"Esse livro faz ver que muitos seminaristas e presbíteros, ao tentarem superar a condição humilde de suas origens, acabam se deixando capturar por ideais narcísicos do seu próprio interior - uma espécie de “caverna platônica”. Repetem a previsão de La Boétie ou de Paulo Freire", escreve William Cesar Castilho Pereira, doutor pela UFRJ, professor aposentado da PUC Minas e psicólogo clínico, em artigo enviado pelo autor ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Qual o conteúdo do livro: "A ideologia da Vergonha e o clero do Brasil"? Esse livro não é uma panfletagem de um conteúdo entusiástico para causar notícias sensacionalistas, efêmeras e vazias. Nem tão pouco é um texto de denuncismo ou de difamação de famílias e dos padres em situação de extrema pobreza. Pelo contrário é uma reflexão profunda, que como escrevi no início do livro, recitando o compositor e cantor Geraldo Vandré: “De que o poder que cresce sobre a pobreza e faz dos fracos riqueza foi que me motivou a escrever esse livro”.
Sem o estudo das religiões jamais entenderíamos o ser humano. Como dizia Jacques Lacan[1]: “E, no que se refere ao sentido, os religiosos conhecem um bocado de coisas". O exercício ministerial dos presbíteros, religiosos e religiosas é hermenêutico. Sabem como ninguém oferecer sentido aos sofrimentos e alegrias aos humanos. São mensageiros da Boa Nova. E, não de fake news, carregado de ódio erotizado.
Desde os primórdios do Cristianismo, a religião desponta como uma experiência de fé dos pobres. Ou seja, os pobres constituem a fração privilegiada daqueles que seguiram os ideários de Jesus. O chamado de Jesus foi escutado por homens rudes, simples pescadores e inúmeras mulheres suspeitas.
Para o amigo psicanalista espanhol, Carlos Dominguez Morano, Jesus arquitetou o Reino de Deus com rosto humano: o cego de nascença, a prostituta, a viúva e o impuro leproso. Ora, o Reino de Deus tem rosto de tudo que se exclui socialmente. Cristo se espalhou em torno das crianças abandonadas, das pessoas de diferentes orientações afetivas e sexuais, dos drogaditos, dos indígenas, das mulheres violentadas, dos negros, das pessoas sem terra, sem teto, sem trabalho e dos imigrantes excluídos.
São Paulo[2], na Primeira Carta aos Coríntios, diz textualmente a respeito dos que seguem Jesus: “não há entre vós muitos sábios, nem muitos poderosos, nem muitos de família nobre”. É um equívoco associarmos o exercício do ministério sacerdotal a pessoas fracassadas, que não conseguiram nada melhor e rentável na vida – os lumpemproletariados da fé.
Isso é um grave preconceito burguês. Há um forte ideário que impulsiona essa vocação - missão. Da mesma maneira, a maioria das mudanças sociais revolucionárias brotaram de populações marginalizadas: os proletários, os camponeses, a Comissão Pastoral da Terra - CPT, o MST, os poetas, os filósofos, as mulheres, os negros e os trabalhadores de mineração de cobre, de minério, de gás e de carvão.
Nunca vi transformação religiosa, humana e social vinda de camadas ricas e poderosas. Por exemplo, são pouquíssimos os proprietários das plataformas que integram as big techs – que dominam o mercado de tecnologia de comunicação. Esses são os ferrenhos defensores do status quo, de pautas conservadoras e fundamentalistas. São as agências produtoras da ideologia da vergonha para os pobres seguirem. Constituem um grupo dos desenvergonhados e cínicos. Que continuamente promovem a expulsão do outro – da alteridade, enquanto diferença.
Entretanto, no interior do segmento dos excluídos - há um germe de mudança que se chama RESISTÊNCIA. Toda resistência produz Esperança. O que significa, ESPERANÇA? Esperança não é um sentimento ingênuo, infantil, eufórico e otimista. A esperança não é um espaço fechado, dado, que não carece de nada e que não há mais caminho a percorrer. Pelo contrário o esperançoso é o eterno aprendiz, demandante e reivindicador. A esperança é movimento. Devir. Risco profético.
A ESPERANÇA tem duas filhas, a indignação e a coragem. Os pobres pela resistência, Re – EXISTEM. RE – INVENTAM. Os marginalizados pelas vidas ameaçadas insistem em reinventar novas maneiras de existirem. São os eternos sobreviventes.
Neste livro abordo algumas questões sobre três temas: a ideologia, a vergonha e o clero do Brasil. Utilizo a base de dados de várias pesquisas da CNBB (2019 a 2022) e do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais – CERIS. Frente a esses dados, examino as origens sociais, econômicas, culturais, saúde física e psíquica das famílias dos padres, bispos e diáconos permanentes.
As pesquisas evidenciam que quase 70% dos padres brasileiros são oriundos de setores mais pobres da população. Esse contingente equivale aos 40% da população mais pobre do Brasil. Segundo Jessé Souza, a classe de humilhados e perseguidos, que perfaz cerca de 40% de nossa sociedade, é a pedra de toque para que saibamos como toda a sociedade funciona. Ela tem um efeito semelhante à casta dos intocáveis da Índia, que executam os serviços sujos e mal pagos que ninguém mais quer fazer.[3]
No grupo das famílias dos padres brasileiros, chama atenção o número de mães e pais analfabetos que contam 18%, quase três vezes mais do que o atual índice de analfabetismo no Brasil: 7%, segundo o IBGE.
Sobre a renda familiar, constata-se que a grande maioria (70%) das famílias dos padres respondentes tem rendimentos mensais de até três salários mínimos, sendo elevada a incidência de famílias que ganham até dois salários mínimos.
Quando se verificam sobre região de procedência, profissão, escolaridade, raça, situação socioeconômica, os dados parecem indicar que a grande maioria dos presbíteros tem origem rural e, quando oriundos do meio urbano, vêm de cidades pequenas e de áreas periféricas metropolitanas, após um longo processo de migração. Migração significa eterna experiência de transitoriedade, abandono, fragilidade urbana e desenraizamento cultural, rupturas de amizade, de tradições religiosas e códigos de valores próprios.
Há uma produção da ideologia da vergonha entre dois grupos sociais: os mais favorecidos e os menos favorecidos.
A vergonha é um sentimento muito doloroso. Ela surge quando nos percebemos sendo vistos pelo outro de suposto saber e de poder. Esse olhar do outro tirano agride a imagem do sujeito, pois está impregnado e ajuizado com o exame rigoroso da ideologia dominante. A vergonha não nasce do que se faz, mas do olhar sádico do que se sofre. É a vergonha do violentado, do abusado, que vai além do permitido. Por isso, todo abusador é perverso.
Além disso, a ideologia da vergonha psicologiza e privatiza o sofrimento, deixando intocado o contexto de ofuscação social que causa o sofrimento da vergonha. A ideologia dos mais favorecidos é fixada neuroticamente pela cobiça da honra. Ela reivindica a honra como um atributo típico da classe “superior”.
Assim, divide a sociedade em dois blocos: famílias nobres, detentoras de honra, e famílias inferiores, desonradas. A ideologia burguesa produz a vergonha da desonra de pertencer a uma família pobre, sem registro de nome e sobrenome, carente da herança de sangue e propriedades.
Nesse contexto, o sujeito sente uma profunda vergonha de pertencer a uma classe economicamente inferior:
- sofre o constrangimento de não se encaixar nos padrões tradicionais de beleza nem ter medidas corporais semelhante ao manequim top model;
- experimenta a ameaça do julgamento moral que o nomeia como preguiçoso, indolente e dependente de benefícios do Bolsa Família e das cotas raciais;
- percebe que, na escola, é colocado na última fila da sala de aula porque é pobre ou é classificado de insuficiência intelectual, quando sua pronúncia ou construções gramaticais fogem do padrão culto.
Esse indivíduo está envergonhado porque seu corpo exala odor forte e desagradável ou sua orientação sexual foge dos padrões normativos. A vergonha também deprime dolorosamente: quando se usa vestido, camisa ou sapato sem grifes elegantes; quando se come uma marmita no trabalho; quando a pele é preta ou parda e os pés são ásperos com calcanhares ressecados e rachados.
A dor da vergonha também pode ter origem nas imperfeições dentárias. Ou na obrigação de permanecer em enormes filas, buscando assistência à saúde. Finalmente, no jeito bruto, desajeitado, “preguiçoso” rotulado preconceituosamente de "Jeca Tatu", "Macunaíma".
O que acontece com boa parte do clero do Brasil quando se identifica consciente e inconscientemente aos padrões oferecidos pela elite?
Esse episódio é antigo na história humana e merece reflexão profunda e demanda muito mais tempo. No quinto capítulo do livro eu tento explicar a partir da filosofia clássica – do Mito da Caverna de Platão, da Filosofia Renascentista, através de Etienne de La Boétie, do Período da Revolução Industrial, Karl Marx e Pós-Revolução Industrial com Antônio Gramsci. Finalizo convocando a psicanálise com Freud e Lacan sobre o estudo do narcisismo.
Particularmente, La Boétie, no seu livro “Tratado da servidão voluntária”[4], sempre percebeu com estranheza de como os dominados – leia-se os excluídos - se submetem – e amam tanto a um sujeito desumano e cruel – o dominador. Como a ideologia da vergonha é capaz de produzir contraditoriamente um fascínio na relação entre o dominado e o tirano. Paulo Freire[5] já dizia: o oprimido introjeta o opressor.
La Boétie sinaliza três fatores que contribuem com essa submissão. Primeiro, a história de adestramento dos sujeitos nas instituições. Não há processo de educação, e sim, de treinamento de subserviência; segundo, esse processo de adestramento enfraquece o caráter das pessoas, deixando o sujeito vulnerável, frágil e com medo; terceiro: há uma rede de apoio entre as instituições que se alinham visando fortalecer o domínio do Tirano sobre as pessoas.
Esse livro faz ver que muitos seminaristas e presbíteros, ao tentarem superar a condição humilde de suas origens, acabam se deixando capturar por ideais narcísicos do seu próprio interior - uma espécie de “caverna platônica”. Repetem a previsão de La Boétie ou de Paulo Freire.
O narcisismo não é idêntico ao saudável amor-próprio, a autoestima, que não tem nada de patológico. Jesus nunca negou a autoestima. Ela é a base do amor ao próximo. Em Mateus 22,39, Jesus disse “ame o seu próximo como a si mesmo”. O amor-próprio não desonera o outro. O narcisista é cego frente ao outro. Só enxerga a sua imagem no espelho. O mundo é apenas sombra de si mesmo. O outro é dobrado até que o ego se reconheça nele. É a criança magnífica. Do pedestal do altar. Que exige ser amado de forma suprema.
Ao procurarem fugir da vergonha das origens, os formandos e o clero, acabam aí convivendo com a gênese bem real da ideologia da vergonha em toda nudez e brutalidade se deixando fascinar pelo poder, pelo prestígio, pelo “consumo de mercado do sagrado”, expresso na admiração por influenciadores religiosos, nas vestes clericais luxuosas e na valorização excessivamente litúrgica, centrada de forma clericalista e do ritual da sacristia em detrimento da vida pastoral. Mais de 80,0%[6] dos padres não promovem, em suas paróquias, ações voltadas à pastoral “Fé e Política”, ou seja, os temas essenciais a vida das pessoas humanas: questões ecológicas, raciais, proteção aos idosos, dos imigrantes, das crianças e dos adolescentes abandonados, pessoas em situação de rua, mulheres violentadas, ações de combate a fome, povos indígenas ou dispositivos culturais preventivos a drogadição e a cultura de morte de jovens. Essa opção presbiteral de autorreferência excessiva produz, em contrapartida, um sentimento de vazio, causa de mal-estar, tristeza, depressão e suicídio.
Essa alienação simbólica, analisada como “caverna platônica” contemporânea, gera sofrimento psíquico, dependência e distanciamento do núcleo essencial do cristianismo: o amor concreto e a causa do sofrimento do próximo.
Por outro lado, há um grupo de padres que tentam superar a servidão voluntária introjetada pela ideologia da vergonha. Durante suas histórias de vida passaram a tomar consciência de suas vergonhas, de suas causas e feitos. Assim, vem construindo em suas paróquias pastorais voltadas aos grandes temas que oprimem as pessoas.
Essa paixão amorosa pelo sofrimento psíquico dos mais sofridos é a causa do Evangelho de Jesus e da utopia histórica vivida por inúmeros bispos, padres e cristãos na Igreja Católica.
A maioria de nossa geração de cabelos brancos, lembra de Dom Helder, as Irmãs Dulce e Dorothy, Zilda Arns, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Tomás Balduíno, Dom Luciano Mendes, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Antônio Fragoso, Dom Celso Queiroz, Dom Angélico, Dom José Maria Pires, os primos Lorscheider, Ivo e Aloisio, Dom Valdir Calheiros, vários padres, como Josimo Morais Tavares, leigos, como Santo Dias, Michel Levan. E, centenas de trabalhadores (as) mortos pelo crime organizado do latifúndio.
Esses mensageiros do evangelho libertador, como nos diz os astrônomos, são estrelas que brilharam com muita intensidade no universo. Eles e elas, como as estrelas, não existem mais. Todos e todas morreram. Mas a intensa claridade de luz, deixada por eles e elas, permanecem brilhando até hoje entre nós. Luzes que denominamos RESISTÊNCIA – RE- EXISTEM – RE-INVENTAM A ESPERANÇA. CORAGEM E INDGNINAÇÃO contra a ideologia da vergonha. Essa é a mensagem central do livro.
[1] Lacan, J. O triunfo da religião. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
[2] A Bíblia Sagrada. Tradução Oficial da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Brasília: Edição CNBB.
[3] SOUZA, Jessé. O pobre de direita. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2024. p. 70.
[4] LA BOÉTIE, E. Discurso da servidão voluntária. São Paulo: Brasiliense, 1982.
[5] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 18 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968. p.79.
[6] PEREIRA, José Carlos. Operários da fé. São Paulo: Matrix, 2023.