasora de Game of Thrones, os Vingadores, a netflixdominação, o cinema contaminado pela pura sensibilidade norte-americana e todos os canais pelos quais o liberalismo penetra nas redes sociais bastam como prova de sua pertinência. Jacques Derrida foi o criptógrafo que desnudou o código mecânico de muitos sistemas e, ao mesmo tempo, um homem sem paz. Precisamente, na introdução de sua biografia Benoît Peeters anota que “escrever a vida de Jacques Derrida é contar a história de um judeu da Argélia, excluído da escola aos 12 anos (foi expulso pelas leis antissemitas decretadas na França durante a Segunda Guerra Mundial), que se converte no filósofo francês mais traduzido no mundo, é a história de um homem frágil e atormentado”.
A distância entre esse homem intimamente esmagado, sua obra límpida e seus compromissos lúcidos e firmes é considerável. Em ação, Derrida era um hipermoderno antes do tempo. Seus compromissos políticos incluíam oposição ao apartheid e a defesa de Nelson Mandela, apoio a imigrantes ilegais, casamento entre pessoas do mesmo sexo, contra a repressão dos regimes comunistas e contra tudo o que poderia manchar a igualdade ou a liberdade. Seu conceito mais controverso, "desconstrução", teve uma enorme influência muito, muito além da esfera filosófica. Foi e é um suporte teórico fundamental do feminismo, estudos sobre pós-colonialismo, crítica literária, direito e até arquitetura.
Hoje, o conceito de desconstrução pode parecer um ataque. Fora dos direitos extremos, ninguém está muito disposto a desconstruir nada, muito menos aceitar como as manipulações em massa funcionam (internet, redes sociais, tecno-consumo) e agir em conformidade (desconstruí-las). Jacques Derrida postulou-o com um estilo próprio, no qual ele sabia combinar filosofia e literatura de uma maneira misteriosa. Abordar os arcanos da desconstrução não requer um esforço matemático. Por isso, permitirei uma digressão popular (os acadêmicos serão escandalizados). Quando criança, Jacques Derrida queria ser um jogador de futebol profissional. O futebol é um jogo organizado por regras e por armadilhas. A desconstrução derridiana é equivalente a desconstruir as regras e as armadilhas e revelar que há algo não dito entre elas que faz parte da construção. Desconstruir não significa ser contra (futebol, filosofia, etc.) ou destruir, mas mostrar o que é implicitamente circulado e não percebido para, então, ver quais são as suposições e, consequentemente, expandir as perspectivas. Com esse método, Derrida "decompôs" as oposições binárias em vigor em toda a filosofia ocidental de Platão: fora/dentro, escrita/palavra, homem/animal, essência/aparência, etc. Derrida, ao questionar os textos dos filósofos, concentrou-se no que estava em branco, nas expressões sem importância, nos adjetivos ambíguos, no flutuante. O logocentrismo consagrado do Ocidente foi, portanto, reduzido ao nada, à medida que novos sentidos e significados renovados emergiram. Isso deu a Derrida uma avalanche de ataques. Em 1992, quando a Universidade de Cambridge decidiu conceder-lhe o título de doutor honoris causa, um movimento foi organizado contra ele. Seus detratores o acusavam de não ser filósofo, de falta de rigor, de não incorporar nenhuma tradição analítica válida.
Talvez essa incursão no que não consta na aparência, no que está nas margens, se deva em parte à sua própria vida. Derrida foi excluída desde a infância. Como judeu na França, imerso em colaboração com o invasor nazista. Como filósofo em um sistema oficial que o rejeitou (a Universidade de Sorbonne negou-lhe uma posição). Como militante a favor de causas que, nas décadas de 70, 80 e 90, eram minorias. Ele nunca cedeu. Como pensador político que não entrou na intimidação do comunismo ou do maoísmo, nem mais tarde quando, nos anos 80, o liberalismo iniciou seu processo monumental de recolonização planetária. Derrida era um homem livre, original, amplo e inimitável. É desnecessário perguntar-se sobre sua herança porque o contra-progressimo e a ideologia contra-cultural de massas arrasaram com tudo. Fica a aventura pessoal de lê-lo, do lado de fora, como se estivéssemos caminhando por um jardim ou por uma avenida limpa e pura, sem lojas e toda a infecção manipuladora que oprime o mundo contemporâneo. Leia modestamente, como uma maneira de desconstruir a mentira deste mundo e redescobrir todos os sentidos e lucidez que carregamos por dentro.
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Aos 15 anos da morte do filósofo francês Jacques Derrida, o último subversivo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU