Vozes de Emaús: encontro de Leão XIV com os movimentos populares. Artigo de Francisco de Aquino Júnior

Arte: Laurem Palma | IHU

10 Dezembro 2025

"Sigamos fazendo teologia da libertação nos passos de Jesus, na força do Espírito, em companhia dos profetas e mártires da caminhada – sempre na fidelidade ao Deus dos pobres e os pobres da terra..."

O artigo é de Francisco de Aquino Júnior, presbítero da Diocese de Limoeiro do Norte – CE; professor de teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

Francisco de Aquino Júnior (Arquivo Pessoal)

O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto e ter acesso a todos os artigos da coluna, verifique o leia mais, no final do texto. Para saber mais sobre o projeto, clique aqui.

Eis o artigo.

Francisco insistiu muito na importância dos movimentos populares, tanto para conhecer a realidade, como para a transformar a realidade. Falou dos movimentos populares como “poetas sociais” que, com coragem e criatividade, constroem alternativas de vida, revitalizam a democracia e proclamam a esperança de um mundo novo. Destacou a importância da colaboração da Igreja com eles na construção de alternativas para as classes populares e na luta pela superação das causas estruturais da pobreza. E participou de cinco encontros mundiais com eles: 2014, 2015, 2016, 2021, 2024. Os discursos proferidos nesses encontros (disponíveis no site do Vaticano) constituem um dos aportes mais inéditos e mais importantes de seu magistério social. Ele mesmo chegou a se referir ao discurso proferido no segundo encontro como uma “miniencíclica”.

Continuando o caminho iniciado por Francisco, Leão XIV se reuniu pela primeira vez com os movimentos populares no dia 23 de outubro. No discurso que proferiu nesse encontro, relacionando a escolha do nome Leão XIV com a Encíclica Rerum Novarum de Leão XIII, refletiu sobre as “coisas novas” do nosso tempo a partir das “periferias”.

1) Começa convidando a ver as “coisas novas” da periferia. Fala concretamente da luta por “terra, teto e trabalho”. Na perspectiva dos “centros de poder” isso não é uma “coisa nova”, mas na perspectiva das “periferias” é algo “tão atual que merece um capítulo inteiro no pensamento social cristão sobre os excluídos no mundo de hoje”. Leão XIV destaca aqui o compromisso dos movimentos populares que “não se limita ao protesto, mas procura soluções”. Diz que a Igreja “deve” estar com eles, sendo “uma Igreja pobre para os pobres, uma Igreja que estende a mão, uma Igreja que assume riscos, uma Igreja corajosa, profética e alegre”. E que “as comunidades marginalizadas deveriam ser envolvidas num compromisso coletivo e solidário que vise inverter a tendências desumanizadora das injustiças sociais e promover o desenvolvimento humano integral”, pois, “enquanto os problemas dos pobres não forem resolvidos, rejeitando a autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e abordando as causas estruturais da desigualdade, não se encontrará solução para os problemas do mundo”.

2) Chama atenção para velhas injustiças no mundo novo. Vivemos num mundo cada vez mais globalizado e numa era de verdadeira revolução tecnológica. Mas isso “ainda não foi capaz de enfrentar eficazmente os desafios da pobreza e, por isso, não conseguiu inverter a dramática exclusão de milhões de pessoas que permanecem marginalizadas. Este é um ponto central no debate sobre as ‘coisas novas’”. É outra forma de ver o mundo: a partir de baixo. Interessante observar que, quando Leão XIII escreveu a Rerum Novarum, no final do século XIX, “não se concentrou sobre a tecnologia industrial nem sobre as novas fontes de energia, mas antes sobre a difícil situação dos trabalhadores. É aí que reside a força evangélica de sua mensagem: a atenção principal era a difícil situação dos pobres e oprimidos daquela época”. No mundo atual “a exclusão é a nova face a justiça social”. É tanto uma “novidade” quanto um “paradoxo” de nosso tempo: “a falta de terra, comida, casa e trabalho digno coexiste com o acesso às novas tecnologias que se difundem por toda parte através dos mercados globalizados”.

3) Fala do impacto das ‘novidades’ sobre os excluídos. Em vez de descrever “as ‘novidades’ produzidas pelos centros de desenvolvimento tecnológico”, Leão XIV chama atenção para seu “impacto” nos “principais âmbitos da vida: saúde, educação, trabalho, transportes, urbanização, comunicação, segurança, defesa etc.”. São impactos “positivos para alguns países e setores sociais” que provocam “danos colaterais” para outros países e setores sociais. Pensemos, por exemplo, na “crise climática”, na difusão de “modelos de vida” baseados em “um consumo desenfreado e um sucesso econômico totalmente inatingível”, na “dependência dos jogos de azar digitais”, na “indústria farmacêutica” e suas campanhas publicitárias vinculadas a uma “espécie de culto do bem-estar físico”, no “desenvolvimento das novas tecnologias de informação e das telecomunicações” que “depende dos minerais que muitas vezes se encontram no subsolo dos países pobres” (coltan, lítio), na “questão da segurança” e do “abuso dos migrantes vulneráveis”. Tudo isso mostra a “ambivalência” do progresso tecnológico em curso.

4) E destaca a luta justa dos movimentos populares. Eles “enfrentam estas novas formas de desumanização, testemunhando que quem se encontra em necessidade é nosso próximo”. Isso os torna “campeões de humanidade, testemunhas da justiça, poetas da solidariedade”. Num contexto de crise dos “sindicatos típicos do século XX” e dos “sistemas de segurança social”, esses movimentos “são chamados com urgência a colmar esse vazio, iniciando processos de justiça e solidariedade que se difundam por toda a sociedade”. E, “assim como a Igreja acompanhou a formação dos sindicatos no passado, devemos acompanhar os movimentos populares. Isso significa acompanhar a humanidade, caminhar juntos no respeito mútuo pela dignidade humana e no desejo comum de justiça, amor e paz”. Leão XIV reafirma o apoio da Igreja pelas “justas lutas pela terra, pela casa e pelo trabalho”, ressaltando que “os caminhos justos partem da base e da periferia” e suplicando sobre os movimentos populares “a coragem de uma profecia evangélica, a perseverança na luta, a esperança no coração, a criatividade poética”.

Esse encontro de Leão XIV com os movimentos populares tem uma importância eclesial e social muito grande: 1) confirma o compromisso da Igreja com os pobres e com a justiça socioambiental; 2) reafirma que esse compromisso se dá a partir “de baixo”, das “periferias”, junto com os movimentos populares; 3) avança no desenvolvimento desse capítulo do magistério social que é a relação da Igreja com os movimentos populares; 4) indica um traço fundamental da forma com ele encara as “coisas novas” do nosso tempo: assim como Leão XIII centrou sua atenção sobre a “difícil situação dos trabalhadores”, no contexto da revolução industrial, Leão XIV centra aqui sua atenção sobre a “exclusão” que é a “nova face da injustiça social”, no contexto da nova revolução tecnológica. E nisso reside a “força evangélica” da mensagem de ambos: centrar a atenção na situação dos pobres e marginalizados de ontem e de hoje.

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