23 Mai 2020
"Talvez a humanidade nunca se tenha apercebido como tão igual como nestes últimos meses. A pandemia provocou a experiência do destino comum, a busca da aprendizagem comum e das soluções planetárias. Não há dúvidas de que a experiência planetária atingiu seu grau máximo nessa pandemia. Sairemos mais planetarizados dessa crise, seja pelo processo de contágio do vírus, seja pelas consequências econômicas, sociais e políticas do pós-pandemia", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão Província do Sul (padres vicentinos), mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e professor na Faculdade Vicentina (FAVI), Curitiba, PR.
Clique aqui para acessar o PDF do livro "O vírus vira mundo" de João Décio Passos.
À medida que a pandemia do coronavírus se apoderou da humanidade muitas tem sido as discussões e reflexões a respeito desta crise que afeta a todos. Os enfoques são variados e a pluralidade de compreensões está presente neste processo...
O fato é que o Covid-19 está escrevendo uma outra história das epidemias e de seus efeitos. Pensar sobre este acontecimento inédito na história da humanidade é urgente. Em meio a inúmeras reflexões temos em mãos um excelente texto de autoria de João Décio Passos – doutor em Ciências Sociais e livre docente em Teologia, professor da PUC SP e ITESP – intitulado: O vírus vira mundo. Em pequenas janelas da quarentena (Editora Paulinas, 2020, 140 p.). As abordagens desta obra organizada em três momentos: 1) A pandemia do coronavírus (p. 11-49); 2) Os significados da pandemia (p. 54- 91); 3) O dia seguinte da pandemia (p. 98-141) visam alargar os horizontes de compreensão: “oferecendo elementos que permitem ir além do que rola no boca a boca, hoje, de celular em celular. As mídias sociais que hoje nos acompanham dia e noite com as suas informações, tão numerosas quanto incertas, exigem de todos critérios de discernimento sobre a realidade dos fatos e a veracidade das interpretações” (p. 9).
Capa do livro "O vírus vira mundo"
de João Décio Passos.
(Divulgação)
A partir de uma primeira leitura deste livro busco aqui sublinhar alguns pontos que chamam a atenção nestes capítulos, o que não significa que esta leitura seja definitiva nem que exclua outras possibilidades de pontuação.
O mundo foi pego de surpresa com o novo vírus que se espalhou sem pedir autorização para atravessar as fronteiras nacionais, algumas muito bem muradas. Em poucos dias, o mundo foi lançado para uma política desesperada da salvação imediata das populações e das economias. Não houve tempo para rever os velhos princípios e, na maioria dos casos, de refazer as infraestruturas de saúde, há tempo entregues à volúpia do capital privado. É verdade que as grandes epidemias não avisam suas chegadas. Diferentemente das previsões construídas pelas decisões políticas, que fazem prevalecer sempre a conservação de interesses e privilégios dos mais fortes, as epidemias desbancam os poderes e impõem novas estratégias para os povos e nações. O medo da morte constitui, por certo, o núcleo mais profundo dessas crises. Mas vem junto a preservação dos poderes políticos. As crises epidêmicas desbancam as leituras seguras do mundo, as religiosas e as políticas; mostram a fragilidade da vida e dos poderes e trazem à tona o mais essencial: a preservação da vida. A fila dos caixões que abarrotam os cemitérios escancara essa impotência dos poderes e provoca, quase sempre, quedas de governos, reconfigurações geopolíticas e desvios de rotas das civilizações. Os governos sabem disso e temem por seus projetos de poder. Assistimos às cenas de governos muito seguros de si mesmos buscando meios quase desesperados para salvar suas nações dos desastres sanitários e econômicos. As rotas políticas previamente traçadas desmoronaram da noite para o dia.
Hoje a disseminação de um vírus é incomparavelmente mais veloz que no passado; veloz como se tornou a mobilidade humana planetária. Em algumas horas um vírus pode se espalhar pelo planeta incubado em passageiros que circulam pelos continentes e se esbarram em aeroportos lotados. Essa pandemia é, nesse sentido, uma pandemia de fato globalizada, um fenômeno da vida planetariamente conectada. A dinâmica do vírus consiste precisamente em “alimentar-se” da vida. A natureza funciona implacavelmente com sua lógica de cosmos-caos. O Covid-19 nos ensina essa verdade pouco romântica. O mundo dos inúmeros vírus habita precisamente nosso mundo e não outro; são formações parasitárias latentes no mundo vivo que emergem com mais ou menos força a qualquer momento, a depender de variáveis que coincidam entre si. Essa percepção natural desfaz duas perspectivas que podem emergir neste momento de pandemia: o de uma natureza vingativa que nos castiga com seus mecanismos purificadores ou de uma natureza que carrega predeterminismos que a refazem periodicamente. A natureza é constituída de morte e vida e, nesse modo de ser, os acidentes podem acontecer não por força do acaso ou de causas externas, mas por causas naturais, pelo nexo de causas e efeitos. Mas no meio da desordem o ser humano dedica-se a buscar a ordem, transforma, com suas capacidades, o caos em cosmos. Isso nos distingue de outras espécies vivas.
As pandemias não são socialmente neutras. O coronavírus viaja e tem classe social. Os mais ricos introduziram o vírus em seus países. Isso é fato econômico-social e não juízo moral sobre condutas individuais que serviram de abrigo para o Covid-19. A igualdade de destino das classes sociais constitui somente um aspecto da pandemia. As entradas nacionais do coronavírus via Ásia, Europa e EUA se deram por meio de quem pode fazer viagens internacionais. O Covid-19 não chegou aqui de graça ou por força de um destino sobrenatural previamente traçado por alguma entidade. A economia e as tecnologias são as condições fundamentais para entender a disseminação mundial do vírus na velocidade e na intensidade em que se deu. A pandemia, na configuração que assumiu, é fruto dessas condições. A viagem interna do Covid-19 continuou por meio dos organismos socialmente posicionados. Os mais necessitados são mais expostos e transmitem mais. O isolamento social tem imensos limites de ser efetivado nos cortiços e favelas. Os trabalhadores que permaneceram em seus postos são potenciais transmissores em maior escala do que aqueles que podem permanecer em casa. Por fim, as possibilidades de socorro médico nos casos mais graves colocam os pobres em situações de maior risco de vida.
O vírus de origem asiática vazou a grande muralha e se espalhou pelo planeta em poucas semanas; atravessou as fronteiras e colocou em xeque as supostas seguranças e os fechamentos das nações. O Covid-19 quebrou os diversos muros sem discussões e sem cerimônias; infectou e infecta homens seguros do poder e pobres desvalidos. Mostrou também que as defesas dos mercados locais que expurgaram os refugiados como socialmente insustentáveis desmoronou da noite para o dia e exigiu investimentos altíssimos dos Estados nas economias e no socorro de saúde à população. Não são somente os corpos que vão sendo infectados, mas também as ideias consolidadas dos organismos políticos de governo. O vírus adentrou nos corpos físicos das pessoas de todas as classes, nos corpos fechados das nações muradas, no corpo das ideologias segregacionistas e no corpo autônomo da economia de mercado. As cercas de proteção foram atravessadas e desautorizadas. Essa vala comum da história vai sepultando lentamente as ilusões egoístas dos consumistas, dos donos do dinheiro, dos poderes messiânicos e dos donos da graça de Deus.
Em proporções diferentes, estamos de volta ao refúgio da casa. A sociedade da informação nos favorece com as possibilidades de informação em tempo real e, de modo salvador, de home office que nos permite tocar adiante nossas lidas profissionais. De dentro de casa nos conectamos com o mundo, com os amigos e com os parentes igualmente isolados e continuamos nosso labor pelo sustento da vida. A experiência é inédita, embora já tivessem sido dadas as condições tecnológicas para esse novo estilo de vida. Ficar em casa é um aprendizado desafiante porque a casa não é mais nem a caverna nem a casa da roça. Aquelas significavam um isolamento real e um refúgio, na verdade, precário. A vida familiar não é também a mesma. As famílias são pequenas e cada indivíduo vive sua individualidade e isolamento em seu mundo sustentado pelos aparelhos celulares. A vida coletiva está refeita nos seus modos de produzir e de se relacionar. A família foi sendo, cada vez mais, o refúgio do individualismo dos trabalhadores frenéticos e dos autômatos das redes sociais de comunicação. De fato, a educação familiar tradicional foi suplantada, há muito, pela educação social que coloca os padrões comuns acima daqueles familiares e, também, os valores que vêm de fora e distintas fontes como parâmetros da vida correta. As famílias são mais passivas que ativas nesse sistema mundializado. Nesse sentido, o isolamento social não isola as informações nem reedita os antigos processos de educação tradicional, centrados em valores familiares ou na cultura local. Vivemos um isolamento mundializado, uma casa conectada em redes. Contudo, por certo, o primeiro passo foi dado. Voltamos para o mesmo espaço de abrigo. A família foi empurrada para um encontro consigo mesma. Resta ainda aprendermos a viver de novo em família. Não mais uma família isolada, mas uma família conectada com a sociedade. Não mais uma família centrada na autoridade paterna, mas em relações de reciprocidade e diálogo entre os sujeitos que a compõem. Não mais uma família ilhada da sociedade, mas em conexão direta com os problemas da comunidade local, da nação e do planeta. A família, a comunidade e a sociedade, esferas constitutivas da vida coletiva, poderão encontrar seus modos mais equilibrados de existência e de relação, sem que uma esfera traga a outra. A função social da casa está sendo refeita em caráter de urgência e busca seus rumos. Uma nova relação entre a casa e a rua pode estar em construção. Se o mundo não será mais o mesmo depois da pandemia, também a casa não o será. Estamos descobrindo que viver em família é possível em uma sincronia de hábitos e de agenda imposta pelo isolamento.
O mundo vivencia a insegurança e o medo em relação ao presente e ao futuro. O medo do Covid-19 esteve, assim, associado à convicção sobre a letalidade do vírus. A grande maioria da população mundial assim se comportou. Sobre o medo da morte e, muitas vezes, contra ele se contrapôs o medo da crise econômica. O conflito foi estampado como dilema – falso ou verdadeiro, a depender de pressupostos éticos – entre dois medos: o da morte ou da falência. Não faltou quem afirmasse que a economia é um valor superior à vida, sobretudo à vida dos mais idosos que já se aproxima naturalmente da morte. Afinal, a morte por coronavírus não seria sequer tão expressiva do ponto de vista numérico, enquanto o impacto negativo nos números econômico-financeiros muito mais catastrófico.
O Covid-19 teve uma função desveladora do que se encontrava em curso e mostrou a todos as fragilidades do modelo econômico e dos governos de filosofia neoliberal e ultraliberal, como no caso do Brasil. Uma crise sobre outra crise ou uma crise dentro de outra crise. No caso do Brasil, podemos dizer que se trata de uma crise em três camadas. A crise mundial da pandemia, a crise mundial dos regimes econômico e político e a crise política do governo atual. Também no nosso caso, a pandemia revelou no dia a dia as contradições do governo. Não vem ao caso recordar as contradições do processo que conduziu Jair Messias Bolsonaro ao poder, mas apenas a composição do governo que, no curso da pandemia, mostrou suas fragmentações. As crises do governo vieram à tona, à medida que a pandemia exigia posicionamentos urgentes. Essas contradições expuseram as divergências políticas de fundo da equipe, assim como entre os três poderes. A interpretação da pandemia e, por conseguinte, as medidas a serem adotas denunciaram a cada dia os modos distintos dos políticos e membros do governo perceberem a gravidade dos fatos. Vale mencionar esquematicamente as crises que sucumbiram às possibilidades de saída e geraram rupturas:
a) entre os poderes: executivo e legislativo, STF e o executivo, presidente e ministros, presidente e governadores;
b) entre leituras sobre a pandemia: aquela baseada nas ciências e associações de saúde e a do presidente e de alguns ministros que negavam a gravidade da mesma ou até mesmo a existência da mesma;
c) entre a visão/ critério econômico e a visão/critério ético-científico na gestão do processo de isolamento social;
d) entre as concepções neoliberal e social do Estado/governo;
e) entre o projeto de poder defendido pelo presidente e os projetos de outros candidatos integrantes da roda dos poderes atuais. Ministros foram exonerados. As bases de apoio do governo se reconfiguraram. A equipe foi se dissolvendo. Ainda que a gripezinha não fosse verdadeira do ponto de vista sanitário, tornou-se uma gripezona para o governo. Essas contradições se tornaram confronto explícito, na medida em que o presidente sustentava leituras e posturas pouco consensuais sobre a pandemia.
As muitas interpretações feitas sobre a pandemia revelam as diferentes percepções de mundo que afloram em momentos de crise, das mais sensatas às mais exóticas. Elas rompem com uma relativa regularidade hermenêutica que dispensa ou camufla as leituras mais radicais que peitam os consensos: a começar pelas que afirmam a inexistência de uma pandemia até aquelas que buscam causas e intervenções religiosas, passando pelas que enxergam na crise uma vingança da natureza ou uma natural purificação da espécie. A população mundialmente conectada pelas redes sociais esteve exposta, ao mesmo tempo, às vozes medíocres e às mentiras, às informações dos fatos em tempo real, às orientações médicas e às ofertas de significados do drama que se ia desenhando. As leituras das ciências estiveram, evidentemente, no comando das interpretações. Contudo, as interpretações religiosas ainda persistem paralelas às ciências, quando não ocupando o lugar delas. Não têm faltado leituras semelhantes àquelas do século XIV que colocam como causa do vírus Deus ou o diabo e, por conseguinte, oferecem rituais de solução: cultos, unção com óleo, novenas, correntes de oração, crucifixo na porta, água benta aspergida na rua, procissão com o Santíssimo Sacramento.
A ciência do coronavírus deu os rumos das explicações e das estratégias de controle da pandemia em todo o mundo. As possibilidades de monitoramento da pandemia em tempo real e as trocas de informações entre as pesquisas em ação sobre o comportamento do vírus ofereceram, com certeza, um foro rico de construção permanente das ciências, sobretudo das farmacologias que auxiliam no tratamento da infecção. No entanto, nesse tempo de pandemia não faltaram leituras pré-científicas sobre o vírus e seus efeitos, bem como sobre as formas de controle. As mídias e as redes sociais se encarregaram de divulgá-las exaustivamente. Outras leituras ingênuas entraram em ação. A mais visível socialmente foi, sem dúvidas, a de cunho mágico-religioso. Com diferentes símbolos e narrativas, atribuíram-se uma origem e, por conseguinte, um controle da pandemia pelas vias do sobrenatural. Na origem do coronavírus e de sua expansão estariam Deus ou o diabo e, por meio de orações e rituais, seria possível contribuir com o controle da infecção. As tendências cristãs pentecostais, evangélicas e católicas, protagonizaram essa leitura por meio de pregações e de discursos diretamente alinhados aos do presidente da República, que minimizavam os efeitos do vírus. É precisamente essa leitura ideológica que reproduz o terceiro discurso pré-científico sobre a pandemia.
Para essa leitura, interessa relativizar, se não desprezar a ciência em nome de interesses econômicos, publicamente confessados. A crise econômica que se anuncia exige relativizar o que diz a ciência.
A pandemia expõe os limites da lógica econômica de orientação neoliberal, mas não traz consigo novas soluções e estratégias que permitam desviar a rota em curso ou edificar um novo modelo. A cartilha em uso é a econômica e não outra. E a maioria delas ainda visa salvar o modelo neoliberal cujas contradições foram expostas ao vexame público. O dia seguinte da pandemia que já começa a se descortinar como um longo amanhecer começará a escrever os rumos de um retorno à lógica consolidada do capital improdutivo ou de um outro modo de conduzir a economia em nome da vida de todos.
Toda grande crise levanta a dúvida sobre a percepção de um Deus todo-poderoso e sempre pronto a intervir na natureza e na história. No entanto, o grito das vítimas que sucumbem sem socorro nega essa visão divina. Exige que se repense a natureza de Deus, sob pena de transformá-lo em um ser insensível ou em um Pai surdo ou sádico. É nessa zona de desconforto religioso radical que entra em cena o Deus de Jó, o Deus de Jesus crucificado, o Deus das vítimas de violência. Deus sofre com as vítimas. O Deus de Jesus é o Deus crucificado na cruz; é carne na carne que sofre, fome na fome que clama, frio no corpo que congela, caminhante no refugiado que atravessa as fronteiras. A encarnação do Verbo de Deus superou as ideias abstratas do divino, as teologias do todo-poderoso, os rituais de manipulação das forças divinas. A cruz ensina que o silêncio divino se torna grito precisamente no grito do sofredor e que a vida brota de dentro da morte e não como força que vem de fora, rompendo com as leis da natureza e interferindo nas escolhas humanas. O Deus cristão é amor e não poder, é misericórdia e não domínio; é amor que acontece na relação livre do eu e do tu e não imposição do divino sobre a autonomia do mundo; é misericórdia que convida para a empatia e a solidariedade e não solução mágica para os empecilhos da vida. O coronavírus segue seu curso com ou sem religião. Ateus e crentes serão contaminados da mesma forma. Nossa fé clama por outro mundo possível: por uma casa comum capaz de abrigar a todos em condições mais iguais, antecipando a comunhão definitiva, assim na terra como no céu.
A pandemia mundial se abrasileirou. Em termos de abrasileiramento, a pandemia aglutinou em torno do projeto de poder do governo atual uma leva de militantes que, de fato, passou a defender a ideia de uma espécie de conspiração universal maquinada por inimigos do governo sob o signo da chamada pandemia. A interpretação dos riscos de contágio oferecida pelas ciências nos quadrantes do planeta e, por conseguinte, a adoção da estratégia do isolamento social se inscreveriam nesse plano maquiavélico de prejudicar o governo atual. Vestidos de verde-amarelo, turbas de militantes ocuparam as ruas em muitas cidades brasileiras; gritaram profeticamente contra a maquinação montada contra o governo pelos comunistas, dentre os quais incluíam a poderosa Rede Globo; afirmaram a falsidade dos números de contaminados e dos leitos ocupados dos hospitais; convocaram a população à volta ao trabalho e os comerciantes a abrirem suas lojas; desafiaram as orientações do isolamento social com aglutinações numerosas e, para completar a cena verde e amarela, gritaram a volta da ditadura, o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. O vírus verde e amarelo desbancou com vigor o Covid-19 e as interpretações das ciências e da Organização Mundial da Saúde. A falsa pandemia conspira contra Bolsonaro e contra a pátria amada. Uma grande invenção foi projetada para prejudicar o Messias da nação. Aqui no Brasil a nação verde-amarelo, posicionada contra todos os vermelhos escondidos pelo mundo afora, detém a verdade sobre o coronavírus, ainda que na contramão do resto do mundo.
Alguns discursos puramente religiosos têm se afinado com alguns discursos puramente políticos. Os dois relativizam o perigo do vírus. Mas o fato é que um reforça o outro, na prática, embora mantenham suas gramáticas distintas. O discurso religioso que minimiza o risco do coronavírus e o discurso político que minimiza igualmente o perigo do mesmo. O primeiro minimiza em nome do poder de Deus, já que Deus é compreendido como a causa imediata do que acontece na natureza e na história e, por conseguinte, está pronto a defender os que têm fé da ação letal do vírus. O segundo minimiza em nome de um projeto político em curso, por entender que o isolamento social conduziria a uma crise econômica inevitável e, consequentemente, a um risco político para o projeto de poder do mandatário maior do país. Afinidades possíveis: ambos ignoram as ciências e afirmam outra causa para o isolamento social; ambos afirmam, portanto, uma causa política para o isolamento; ambos possuem uma metafísica maniqueia que separa a realidade entre o bem e o mal, que têm nomes imediatos, mas que têm sujeitos mundiais invisíveis que conspiram contra o governo atual; ambos definem o comunismo como mal universal que está solto e do qual não escapa nem mesmo o invisível Covid-19 (produto da China comunista); ambos afirmam que a realidade é comandada por forças exteriores a serem superadas pelo poder de Deus; ambos afirmam que o mundo está sob o comando de forças que se encarnam em sujeitos e instituições que visam prejudicar uma renovação do país.
A fé nos discursos recebidos e a reprodução dos mesmos, em escala geométrica, criam uma realidade que mistura inevitavelmente realidade e fantasia, verdades e falsidades. É quando a informação dispensa o conhecimento. O dilúvio de informações sobre o vírus e seus efeitos em todos os cantos do mundo reproduziu-se por meio das mídias e dos sujeitos, adaptando-se aos interesses de cada qual como oferta da última verdade. É necessário observar que as informações das ciências foram fundamentais para a gestão mundial e local da pandemia, embora estivessem sempre sujeitas às discussões motivadas por interesses econômicos, políticos e religiosos. Com efeito, é possível perceber uma sequência de informações plurais que se debateram entre si como portadoras da verdade mais precisa e que podem ser, esquematicamente, expostas numa gradação que aprofunda a dúvida e a confusão sobre os fatos e seus significados: como diversidade de informações, como dúvidas e como conspiração. Em todas essas etapas, a chamada pós-verdade pode ser surpreendida como modo de comunicar e, em certa medida, como convicção sincera ou politicamente mal-intencionada. Vivenciamos a pandemia real com seus perigos e a pandemia com seus perigos. A pós-verdade nunca foi tão legítima do ponto de vista político e tão próxima do perigo do ponto de vista sanitário.
Fora da caverna teremos que encarar a verdade de frente, ainda que nossos olhos tendam a fugir da luz que já começa a brilhar. Muitos insistirão nas aparências, brigarão por elas. A crise pode gerar conservadores fanáticos ou renovadores críticos. O futuro assusta com sua imprevisibilidade. A volta para trás é sempre tentadora por dispensar a construção do novo. E o modelo estável até agora afirmado como verdade será novamente indicado pelos donos do mundo como insubstituível. O pós-pandemia será o tempo da retomada dos dogmas econômicos e políticos. Haverá sempre os que preferem as correntes da caverna e se apresentem como servos voluntários das aparências.
O mundo terá que se decidir em sair da crise por meio de uma decisão que permita superar as contradições, ou voltar atrás e manter os mecanismos que agora não deram conta de oferecer solução ou de evitar as tragédias sanitárias, como no caso do país mais desenvolvido do mundo. A retomada dos rumos e dos mecanismos conhecidos e naturalizados como estáveis é sempre mais segura, por evitar o risco da construção do novo. A crise é sempre uma tomada de consciência de um quadro de limites que se impõe como ápice de um processo que deteriora por alguma razão um determinado quadro. A pandemia foi uma crise que se configurou de forma abrupta e expôs pelo viés sanitário as contradições econômicas e políticas dos poderes instituídos como necessários, legítimos e naturais. A saída da crise exige a cura, a construção do novo que seja capaz de oferecer condições que possam criar um patamar mais elevado de soluções. A crise da pandemia expôs as contradições do modelo econômico mundial com seus regimes políticos; ofereceu um diagnóstico das ineficiências e das falências. Desse diagnóstico poderá vir a decisão de buscar a cura, a construção de novos rumos para o planeta agora definitivamente conectado.
A religião é, de fato, um serviço essencial? Antes se deve perguntar o que é uma coisa essencial. É algo que diz respeito àquilo que é indispensável para uma determinada finalidade. E o que é indispensável para uma finalidade pode evidentemente variar. Mas o essencial pode ser ampliado, na medida em que ampliamos o grupo. O que é fundamental para uma cultura ou para um país?
E, abrindo o foco até sua extensão máxima, chegamos, inevitavelmente, à pergunta sobre o que é fundamental para o ser humano. As grandes tradições religiosas haviam feito a mesma pergunta e respondido com suas regras de ouro que colocam o eu e o outro numa relação de igualdade radical. Em todos os casos, o valor comum se coloca acima do individual, o universal acima do local. A vida humana é o valor maior que se coloca acima de tudo nas sociedades civilizadas e na tradição judeo-cristã. Na iminência de um contágio generalizado que coloca a vida de milhares de pessoas em risco, o essencial se mostra sem requintes: a preservação da vida como valor absoluto que não se negocia. E não se negocia com nenhum outro interesse, nem mesmo com o religioso. Por certo, o serviço religioso é fundamental para quem vive dele, mas não para o conjunto da população. Igrejas funcionando, ignorando a pandemia, ofendem ao Deus da vida e protetor dos pobres. Dando continuidade à tradição profética, o Evangelho é claro: “quero a misericórdia e não o sacrifício” (Mt 9,13). A misericórdia é o princípio ético absoluto que inclui a todos, que coloca a vida antes da norma e do culto. Antes do culto está a vida, e é por causa dela que o culto existe, e não o contrário. Culto que coloca a vida em risco é blasfêmia contra o Criador que nos doa vida como direito maior e traição ao mandamento do amor que define a vida cristã.
O isolamento social imposto pela pandemia do coronavírus colocou a família de volta no espaço comum de convivência. Não refez de forma alguma a velha centralidade social das famílias e não garantiu formas de interação entre os membros que permanecem quase sempre na conexão isolada. Porém, a volta para casa pode favorecer um reencontro do que estava desconectado e até mesmo esquecido. A coabitação pode ser um encontro forçado, mas que ajuda a perceber que outro jeito de viver é possível, que a casa é o espaço comum, que as refeições podem ser feitas em um mesmo horário, que o mundo lá fora exige a mesma decisão de se isolar para que um não contamine o outro, que a família se reencontra para que um cuide do outro e que a vida dos membros são valores defendidos por todos. Essas confluências podem não significar ainda uma comunhão familiar, mas podem lembrar o valor de cada membro vítima potencial do vírus; podem expor o valor do trabalho que existe para viver e não para escravizar em função do dinheiro; podem ajudar a perceber que os membros economicamente inativos, as crianças e os velhos, merecem cuidados especiais; podem também convidar para os encontros na mesa e na sala há muito desfeitos pelas agendas sempre mais individualizadas da vida urbana; podem também oferecer oportunidade de criar comidas, brincadeiras, rodas de conversa etc. Estamos juntos tentando nos proteger e proteger os outros. A vida emerge como valor maior que nos faz buscar seguranças, antes dos interesses de cada membro e acima das metas individuais. Os rituais de consumo e as práticas usuais de lazer deixaram abruptamente de ser valores imprescindíveis. Não há shopping center para a contemplação das vitrines nem boteco para a juventude se encontrar e beber. Não há cinema nem praça. Não há academia para moldar o corpo, restaurantes de fim de semana, passeio no parque e parquinho para as crianças. O mundo voltou para dentro de casa. A família tornou-se o grupo de relações imediatas, antes do grupo de amigos, da escola, do trabalho etc. O isolamento social revelou a família como possibilidade de convivência e como modo de viver juntos, olhando da mesma janela e para o mesmo objetivo de evitar o perigo iminente. Também é verdade que o medo e o desamparo fizeram parte da rotina de muitas famílias. A anunciada crise econômica e a ameaça do desemprego e da diminuição da renda rondam como fantasma cada vez mais próximo. É preciso lembrar também das famílias visitadas pela morte; fraturadas pelo distanciamento do doente e pela impossibilidade de acompanhamento no hospital e, até mesmo, de se fazer o luto necessário no velório e nas condolências, de fazer os rituais mortuários como símbolos importantes para demarcar a separação do ente querido dos vivos.
Para quem vive a fé em seu sentido mais profundo, a crise é sempre oportunidade, jamais derrota. O coronavírus trouxe uma crise inédita que surpreendeu a todos em todo o planeta. O estável desmoronou de uma hora para outra sem dar tempo de pensar, discutir, planejar e decidir os rumos mais adequados. Muitos dogmas econômicos e políticos caíram por terra. As ilusões de um presente feliz, com suas ofertas de bem-estar incessante, também perderam a força. Nada permaneceu de pé. A crise exige decisão em superar os limites impostos, em abandonar as velhas seguranças e lançar-se para a frente na passagem demorada que gera o novo. Por mais que a pandemia nos desestabilize, nossa fé nos ensina a olhar para a frente e a caminhar na direção do futuro. A fé judeo-cristã exige criatividade pascal, vigor e esperança na passagem pelo deserto, ainda que ele contenha dor e morte.
1) O ensinamento da fragilidade: a vida humana pode sucumbir-se a qualquer momento; 2) O ensinamento da mutabilidade: as coisas mudam, mesmo quando afirmam ser imutáveis. O mundo pode mudar de rumo, romper com as doutrinas fixas e construir outro tipo de civilização; 3) O ensinamento da desconstrução: os mitos que sustentavam os regimes econômicos ruíram sem tempo para explicações. As urgências sociais colocaram os dogmas neoliberais por terra; 4) O ensinamento da desigualdade: mundo mostrou que a desigualdade é estrutural no regime geral que o comanda e nos regimes locais que o reproduzem. Embora o vírus não escolha categorias sociais para se reproduzir, ele desvela a vulnerabilidade dos mais pobres e dos trabalhadores; 5) O ensinamento do valor da vida: defesa da vida coletiva e individual orientou as políticas de condução da crise. Embora o valor econômico tenha se apresentado em muitos casos como primordial, a vida se apresentou como urgência a ser defendida e exigiu ações emergentes dos governantes; 6) O ensinamento da ciência: a virologia, a epidemiologia, a medicina, a imunologia, as pesquisas estatísticas e as engenharias ofereceram cada qual seus métodos e resultados que permitiram um direcionamento mais seguro no controle da pandemia do que em episódios semelhantes do passado. As ciências podem contribuir com a saúde pública em velocidade e em projetos mais eficientes do que normalmente têm sido notado; 7) O ensinamento da solidariedade: a humanidade aprendeu, em meio aos dramas da contaminação e da morte, a ir além da indiferença. O perigo comum colaborou para ações comuns e para a afirmação da solidariedade comum. Ainda que alguns possam ver em ajudas humanitárias não mais que esmolas, o fato é que elas se tornaram políticas públicas praticadas por órgãos internacionais, por empresas, por governos, por ONGs, por igrejas e, evidentemente, por atitudes e ações de indivíduos.
A cena protagonizada pelo Papa Francisco no dia 27 de março na praça de São Pedro retratou uma teologia narrativa do silêncio que se sobrepõe às palavras. A teologia do silêncio encenada por Francisco comunica o Deus cristão, sem poder, puro amor, solidariedade com as vítimas. O Deus encarnado em Jesus de Nazaré é Deus contingente que pulsa por dentro do corpo humano, se esconde nos prazeres e nas dores da humanidade. Em Jesus, Deus nasce, cresce, vive e morre; o divino se instala dentro dos limites humanos. Por essa razão, sente fome e frio, sente alegria e tristeza, sente dor e experimenta a morte. O crucifixo é a morte do Filho de Deus, do Deus que se fez sofrimento e morte. A partir da cruz só podemos buscar Deus dentro do humano; voz que fala no humano, dor que sente dentro da dor humana, grito de socorro na dor que dilacera e faz sucumbir os corpos. A cruz é o lugar do humano nu, da redução final, lugar em que Deus falou e se mostrou como solidariedade radical com a humanidade. Os desafios lançados ao crucificado, “se és Filho de Deus desce da cruz”, têm como resposta o silêncio de Jesus e o silêncio de Deus. O Deus todo- -poderoso desaparece e dá lugar ao Deus amor que se relaciona com nossa liberdade, o Deus da misericórdia e da solidariedade com as vítimas de ontem e de hoje. Desde a cruz Deus se mostra como fraqueza que exige o amor como forma de vivenciá-lo na história presente. Onde está Deus em meio à pandemia? Onde está o Deus cristão, crucificado com as vítimas da história, sentindo a dor dos que morrem longe de casa nas UTIs, sem o colo da mãe, sem remédio e gritando pelo próprio abandono à morte fatal. Se és Deus nos livre da pandemia. Este é o desafio dos crentes na onipotência divina que rompe com as leis da natureza. Deus fala no silêncio da dor e leva para seu paraíso, ainda hoje, os condenados à morte.
A pandemia do coronavírus igualou a todos no planeta. Talvez a humanidade nunca se tenha apercebido como tão igual como nestes últimos meses. A pandemia provocou a experiência do destino comum, a busca da aprendizagem comum e das soluções planetárias. Não há dúvidas de que a experiência planetária atingiu seu grau máximo nessa pandemia. Sairemos mais planetarizados dessa crise, seja pelo processo de contágio do vírus, seja pelas consequências econômicas, sociais e políticas do pós-pandemia. Esse dado real não pode, contudo, esconder a contradição social também planetária. O coronavírus é planetário, mas não é socialmente neutro. Os enfrentamentos políticos da pandemia não são igualmente neutros. Ao contrário, têm intencionalidades econômicas explícitas e implícitas. E a pergunta pelo futuro da economia planetária (locais) coloca-se de agora em diante como a questão mais crucial a ser equacionada. O mundo parou e com ele as dinâmicas econômicas consideradas até então regulares, estáveis e insubstituíveis. O isolamento social não somente driblou a velocidade de contágio do coronavírus, mas mostrou que é possível viver de forma diferente, ou seja, produzir diferente, consumir diferente, trabalhar diferente, locomover-se diferente etc. A parada obrigatória poderá dar o passo à frente, superar limites, instaurar a justiça enquanto é tempo.
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O vírus vira mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU