25 Outubro 2025
"O objetivo é a reindustrialização dos EUA, aumentando a sua competitividade internacional e manter o papel do dólar. Um dos objetivos das tarifas é servir de instrumento para negociar o investimento nos EUA. Outra negociação pretendida é a de transferir para outros países o custo de defesa. Fazer tudo isso mantendo a hegemonia do dólar".
O artigo é de Teofilo Cavalcanti Neto, bacharel e mestre em Economia pela Universidade de Louvain e bacharel em História pela PUC-Rio. Foi por 17 anos superintendente da Viva Cred, entidade que forneceu microcrédito a pequenos empresários em comunidades do Rio de Janeiro.
Teofilo Cavalcanti Neto (Foto: Arquivo pessoal).
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
Eis o artigo.
O economista Milton Friedman publicou em 1975 o famoso texto com título “Não existe almoço grátis”, um aforisma que tinha a intenção de significar que na politica fiscal qualquer gasto, qualquer subsídio, qualquer despesa politicamente imposta, acaba sendo paga por alguém. Um quarto de século mais tarde, em 2001, o economista Michael Hudson, ao publicar a segunda edição do seu livro “Superimperialismo” afirmou que a
política monetária e fiscal dos EUA desde os anos 1960 na sua relação com o mundo se valia de um “almoço grátis”.
Passado quase mais um outro quarto de século, em novembro de 2024, Stephen Miran, primeiro diretor do FED indicado nesta gestão por Donald Trump, publicou um artigo onde procurou demonstrar os custos para os EUA daquilo que Hudson chamou de “almoço grátis” e fez propostas para uma nova política monetária e fiscal dos EUA, modificando sua relação com o mundo. Esse texto oferece uma justificativa para a política de tarifaço que o novo presidente passou a aplicar assim que assumiu o poder.
Hudson nos relata que os EUA se industrializaram fortemente após a Guerra de Secessão, de tal forma que se tornaram no final do século XIX o maior PIB do mundo.
Durante a primeira guerra mundial se valeram dessa posição para financiar os países aliados, tornando-se o grande credor. Durante a Segunda Guerra Mundial novamente os EUA continuaram como grande financiador e fornecedor de armas e bens. Foi também a ocasião para estabelecerem bases militares ao redor do mundo. Ao final da guerra se consolidaram como o grande credor e estabeleceram o dólar como a moeda padrão mundial.
A ordem política e econômica mundial foi estabelecida conforme sua hegemonia. Foram criados organismos financeiros de atuação planetária, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, para fomentar e regular as trocas comerciais e financeiras entre os países, mas sob o controle dos EUA, onde tem poder de veto. Essa ordem substituiu a antiga ordem mundial europeia, baseada na colonização. A hegemonia passou a se basear na superioridade financeira, industrial e na força bélica, com a manutenção e ampliação de bases militares ao redor do mundo.
A política financeira liberal, do laissez faire desejada logo no fim da segunda guerra não pode se manter por conta da concorrência da URSS na Europa. Daí, em 1947, o presidente Truman deu início ao Plano Marshall de reconstrução da Europa. Essa política de contenção do comunismo levou a guerras da Coréia, a do Vietnã e outras mais, com os EUA tendo grandes gastos no exterior, e passando de país grande credor para grande devedor. E aí que vem a grande novidade. Até então o país que se tornasse devedor teria que desvalorizar a sua moeda, importar menos e exportar mais. Teria que conter os seus gastos. Ora, os EUA emissor da moeda mundial passou a pagar as suas contas no exterior com a sua própria moeda e o que restava aos bancos centrais dos países que recebiam essa moeda, que se transformava em seus ativos de reserva, era aplicá-la no Tesouro Americano, comprando títulos da dívida pública dos EUA, pagando pequenas taxas de juros. Foi assim que nesses últimos mais de sessenta anos os EUA financiaram os seus gastos e investimentos no exterior emitindo a própria moeda, o que levou ao economista Michael Hudson chamar isso de “almoço grátis”. Bens, serviços e investimentos pagos com emissão de moeda, um privilégio que nenhum país ainda tinha tido. Mas tudo na vida e na economia tem limites. O déficit crescente nas contas públicas e na conta corrente dos EUA foi feito em grande parte através de sua desindustrialização, passando o país de líder mundial na indústria desde o final do século XIX para o maior importador de bens industriais. O Leste da Ásia passou a ocupar esse lugar, em primeiro lugar liderado pelo Japão nos anos 80 e depois no século XXI pela China.
O crescimento do Japão foi contido pelo chamado “Acordo de Plaza” de 1985, imposto pelos EUA e que colocou o país asiático em um processo de semiestagnação. Agora, quarenta anos depois, o desafio é conter a China. A proposta de Stephen Miran foi por ele denominada de “Acordo de Mar a Lago” visa reformar os sistemas financeiro e de comércio internacional, argumentando que “torna-se cada vez mais oneroso para os Estados Unidos financiar o fornecimento de ativos de reserva e o sistema de defesa”. Ou seja, o que era um “almoço grátis” se tornou um ônus.
Os EUA seriam vítimas do sistema tal qual ele está funcionando. Ele assim propõe aumento de tarifas de importação de produtos cuja “receita arrecadada melhora a repartição dos encargos pela provisão de ativos de reserva. As tarifas provavelmente serão implementadas de forma profundamente interligada às preocupações com a segurança nacional”. O objetivo é a reindustrialização dos EUA, aumentando a sua competitividade internacional e manter o papel do dólar. Um dos objetivos das tarifas é servir de instrumento para negociar o investimento nos EUA. Outra negociação pretendida é a de transferir para outros países o custo de defesa. Fazer tudo isso mantendo a hegemonia do dólar.
O desafio é grande. Quando enfrentaram o Japão em 85 o PIB em Paridade de Poder de Compra (PPC) deste era 37% dos EUA. Quando a URSS foi desagregada, o PIB desta era estimado em 50% do americano. Hoje a China, pelo mesmo critério tem um PIB 30 % maior, ou seja o PIB americano é 72% do chinês. Estaremos vivendo esse enfrentamento nesses próximos anos.
Referências
FRIEDMAN, Milton. “There’s no such a thing as free luch”; Open Court; La Salle, Illinois, 1975.
HUDSON, Michael. “Superimperialism”. Pluto Press. 2003; Sterling, USA.
MIRAN, Stephan. ”A User’s Guide to Restructuring the Global Trading System”. Hudson Bay Capital; nov. 2024.
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