27 Novembro 2025
Um fantasma ronda a viagem do Papa para celebrar o 1700º aniversário do Concílio de Niceia. O fantasma é o Filioque, uma questão que nada tem a ver com o Concílio de Niceia, mas que os católicos conservadores querem recuar no tempo, de 1014 a 325. A controvérsia é um exemplo de como os católicos conservadores operam, prontos para manipular qualquer texto papal, clamando por escândalo espiritual, especialmente quando não há nenhum.
O artigo é de Fabrizio Mastrofini, jornalista e ensaísta italiano, publicado por Settimana News, 26-11-2025.
Eis o artigo.
O pretexto é a Carta Apostólica In unitate fidei de 23 de novembro, na qual Leão XIV reconstrói o significado do Concílio de Niceia, então e agora, enfatizando a importância de "um ecumenismo orientado para o futuro, da reconciliação pelo diálogo, da troca de nossos dons e herança espirituais. O restabelecimento da unidade entre os cristãos não nos empobrece; pelo contrário, nos enriquece. Como em Niceia, isso só será possível por meio de um caminho paciente, longo e, por vezes, difícil, de escuta e aceitação mútua. Este é um desafio teológico e, sobretudo, um desafio espiritual, que exige arrependimento e conversão de todos."
O caos se instaurou. A enxurrada de controvérsias está sendo desencadeada, sobretudo, pelo LifeSite, um site conhecido ligado ao grupo de mídia católica EWTN. Em um artigo sobre a Carta Apostólica, a manchete expressa claramente a nova heresia: "Papa Leão XIV minimiza o Filioque em nova Carta Apostólica" (original em inglês aqui).
Uma leitura atenta revela como opera a desinformação, ou melhor, a confusão informacional , promovida por esses setores. Lemos: "No texto (da Carta Apostólica, ed.), que visa promover a unidade cristã com referência às primeiras profissões de fé, o Papa Leão XIV cita o Credo Niceno-Constantinopolitano de 381 em sua forma original, sem o Filioque (uma referência à processão do Espírito Santo de Deus Pai "e do Filho" na teologia trinitária). Essa escolha plenamente consciente faz parte de um discurso mais amplo sobre o ecumenismo como um caminho de reconciliação, visando estabelecer um terreno comum futuro com as Igrejas Orientais."
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Uma posição imediatamente reiterada por outros.
Escrevendo para o Pelican+, uma plataforma tradicionalista, Murray Rundus – que se descreve como católico – explicou que esta é “uma das partes mais problemáticas e confusas do documento”. Ele acrescentou: “Aqui reside o principal problema que tenho com o texto, que acredito introduzir um elemento de confusão nas relações entre católicos e ortodoxos. Se o Filioque e os dogmas relativos à instituição do papado não justificam mais a separação, então ou esses dogmas devem ser tratados como negociáveis, ou a separação deve ser tratada como moralmente indiferente. Ambas as opções são incompatíveis com a eclesiologia católica.” (original em inglês aqui)
De passagem, notamos o uso do termo "dogmas": desde quando o Filioque é um dogma? E o Credo Niceno também é um dogma?
Vamos analisar mais de perto. Seguindo a mesma linha, o Radical Fidelity, um blog hospedado na plataforma Substack, é — segundo eles mesmos — "um grupo de leigos católicos que querem combater o modernismo e a heresia". E aqui está a abordagem deles: "Isso levanta uma questão perturbadora: quais controvérsias? O Filioque? O primado papal? A sucessão apostólica? A transubstanciação? A justificação? Os dogmas marianos? Cada uma dessas supostas controvérsias deu origem a ensinamentos infalíveis definidos pela Igreja sob a guia do Espírito Santo. A verdade dogmática nunca perde seu propósito."
Dogmas, precisamente, seja lá o que isso signifique.
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Uma pena para eles, pois se você ler o LifeSite até o fim — mas quem leria um artigo ideológico longo e tedioso? Basta olhar o título… — encontrará uma explicação histórica que contradiz o próprio artigo e sua intenção original.
«O primeiro Concílio de Niceia (325) definiu a consubstancialidade do Filho com o Pai para combater o arianismo, enquanto o Concílio de Constantinopla (381) completou a doutrina sobre o Espírito Santo, afirmando a sua divindade e o seu culto juntamente com as outras duas Pessoas. Somente séculos mais tarde, entre os séculos VIII e XI, o Ocidente latino inseriu a expressão “Filioque” nos símbolos litúrgicos – não nos cânones conciliares – para sublinhar a origem divina única do Espírito Santo na Trindade. O Oriente, não tendo participado neste desenvolvimento, contestou a sua legitimidade, considerando-a uma intervenção unilateral nos textos ecumênicos».
Que é exatamente o que o Papa escreve, onde – na nota 10 – ele especifica que «a afirmação “e procede do Pai e do Filho (Filioque)” não se encontra no texto de Constantinopla; foi inserida no Credo Latino pelo Papa Bento VIII em 1014 e é objeto de diálogo ortodoxo-católico».
Na realidade, a controvérsia não tem fundamento. Mas basta para lançar uma sombra pesada sobre a Carta Apostólica, Leão XIV e a viagem à Turquia e ao Líbano.
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Desta vez – na série “tradicionalistas contra” – podemos ouvir Korazym (outro site da região) criticando o LifeSite e seus seguidores.
A carta do Papa Leão XIII menciona o Concílio de Niceia porque celebra seu aniversário e porque deseja nos reconduzir à fonte do Credo Cristão. E Niceia não continha o Filioque, que só apareceria séculos depois na liturgia latina. Citá-lo em um documento dedicado a 325 teria sido um anacronismo, não um ato de devoção. (...) A questão é outra. Quando se perde a familiaridade com a teologia e se vive apenas de alarmes espirituais, a fé se torna frágil. Frágil a ponto de uma única frase distorcida ser suficiente para perturbar a paz interior. E aqui reside o problema. O hábito de ler o Magistério com olhar desconfiado, buscando nos documentos provas de que "algo está errado", cria uma fé inquieta, não mais alimentada pela Verdade, mas pela emoção. O sensacionalismo teológico é uma armadilha espiritual, e muitos acabam presos nela sem se darem conta.
Certo. É uma pena que Korazym também fosse, por vezes, tão desconfiado, vasculhando os documentos para ver o que havia de errado, especialmente quando era o Papa Francisco quem falava.
Mas, na opinião do autor, há outro aspecto que merece destaque. A Santa Sé, conforme interpretada pelos diversos Dicastérios, e pelo Dicastério para a Comunicação, deve analisar minuciosamente o que está sendo dito nos setores tradicionalistas, como o Papa e os documentos estão sendo manipulados e como a polarização eclesial está sendo fomentada. E deve encontrar — ou mesmo criar — instrumentos para intervir.
Os recursos existem, assim como as ideias. O que falta é a vontade política para implementá-las. Enquanto isso, o caos informacional reina absoluto.
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