O fenômeno Frei Gilson em colisão com os ensinamentos do magistério católico. Artigo de Thiago Gama

Frei Gilson | Foto: Reprodução/Instagram

18 Outubro 2025

"A sua cruzada não é um combate, mas algo que beira a linha tênue da alienação dos fiéis católicos", escreve Thiago Gama, doutorando em História Comparada (História da Igreja) na UFRJ.

Eis o artigo.

Entre 15 de agosto e 28 de setembro de 2025 durante as madrugadas, enquanto o país dormia, uma liturgia digital de proporções ainda não definidas reunia no YouTube uma congregação de fiéis anônimos e vastíssima. A voz de um homem, Gilson da Silva Pupo Azevedo (1986), o Frei Gilson, como ficou nacionalmente conhecido, conduzia milhões de fiéis em Ave-Marias, exortando a todos e todas a contemplar os mistérios das vidas de Jesus e Maria.

O fenômeno configura-se como uma catarse da Igreja Católica, que vem perdendo fiéis com uma velocidade estonteante desde os anos 1980. A oração repetitiva das contas do terço fora transmitida do silêncio de um mosteiro para milhões de telas de celulares e “Smart TVs” do mundo inteiro. Não há o que se questionar, Frei Gilson é, hoje, o que o Padre Marcelo Rossi (1967) fora no fim dos anos 1990, quando enchia o autódromo de Interlagos, em São Paulo; com uma diferença: o Padre Marcelo foi um fenômeno de massa que operava numa era analógica. Frei Gilson opera em 5G e Fibra Ótica.

Neste império midiático onde a fé se quantifica em algoritmos de engajamento e estádios lotados — como os 80 mil reunidos no Mané Garrincha em agosto, superando as expectativas de público —, forjou-se um dos mais influentes, celebrados e complexos fenômenos do catolicismo brasileiro contemporâneo. Um sacerdote carmelita que, na busca por uma restauração da pureza da fé, promove uma espécie de teologia que o coloca em uma documentada dissonância com o próprio corpo doutrinário que faz parte do Depósito de Fé da Igreja Católica Apostólica Romana.

A análise rigorosa de seu discurso público revela um afastamento não apenas da ala progressista da Igreja (o que seria trivial nos dias em que vivemos), mas do sólido e contínuo Magistério de pontífices do século XX e XXI, incluindo aqueles considerados pilares do mais robusto pensamento conservador católico (o que é espantoso)!

O Leitmotiv desta análise se baseia em uma premissa cara ao teólogo, cardeal, Papa Bento XVI e, depois, Papa Emérito Joseph Ratzinger (1927-2022) em sua fase acadêmica e também em seus escritos pontifícios: a fé católica não apenas não teme a razão, ela a pressupõe, a exige e a eleva. O Deus que se revela na história é “Logos”, É, por assim dizer, “Verbo Criador Onisciente”, em outros termos – a Razão Criadora. Uma teologia que simplifica o real, que abdica do esforço intelectual para compreendê-lo ou que oferece respostas fáceis para angústias complexas corre o risco de se tornar não mais forte, mas intelectualmente indigente, ofendendo a dignidade do próprio Deus revelado e professado.

A partir desta perspectiva que passamos a discutir, estritamente de forma socioteológica Frei Gilson, e o conjunto de evidências, contrapostos ao Magistério da Igreja, pode conflitar bastante.

Frei Gilson parece negligenciar a intervenção de Pio XII (1939-1958) e seu documento Divino Afflante Spiritu de 1943, esta Carta Encíclica não foi uma mera sugestão, mas um documento vinculante e ordenativo, que predicava o uso da crítica histórica e filológica para a leitura bíblica, condenando explicitamente que os textos Sagrados redundassem no fundamentalismo, que ignora os gêneros literários e o contexto histórico dos textos sagrados. A teologia pregada por Frei Gilson, ao operar uma leitura descontextualizada das Escrituras para justificar a subordinação da mulher, não está sendo “mais católica”, ela simplesmente entre em rota de colisão com uma diretriz do Magistério Sagrado da Igreja de Roma.

Este Magistério hodierno – a voz viva dos sucessores de Pedro, a Sé Apostólica não é uma opinião entre outras. Como definiu o próprio Pio XII na encíclica Humani Generis de 1950, os ensinamentos propostos pelo Papa, mesmo em seu Magistério ordinário, “exigem o assentimento dos fiéis” (§20). Isto é, a dissonância se torna cristalina quando contrapomos o ensinamento papal à práxis pastoral do Frei Gilson. Conforme documentado com riqueza de detalhes pelo jornal O Globo, publicada em 12-03-2025 e assinada pela jornalista Rafaela Gama: um dos sermões de Frei Gilson que ganhou ampla notoriedade aborda a relação entre homens e mulheres. No trecho de vídeo analisado pela reportagem, o Frei, dirigindo-se a um público feminino, afirma que a missão da mulher é ser “auxiliar” do homem. Ele fundamenta sua tese em uma leitura direta do livro do Gênesis 2,18, sem qualquer intertextualidade, ou aquiescência com uma possível alegoria literária, ou, mais precisamente, um mito fundador judaico: “Deus fez você. Olha o texto bíblico Gênesis 2,18, o que está escrito aí: ‘Vou dar-lhe uma auxiliar que seja adequada’. (...) Aqui você já começa a entender qual é uma missão da mulher. Ela nasceu para auxiliar o homem” (iniciando em 00:03 do vídeo “Cássio Oliveira - Pq o Frei Gilson acha que a “Mulher nasceu para ser AUXILIAR dos homens”).

Na mesma pregação, ele diagnostica que “uma fraqueza da mulher”, em palavras textuais, é que “ela sempre quer ter mais”, associando essa busca ao que chama de “empoderamento”, palavra que, segundo ele, é “do mundo atual” e parte de uma “guerra dos sexos” que seria “ideologia pura” e “diabólica” (iniciando em 00:00 do vídeo “Video de tricotei”). A reportagem de O Globo destaca ainda a conclusão do Frei: “É claro ver que Deus deu ao homem a liderança. É claro ver que Deus deu ao homem o ser o chefe. Isso está na Bíblia. O homem é o chefe do lar” (iniciando em 00:25 do vídeo “Video de tricotei”). Esta abordagem exegética é precisamente o que a Pontifícia Comissão Bíblica, então presidida pelo Cardeal Joseph Ratzinger, condenou no documento abaixo:

A Interpretação da Bíblia na Igreja (1993) – Este documento, que tem valor de Magistério, representa a posição oficial da Igreja: o fundamentalismo não é uma opinião válida, mas um método rejeitado, ao alertar que o fundamentalismo “convida a uma espécie de suicídio do pensamento” (§I, F), pois se recusa a reconhecer o caráter histórico da revelação bíblica e se torna incapaz de aceitar plenamente a verdade da própria Encarnação (observem os leitores que estamos trabalhando com os baluartes do conservadorismo católico, mas falamos de outra cepa de conservadores, os conservadores dos mais altos graus das hierarquias acadêmicas).

O também conservador Papa Pio XII não foi o único a estabelecer as balizas para uma exegese intelectualmente honesta e academicamente válida, foi todo o século XX Magisterial e Papal quem o fez, ainda antes dele: de Leão XIII (1878-1903) a Bento XVI (2005-2013), que ergueu o imponente e complexo edifício da Doutrina Social da Igreja que a retórica de Frei Gilson parece abruptamente romper. A sua invocação de um inimigo totalmente anacrônico e tão caro ao bolsonarismo anacrônico, o “flagelo do comunismo” largamente descrito na mesma reportagem de O Globo também documentada por um vídeo de uma cerimônia de adoração ao Santíssimo Sacramento (iniciando em 00:06 do vídeo de “Fernanda Salles – Frei Gilson, perseguido pela esquerda, orando a Deus “Livrai-nos do comunismo”) —, ignora que o Magistério de Pedro, desde o seu início, propõe uma via que critica ambos os extremos ideológicos que instrumentalizam a pessoa humana, se o ataque fosse coerente, mas não o é (porque não pode sê-lo, Frei Gilson seria solidário com os trabalhadores de países do Sudeste Asiático que trabalham para multinacionais norte-americanas, para montagem de tênis e chips de computadores, até com os brasileiros que vivem em situação de extrema pobreza, tudo isto provocado por um capitalismo sem peias criticado por João Paulo II (1978-2005), como veremos adiante.

O Papa Leão XIII (1878-1903), na seminal Rerum Novarum (1891), embora rejeitasse a “solução dos socialistas” (§4) por abolir a propriedade privada, dedicou a maior parte do documento a uma defesa veemente da dignidade dos trabalhadores, afirmando que “não é justo exigir do homem tanto trabalho a ponto de fazer, pelo excesso de cansaço, embrutecer o espírito e enfraquecer o corpo” (§33) e que é um “dever estrito de justiça” que o Estado se interesse pelo bem-estar dos operários (§27).

Quarenta anos depois, Pio XI (1922-1939), na Quadragesimo Anno de 1931, reafirmou esta via, criticando tanto o socialismo quanto o “individualismo” liberal (§88) e alertando para o perigo de um “funesto e abominável internacionalismo do capital” (§109). Este equilíbrio doutrinário, que defende a justiça social sem aderir ao coletivismo materialista, é sistematicamente omitido na pregação de Frei Gilson, que reduz a complexa questão social a um único inimigo ideológico, uma simplificação que gera um “pânico moral”, conceito cunhado pelo sociólogo Stanley Cohen (1942-2013) para descrever o processo pelo qual uma condição, pessoa ou grupo é definido como uma ameaça aos valores da sociedade. Opera, assim, o mesmo conceito pelo qual operava o jurista alemão Carl Schmitt (1888-1985), em sua obra clássica Politishe Theologie publicada pela primeira vez em 1922 (Teologia Política). O “Estado de exceção” e a distinção clara do amigo vs. inimigo é o que defini o soberano, e, por conseguinte, toda a política. Para Frei Gilson, o seu inimigo schmittiano é o comunismo.

O frade prega contra este espectro, os papas João XXIII (1958-1963) e Paulo VI (1963-1978) arquitetaram a Ostpolitik, junto ao Cardeal Agostino Casaroli (1914-1998) – uma política de diálogo pragmático e pastoral com regimes comunistas, movida não por afinidade ideológica, mas pela prudência e pela busca do bem comum e comunitário para os fiéis sob tais regimes. De modo que lidar com o comunismo é uma agenda antiga da Igreja, e já datada. Frei Gilson, nascido em 1986, portanto, um homem novo, faria muito bem nutrir-se de História, mas não de uma história banal ou trivial, mas da História como ciência dos homens na categoria tempo (!), quando assim proceder, será capaz de discernir que lutar contra o comunismo hoje, no Brasil, seria equivalente a levantar um Auto de Fé na Times Square de 2025.  

Chegamos ao que muitos no Brasil, desonesta ou desinformadamente, confundem: política de redistribuição de renda num dos países mais desiguais do planeta, não é, nem de longe, Welfare State no sentido sueco, quanto mais comunismo soviético.

A associação de qualquer política de compensação social a uma “agenda comunista” confronta com o Magistério social e o Depósito de Fé católico. João XXIII, na Encíclica Mater et Magistra de 1961, ensinou que a intervenção do Estado na economia se justifica para “promover a produção de bens e serviços úteis e concorrer para o progresso do nível de vida de todos os cidadãos” (§52) e, na Pacem in Terris de 1963, declarou que “toda a criatura humana é pessoa” (§9), cuja dignidade exige direitos sociais e econômicos.

Paulo VI (1963-1978), na Populorum Progressio de 1967, foi ainda mais contundente ao declarar que “a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto” (§23) e que “o bem comum exige algumas vezes a expropriação” (§24), ensinamentos que desmantelam a narrativa de que a preocupação com a desigualdade é uma pauta extrínseca à fé católica. Em sua carta apostólica Octogesima Adveniens de 1971, o mesmo Paulo VI alertou os cristãos a exercerem discernimento sobre as diversas correntes socialistas, mostrando uma complexidade que a retórica maniqueísta de Frei Gilson procede a um apagamento. Isto é muito grave, do ponto de vista hierárquico, para um sacerdote católico, muito.

Outro conservador que põe abaixo o senso comum e em xeque o pensamento do referido frei: o Papa João Paulo II (1978-2005), cuja vida foi um testemunho de combate ao totalitarismo soviético, oferece o contraste devastador à teologia seletiva de Frei Gilson. Na encíclica Laborem Exercens de 1981, O Sucessor do Príncipe dos Apóstolos afirmou o princípio da “prioridade do trabalho sobre o capital” (§12), um pilar fundamental da Doutrina Social que subverte a lógica do lucro como fim último. Na Carta Encíclica “Sollicitudo Rei Socialis” de 1987, ele introduziu o conceito de “estruturas de pecado” (§36), como o “desejo exclusivo do lucro” e a “sede de poder”, que transcendem as falhas morais individuais e exigem uma crítica sistêmica das engrenagens econômicas e políticas que geram e perpetuam a injustiça. Na Centesimus Annus de 1991, ao celebrar a queda do comunismo, o papa polonês alertou contra a idolatria do mercado, afirmando que existem “necessidades humanas coletivas e qualitativas que não podem ser satisfeitas pelos seus mecanismos” (§40) e que uma sociedade que não se organiza para atender a essas necessidades não podem ser consideradas justas.

Foi este mesmo João Paulo II quem, na encíclica Fides et Ratio de 1998, reafirmou a aliança indissolúvel entre crer e compreender, ao escrever que “a fé e a razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade”.

Ao silenciar sobre este vasto e matizado corpo doutrinário, o discurso de Frei Gilson apresenta não um conservadorismo católico par excellence, mas uma seleção ideológica que o torna dissonante do Magistério Petrino. Os documentos que compõem as Cartas Encíclicas, principalmente aquelas posteriores ao Concílio Vaticano II (1962-1965), são nuançados e matizados. O que Frei Gilson apresenta como proposta teológica é uma espécie de catarismo do século XXI, uma doutrina que nasceu na França na região de Languedoc, entre os século XII e XIII, que se traduzia no mais canhestro dualismo maniqueísta cristão.

A figura de Joseph Ratzinger, um dos maiores teólogos do século XX, o Papa Bento XVI (2005-2013), emerge como o teólogo que já havia desmantelado a base do debate que Frei Gilson tenta ressuscitar. Na encíclica Spe Salvi de 2007, Bento XVI analisa o marxismo não como uma ameaça política contemporânea, mas como um erro filosófico fundamental. O então Bispo de Roma reconhece que Karl Marx (1818-1883) descreveu com exatidão a alienação do seu tempo, mas aponta seu “erro fundamental: o materialismo”. Marx, segundo o Papa Bento XVI, “esqueceu o homem e esqueceu a sua liberdade. (...) Acreditou que, uma vez solucionada a economia, tudo ficaria resolvido” (§21). Para Ratzinger, o debate já havia se movido para um plano mais profundo: “Não é a ciência que redime o homem. O homem é redimido pelo amor” (§26). Que um frade no Brasil de 2025, diante de uma imagem da Virgem e ladeado pela bandeira nacional, ore para que os “erros da Rússia” não assolem o Brasil e pelo livramento do “flagelo do comunismo”, conforme documentado em vídeo pela reportagem de O Globo, assombra toda a comunidade universitária brasileira, e, por evidente, todos e todas que possuem um mínimo de bom senso neste país, seja de que confissão religiosa, estrato social, ou região do país for.

A sua cruzada, portanto, não é um combate, mas algo que beira a linha tênue da alienação dos fiéis católicos. O assunto que Frei Gilson insiste em levantar já se encontrava intelectualmente superado até pelo Papa Emérito que, em sua carta testamento, recordou ter enfrentado e visto o declínio da “interpretação marxista radical” da fé. A cruzada de Frei Gilson acaba por ser apropriado por figuras como Nikolas Ferreira e Jair Bolsonaro, que, como atesta a mesma reportagem de O Globo, saíram em sua defesa pública de forma feroz.

Para além da dissonância doutrinária, é preciso enquadrar Frei Gilson nos termos da sociologia da economia dos afetos de nossos tempos, porque, talvez, a questão teológica já não dê mais conta do fato social durkheimiano que ele se tornou.

A análise teológica disseca o conteúdo da pregação, mas é a lente sociológica que ilumina o sucesso da sua performance. Ele não é apenas um líder religioso em si, como fora um João Paulo II, extremamente midiático, Frei Gilson é mais do que isso: é um sintoma da condição pós-moderna, ou, na formulação do filósofo Byung-Chul Han, autor do livro a Sociedade do cansaço. Sua pastoral oferece os antídotos precisos para os venenos do deslocamento dos sentidos e das narrativas desta era: em um mundo de fluidez e impermanência baumaniana, a recitação diária e coletiva do Rosário ergue um ritual fixo, uma “âncora ontológica” de paz, fluidez, e hipnótica de apartamento do mundo da violência.

O que Frei Gilson oferece de forma eficaz é a estruturação do tempo, ele confere previsibilidade, suas recitações dos terços marianos aplacam ansiedades. Diante de uma complexidade paralisante, seu discurso binário (Deus vs. comunismo, pureza vs. mundanismo) é psicologicamente tranquilizador, é puro maniqueísmo bolsonarista operando através da religiosidade. Não se trata de X ou Y ou Z. É simplesmente X ou Y, e isso é tudo. Frei Gilson não vende uma teologia complexa, ele não escreve encíclicas de 200 páginas que começam com fórmulas latinas, como faz o líder de sua religião, mas oferece a certeza, um dos produtos mais escassos e desejados de nosso tempo.

Frei Gilson fez uma “paróquia digital” de milhões de seres humanos ávidos por sentido de vida, que não é o “comunismo” que lhes rouba, mas o capitalismo sem regulação. O frei construiu uma comunidade imaginada que transcendeu o espaço físico, oferecendo ao indivíduo atomizado um sentimento de pertencimento sem as exigências da interação comunitária real. A genialidade simplória de Frei Gilson foi ter captado, mesmo que involuntariamente, o Espírito do Tempo hegeliano do homem contemporâneo desenraizado.

Com o depósito de fé assim preenchido e a análise sociológica assim delineada, o pontificado do Papa Francisco (2013-2025) revela não uma ruptura, mas a consequência lógica e pastoral deste longo desenvolvimento doutrinário, e a mais clara dissonância com o modelo do frei brasileiro. Toda a arquitetura pastoral de Frei Gilson — a “Igreja-Fortaleza”, a demonização de inimigos ideológicos na forma schmittiana mais primitiva, a fuga do “barulho” do mundo — é a exata patologia que o pontificado de Jorge Mario Bergoglio (1936-2025) diagnosticou e combateu.

Na exortação apostólica Evangelii Gaudium de 2013, o Metropolita da Itália, o Papa Francisco clama por uma “Igreja em saída”, bem ao estilo da Companhia de Jesus, que são “contemplativos na ação”. Francisco preferiu uma Igreja “acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas ruas” a estar “enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (§49). Francisco detestou uma Igreja que se mostrasse clerical e hierárquica, ele queria uma Igreja com cheio de pastor, conforme disse tantas vezes, e este tipo de Igreja Católica não pode só caber na bolha da internet, ela deve correr às necessidades prementes da periferia.

Na encíclica Fratelli Tutti de 2020, o Papa Francisco elevou a “política com P maiúsculo” à mais alta forma de caridade (§180), demolindo a falácia de uma fé apolítica ou meramente reativa. Na encíclica Laudato Side 2015, o papa foi além, integrando de forma inseparável a justiça social e a justiça ecológica, criticando um “paradigma tecnocrático” (§101) que é precisamente o mesmo que alimenta visões desencarnadas e espiritualizadas da fé, divorciadas dos dramas do mundo e da pessoa humana. Soterrado por este peso magisterial esmagador, o discurso do Frei do Monte Carmelo revela-se não como a salvaguarda da tradição romana, mas como uma voz em profunda relutância em, no mínimo, deter-se a estudar o Magistério vivo e atuante da Igreja Católica, e reforçamos, principalmente a riqueza que emanou do Concílio Vaticano II ou do Pacto das Catacumbas de 1965, que levou a Igreja Católica ao caminho irrevogável que tornou a sua bússola moral: “Opção Preferencial pelos Pobres”.

A reportagem de O Globo documenta o momento em que Frei Gilson, ao comentar sobre o uso do apelido “pretinha” para uma fiel, desqualifica o debate sobre racismo: “– A gente tem a nossa querida pretinha aqui. Pretinha, todo mundo a chama de pretinha. É o nome que a gente gosta de chamar carinhosamente, e aí é ‘preconceito’. É a geração do ‘mimimi’, do ‘dodói’” (iniciando em 00:00 do vídeo “Vinicios Betiol – O Frei Gilson, aposta do bolsonarismo pra desvirtuar a fé católica pra política, ATACOU A LUTA DO MOVIMENTO NE”).

Confrontado com esta fala, esta reportagem procurou o professor Dr. Ivanir dos Santos, da UFRJ, uma das maiores autoridades morais e intelectuais do Movimento Negro no Brasil. Ele ofereceu um veredito profundo e, para utilizar um termo moderno, recalculou a frase de Frei Gilson nestes termos: “A fala de Frei Gilson”, afirma o professor, “não é um mero deslize retórico. Ela se inscreve em uma longa tradição de epistemicídio, um conceito que Franz Fanon ajudou a descrever: a violência que não apenas segrega corpos, mas busca aniquilar seus modos de saber, sua cosmovisão e sua dignidade ontológica. Ao reduzir a dor de séculos a um ‘mimimi’, o Frei não apenas desrespeita milhões de brasileiros; ele nega a validade de sua experiência humana e espiritual. Sua fala presta um desserviço não apenas à comunidade católica, mas ao próprio tecido social brasileiro, pois reativa feridas coloniais que a sociedade tenta, com tanto esforço, superar. Revelando como uma falha na caridade intelectual e pastoral que se manifesta, em última instância, uma falha radical na caridade evangélica, como eu a entendo”.

Eis o veredito final de um expoente da sociedade civil que transcende a mera sensibilidade: a fala do frei revela uma falha na Caritas Católica que se converte, inevitavelmente, em uma falha radical do emprego do Evangelho. A ofensa não deve ser encarada como uma questão de sensibilidade superficial, é, antes, um ataque a uma sabedoria ancestral, vindo de um dos mais expressivos líderes do movimento negro, com trânsito amplo nas altas esferas do catolicismo, desde o cardeal arcebispo da cidade do Rio de Janeiro, Dom Orani João Tempesta, O.Cist., até o Papa Francisco. A luta de Ivanir dos Santos pela tolerância religiosa já recebeu reconhecimento do Departamento de Estado dos Estados Unidos em 2019. A lembrança da condecoração que Ivanir dos Santos recebeu de Mike Pompeo (1963), secretário de Estado do primeiro governo Trump (2018-2021), só amplifica a ironia, posto que figuras ligadas ao conservadorismo mais arraigado dos Estados Unidos reconhecem uma luta que o discurso de Frei Gilson, no fim das contas, trai e inviabiliza.

Mais do que todos os volumes da Suma Teológica de São Tomás de Aquino (1225-1274), um ensinamento muito mais simples possa servir a Frei Gilson, para não deixar que seu discurso seja apropriado por uma extrema-direita que deseja dividir o país, e o conselho vem de uma pessoa que o Frei deve admirar, mas de quem ele não conhece a obra: “O amor me explicou tudo” – Karol Józef Wojtyła (1920-2005). 

Referências

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BETIOL, Vinicios [@vinicios_betiol]. O Frei Gilson, aposta do bolsonarismo pra desvirtuar a fé católica pra política, ATACOU A LUTA DO MOVIMENTO NEGRO e disse que quem reclama de racismo está de "mimimi". X (Twitter), 10 mar. 2025. 1 vídeo.

Nota: Título e conteúdo referenciados na reportagem de Rafaela Gama para o jornal O Globo, publicada em 12 de março de 2025.

OLIVEIRA, Cássio [@cassiooliveira]. Pq o Frei Gilson acha que a "Mulher nasceu para ser AUXILIAR dos homens"? X (Twitter), 8 mar. 2025. 1 vídeo.

Nota: Título e conteúdo referenciados na reportagem de Rafaela Gama para o jornal O Globo, publicada em 12 de março de 2025.

SALLES, Fernanda [@reportersalles]. Frei Gilson, perseguido pela esquerda, orando a Deus: "Livrai-nos do comunismo". X (Twitter), 11 mar. 2025. 1 vídeo.

Nota: Título e conteúdo referenciados na reportagem de Rafaela Gama para o jornal O Globo, publicada em 12 de março de 2025.

TRICOTEI. Mensagem do Frei Gilson sobre mulheres viraliza nas redes sociais. Instagram, [s. d.]. 1 vídeo.

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