Depois dos anos difíceis de inverno eclesial, um latino-americano chegou ao papado. Com ousadia, Francisco tem tentado provocar mudanças no estilo pastoral e nas estruturas de poder. Entretanto, muitas vezes lhe falta o apoio necessário. Imaginem o que Dom Hélder, Dom Luciano e Dom Zumbi teriam feito sob o pontificado de Francisco? Provavelmente, seriam os cardeais mais fiéis e afinados com a reforma bergogliana.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“Ser o que se é,/ falar o que se crê,/ crer no que se prega,/ viver o que se proclama/ até às últimas consequências”, escreveu com coerência Pedro Casaldáliga, um dos grandes bispos da Igreja da América Latina. Pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que três pastores cumpriram com convicção esse compromisso enunciado pelo poema acima. E neste dia 27 de agosto, faz-se memória desses bispos que abraçaram, com ousadia e coragem, a profecia do seguimento de Jesus pobre e humilde. Três servidores da Igreja do Vaticano II em uma época de grandes mudanças.
Dom Hélder Câmara, Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida e Dom José Maria Pires há 25, dezoito e sete anos, respectivamente, fizeram a sua páscoa definitiva, mas seus testemunhos continuam reverberando nos corações daqueles que conhecem suas vidas. Em seus ministérios encarnaram em si, “até as últimas consequências”, a Igreja em saída, tão retomada nesses tempos pelo Papa Francisco.
Reconhecido e visionário articulador, Dom Hélder foi o homem dos grandes projetos, tais como: a fundação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do Conselho do Episcopado Latino-Americano (Celam); a criação da Cruzada de São Sebastião e do Banco da Providência para atender os marginalizados; e o fortalecimento da Ação Católica, de quem foi assistente eclesiástico e de onde saíram importantes lideranças políticas.
Entretanto, diante da intensa ação apostólica desenvolvida por toda a vida, há uma faceta pouco valorizada em sua caminhada: a forte mística que o alimentava. Durante a madrugada, passava horas em vigília rezando, contemplava o vivido e se preparava para o novo dia. Sua veia mística ficou mais do que provada nos quatorze anos em que, já emérito, viu, em silêncio obediente, seu sucessor agir com autoritarismo e destruir parte do seu legado com truculência.
Antes de ser nomeado arcebispo de Olinda e Recife, ficou longos anos (1936-1964) na então capital da República, parte deles como bispo-auxiliar do Rio de Janeiro. Nesse período, travou inúmeros e valiosos contatos, civis e eclesiásticos, exercendo uma forte influência nos episcopados nacional e latino-americano. Certamente, ficaria consolado ao constatar as iniciativas de Francisco para retomar e fortalecer a colegialidade e o protagonismo das conferências de bispos de cada país:
“Dom Hélder quis a CNBB, porque queria bispos engajados nos problemas sociais do Brasil. Sabia que os bispos, isolados em comunhão bilateral somente com a Santa Sé, nunca teriam condições para tomarem posições firmes e claras diante das situações da sociedade brasileira (...). No mundo católico, a CNBB tem uma fisionomia bem particular, que não decorre de textos jurídicos, e sim da sua história. Não é uma Conferência Episcopal semelhante às outras. Ela é a CNBB. Quem fez a CNBB foi Dom Hélder. Ele formou e animou durante 12 anos o Secretariado-geral, fazendo dele e dos diversos departamentos um centro ativo, um motor, um centro de iniciativas e de divulgação no Brasil inteiro”.[1]
Seu legado foi impactante na estruturação da conferência episcopal, que, mesmo com a perda de protagonismo e relevância dos últimos anos, continua sendo uma força considerável na sociedade brasileira. Quando da derrota da ala progressista na eleição para a CNBB, em 1964, Dom Hélder confessou sua preocupação: “aflige-me também a vitória do conservadorismo” (Circular 17 de 27/28-09-1964). Conhecedor das divisões e contradições no seio da liderança eclesial, nunca deixou de trabalhar por uma Igreja mais solidária com as injustiças sociais.
Ainda que longe de uma posição institucional, sua influência mundial permaneceu notável e sua voz ecoou por vários países da Europa e nos EUA. Artífice do Segundo Concílio Vaticano, sem ter feito um único discurso nas sessões públicas, ajudou a impedir que o setor conservador impusesse a sua agenda pré-estabelecida nos palácios romanos. Com certeza, é uma das figuras mais marcantes da Igreja da Libertação:
“Dom Hélder consegue ser uma síntese da melhor tradição espiritual da América Latina, pois, no dizer do historiador Beozzo, nele encontramos o profetismo e a veia literária de Pedro Casaldáliga, a intrepidez e o senso político de Ivo Lorscheiter, a atenção aos pobres e a capacidade de conciliação de Dom Luciano Mendes de Almeida, a bondade e a intuição teológica de Aloísio Lorscheider, a coragem e a defesa intransigente dos direitos dos pequenos de Evaristo Arns”.[2]
Como disse no seu discurso de chegada à Arquidiocese de Olinda e Recife, Dom Hélder era “bispo de todos” e, como hábil homem do diálogo, jamais se negou a conversar com quem quer que fosse, inclusive, com os militares e os poderosos das elites. Todavia, sensível à realidade das massas exploradas, soube se colocar ao lado dos mocambos em detrimento dos senhores de engenho, ao tocar o drama de seu povo: “fico penoso em ouvir o Salmo que me era caro ‘O Senhor é o meu Pastor, nada me há de faltar’. Olha a minha gente: como fazer cantar que ‘nada faltará’ quando tudo falta, inclusive atendimento religioso?! (...) Meu povo tem comido rato” (Circular 220 de 5/6-6-1965).
Nos mais de vinte anos em que pastoreou essa Igreja local (1964-1985), o Dom foi trazendo seu toque particular e dispensou o carro oficial apenas para ocasiões solenes, propôs um novo modelo de formação para os seminaristas em pequenas comunidades inseridas nos bairros periféricos e abriu o palácio episcopal aos empobrecidos. Simples, fez-se próximo dos sofrimentos dos excluídos daquela região, apoiando as suas lutas e organizações sociais.
Lúcido, percebia as resistências institucionais de sua Igreja e de seus auxiliares: “o portão dormiu aberto. Mas já sei que vencerá a prudência. Pesarão as estruturas. E o portão se fechará” (Circular 261 de 28/29-07-1965). Coerente com o Pacto das Catacumbas, do qual foi um dos promotores, o arcebispo deixou a residência oficial (12-03-1968) e foi morar na sacristia da Igreja das Fronteiras, onde viveu até seu falecimento, em 1999.
Entre seus aliados mais próximos, estava Dom José Maria Pires (1919-2017), o vizinho arcebispo da Paraíba. Na festa de 65 anos de sacerdócio do amigo de lutas, o bispo de João Pessoa reconheceu que o “Dom”:
“Dinamizou uma Igreja mais povo de Deus do que hierarquia, mais comunidade do que sociedade, mais inserida no mundo do que no lado do mundo, servidora e não senhora, defensora da verdade e não proprietária. Por isso, com Dom Hélder, o clero se sentiu presbítero, corresponsável pela caminhada loca; os leigos organizaram-se em comunidades, movimentos, associações e setores e, mantendo a comunhão com a hierarquia, assumiram responsabilidades na evangelização, dando a sua indispensável contribuição na construção do reino de paz e justiça”.[3]
Mineiro de Conceição do Mato Dentro, Dom Maria Pires nasceu em uma família pobre e foi nomeado para a Diocese de Araçuaí (1957-1965). Ao ser posteriormente transferido para a capital nordestina, tornou-se o primeiro arcebispo negro do país, missão que ocupou por quase trinta anos (1966-1995), até se tornar emérito.
Aos poucos foi tomando consciência de sua negritude, transformando-se em um grande aliado da luta do movimento negro e um vibrante entusiasta da Pastoral Afro-Brasileira. Na homilia que proferiu na icônica Missa dos Quilombos, realizada dia 22 de novembro de 1981, em Recife, Dom Zumbi – como ficou conhecido – conclamou:
“Está sendo longa a espera, meus irmãos. Da morte de Zumbi até nós são decorridos já quase três séculos. Mas a terra conservou o sangue de nossos mártires. Este sangue fala, clama e seu clamor começa a ser ouvido. Primeiro por nós negros que estamos recuperando nossa identidade e começando a nos orgulhar do que somos e do que foram nossos antepassados. A sociedade também escuta esse clamor. Muitos do seio dela nos apoiam e se colocam ao nosso lado para caminharmos juntos. A viagem é longa e penosa. Quase tudo está por fazer. O negro como negro continua marginalizado”.
Infelizmente, o Brasil nunca enfrentou o seu passivo escravocrata, o que faz o racismo estrutural reverberar até os presentes dias. De acordo com os dados do Atlas da Violência 2023[4], cerca de 8 a cada 10 vítimas de homicídio no país eram de pessoas negras, em 2021. Trata-se do maior índice em onze anos! Ou seja, o número de homicídios entre negros era de 31 casos para 100 mil habitantes, enquanto a taxa do restante da população foi 10,8. Portanto, o triplo do apurado entre brancos, amarelos e indígenas.
Outro dado alarmante, que corrobora a importância da militância de Dom Zumbi, é a titulação das terras quilombolas pelo Estado brasileiro. Desde o advento da Constituição Federal, em 1988, apenas 54 territórios foram regularizados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Restam pendentes mais de 1800 processos, que, se continuarem nesse ritmo, vão demorar mais de mil anos para se encerrar[5].
Ciente das profundas desigualdades sociais que imperavam no campo – realidade que pouco mudou conforme demonstram os dados do Caderno dos Conflitos no Campo, sistematizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) – Dom Maria Pires escreveu a Segunda Carta Pastoral, “Sobre o sofrimento dos agricultores”, publicada há quase cinquenta anos (15/06/1975). Ao tratar da questão agrária afirmou com firmeza que “o Evangelho que pregamos ou é anúncio de libertação ou não é Evangelho”, sendo que “o Evangelho tem que ser também denúncia da opressão”:
“Os despejos de moradores, o esbulho dos direitos daqueles que cultivam a terra e a fazem produzir para a comunidade, não são fazem que ocorrem somente na Paraíba: dir-se-ia que este é o método adotado em todo o Brasil. (...) Até quando o progresso do país, a industrialização, a urbanização ou a organização das grandes empresas agrícolas terão que ser feitos à custa do sacrifício de humildes trabalhadores e de suas famílias? Até quando assistiremos impassíveis às arbitrariedades que reduzem à miséria e à fome honrados agricultores? Terá a nossa Igreja entendido o apelo que Deus lhe faz, neste momento histórico, para que ela, a exemplo de Moisés, as coloque decididamente do lado dos oprimidos?”
Em plena repressão da ditadura e vigiado de perto pelos militares, Dom Zumbi não deixou de levantar sua voz para denunciar a violência cometida pelos latifundiários contra os pequenos posseiros. Na homilia proferida em ação de graças pela União dos Agricultores de Alagamar (19/01/1980), ao comentar a passagem em que Jesus expulsa os vendilhões do templo, defendeu a necessidade da luta pela reforma agrária:
“Esta cena do evangelho aplicada ao gesto do povo tangendo o gado das roças, tendo à frente os bispos, é muito próprio para lembrar como é que Deus está presente na caminhada do povo, na luta do povo. Como agricultores, vocês plantam roça, lavoura, fruteira. Mas, como filhos de Deus, além dessas culturas, temos que plantar também o direito. Onde as coisas estão erradas, temos que consertar. Onde estão tortas temos que endireitar. (...) E essa planta não pode morrer não: deve germinar e crescer. O direito que vocês estão plantando como suor do rosto, com prisões, com sofrimentos, pode assim se expressar: A TERRA É DE QUEM DELA PRECISA. É um direito legítimo, mas que ainda não foi plantado, não foi reconhecido pelas leis porque a terra não está sendo daquele que nela trabalha. Também não está sendo daquele que dela precisa”.
Partícipe do Concílio Vaticano II, assumiu a Igreja pobre e dos pobres até o fim, colocando em prática o desejo do Pacto, assinado em Santa Domitila, em 1965. Seu companheiro de caminhada, Dom Hélder, escreveu sobre ele no prefácio de seu livro Do centro para margem[6]: “Dom José Maria vai às causas, vai às raízes... E fala claro, sem perder a serenidade, mas chamando as coisas pelos nomes. Quem quiser livrar-se de um Cristianismo desencarnado, quem quiser livrar-se de ensinamentos inodoros, incolores, pregados no vácuo, leia suas páginas". Nos últimos anos de vida morou com os jesuítas idosos, em Belo Horizonte, até perto de completar cem anos.
O terceiro bispo-profeta, Luciano Pedro Mendes de Almeida, apesar de ter falecido em 2006, era o mais novo do trio, tendo nascido em 5 de outubro de 1930, em uma família da zona sul do Rio de Janeiro. Depois dos anos iniciais de formação na Companhia de Jesus, o religioso fez a Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana (1955-1959), na mesma época em que houve a eleição do papa São João XXIII e a convocação do concílio, em 25 de janeiro de 1959. O maior evento eclesial do último século transcorreu na mesma localidade e período em que realizava o seu doutorado em Filosofia (1960-1965). Isso, evidentemente, deve ter lhe marcado para toda a vida.
Professor de filosofia e formador dos jesuítas, o Padre Mendes foi convocado pelo Cardeal Arns para ser bispo-auxiliar de São Paulo, em 1976. O arcebispo franciscano então já se consolidava como um dos baluartes dos Direitos Humanos, na luta contra o autoritarismo dos anos de chumbo. Incansável, Dom Paulo passará para a história como um dos grandes defensores dos presos políticos e principais denunciantes das torturas dos calabouços:
“Naquela oportunidade, dom Paulo me dirigiu uma palavra clara que me influenciou muito. Disse que ele achava que eu havia estudado muito, tinha-me formado, era professor, sacerdote, formador e rezava. Faltava-me uma coisa, o povo de Deus, e a vida de ministério episcopal me daria a presença do povo, o amor do povo”.[7]
Sua preocupação com os excluídos já vinha de longe, mas diante do estímulo recebido de Dom Paulo encontrou terreno fértil no coração do jovem bispo. Sensível às crianças e adolescentes em situação de rua, Dom Luciano irá fundar, junto com a Ir. Maria do Rosário e Ruth Pistore, a Pastoral do Menor. Afinal, “quem opta pelo menor escolhe a pessoa humana no seu valor radical”[8]. Conhecido pela sua bondade, o jesuíta estava consciente da necessidade de transformar as estruturas injustas, porque “somos responsáveis por essa terrível realidade”. “Para vencer a injustiça social”, continua, “é indispensável que cada um seja capaz de reconhecer a dignidade do pobre e se disponha a partilhar o que tem”[9].
Não dormia enquanto não tivesse atendido todas as pessoas, na porta de sua casa, sem que lhes tivesse dado algum alimento, colchonete ou cobertor. Seguramente, um dos seus sucessores é o Padre Júlio Lancellotti, atual Vigário do Povo da Rua, ordenado presbítero pelo bispo jesuíta. Décadas depois, apesar das perseguições, Padre Júlio mantém-se fiel ao velho mestre no cumprimento do amor e do serviço aos mais empobrecidos.
Com uma imensa capacidade de conciliação, foi um homem de governo, tendo ocupado por intensos vinte anos posições de responsabilidade na Igreja do Brasil e da América Latina. Cerca de quinze anos depois de Dom Hélder, assumiu como secretário-geral (1979-1986) e presidente da CNBB (1987-1995), seguido por um período na vice-presidência do Celam (1995-1999).
Gozando de invejável apoio dos seus pares, o jesuíta foi sucessivamente escolhido para representar a conferência nos Sínodos dos Bispos. Recuperando o seu papel e a relevância nos últimos anos, o Papa Francisco aposta com veemência na sinodalidade para renovar a instituição. Como tem repetido, a própria Igreja deve ser compreendida sob chave sinodal, para melhor se aproximar das primeiras comunidades do início do cristianismo. A experiência de Dom Luciano nessa seara era vasta, como se vê:
“Ele participou de todos os sínodos, em Roma, ocorridos durante o seu ministério episcopal, começando pela participação no Sínodo de 1980, depois no Sínodo sobre os Leigos, em outubro de 1987; Sínodo sobre os presbíteros, em 1990; Sínodo sobre a vida consagrada, em 1994; Sínodo sobre as Américas, em 1997; Sínodo sobre o ministério episcopal, em 2001; Sínodo sobre a Eucaristia, em 2005. Quando faleceu, já estava nomeado para participar do Sínodo sobre a Palavra, ocorrido em 2011. Foi ‘o bispo brasileiro que mais participou dos Sínodos no Vaticano’. Além desses eventos, ele participou ativamente e de modo decisivo da Conferência de Puebla, em 1979; de Santo Domingo, em 1992; e participaria da V Conferência que aconteceu em Aparecida (SP), se não tivesse falecido aos 27 de agosto de 2006”.[10]
Interlocutor atento, Dom Luciano possuía uma grande capacidade de síntese. Por isso, foi bastante demandado nos momentos eclesiais cruciais do último quarto do século XX. Sob o olhar severo da Cúria romana e sem partir para o enfrentamento público, o jesuíta desempenhou funções importantes nas Conferências de Puebla (1979) e Santo Domingo (1992). Sem deixar de lidar com as tensões e de tomar posição, possuía uma impressionante habilidade diplomática. E, nesse sentido, trabalhou incansavelmente por uma Igreja mais servidora e missionária.
A participação do bispo significou, nas palavras de Oscar Beozzo, como “os grãos de diamantes que Dom Luciano extraiu do muito cascalho acumulado no errático e penoso processo da Conferência de Santo Domingo”[11]:
“Em 1992, dom Luciano participou da IV Conferência do Episcopado Latino-Americano, a Conferência de Santo Domingo, e deu uma grande contribuição para a elaboração do documento final. O cardeal Ângelo Sodano, um dos três presidentes dessa conferência, tudo fez para que não houvesse um documento final e apenas propostas para serem encaminhadas a Roma, como era praxe nos sínodos romanos. (...) Essa conferência, que parecia caminhar para um fracasso, foi salva pela competência e desinteressado espírito de serviço de dom Luciano (...), acrescentado à comissão de redação por vontade explícita de seus membros e pelos votos dos vários episcopados (...). Mesmo tendo sua participação dificultada pelos demais membros da comissão de redação e pelo secretário dom Jorge Medina, dom Luciano não desanimou e passou uma noite inteira sintetizando o segundo capítulo que tratava das contribuições a respeito da promoção humana. Além desse resumo, dom Luciano redigiu uma síntese final, na qual resgatou as linhas essenciais de Santo Domingo (...)”.[12]
Em tempos em que alguns grupos conservadores tentam tumultuar o debate sinodal, para impedir quaisquer reformas suscitadas pelo Espírito, figuras como Dom Luciano fazem muita falta. Mesmo sob forte pressão de setores reacionários, não se intimidava, nem se deixava acuar. Como um bom filho de Santo Inácio de Loyola, formou-se na espiritualidade dos Exercícios Espirituais, colocando sempre os meios para o maior serviço (magis) ao Reino.
Entre os acontecimentos que marcaram sua história, vale citar dois: o funeral de Santo Oscar Romero e a amizade com o Cardeal Van Thuán. Incompreendido por Roma e abandonado pela hierarquia local, Dom Romero sofreu o martírio em 24 de março de 1980, em El Salvador. Um dos poucos pastores presentes, o então bispo-auxiliar de São Paulo presenciou a terrível violência praticada contra o povo que participava do funeral. Após o tiroteio, o jesuíta permaneceu na praça por horas seguidas prestando socorro aos feridos. Impactado com o sofrimento fruto da injustiça, encontrará no cardeal vietnamita um exemplo de fidelidade e fé madura no seguimento de Jesus:
“(...) aqueles que são discípulos do Cristo, que assumem o amor, que vivem fazendo o bem, que pagam o mal com o bem, permanecem no mundo sem privilégios, sem milagres, suportando até o campo de concentração ou uma prisão como foi o caso do Van Thuán, o cardeal santo. E aí está a compreensão do Cristo: que ele nos ama quando nos deixa sem privilégios, viver a vida humana”.[13]
Quando se preparava para deixar o governo da Arquidiocese de Olinda e Recife, entre os nomes sugeridos por Dom Hélder para lhe suceder estava o de Dom Luciano. Tristemente, como se sabe, optou-se por um bispo de estilo totalmente oposto e o desastre bem se conhece. Uma vez eleito presidente da CNBB e não podendo mais adiar a transferência para uma sede episcopal em que fosse o titular, a Santa Sé o nomeou para a única arquidiocese do interior que não tinha um aeroporto. Alguns afirmam que Roma desejava limitar a sua influência no resto do país. Mesmo com a dificuldade de locomoção, não conseguiram calá-lo e a sua voz continuou ressoando por todo o Brasil.
Devotados homens de Igreja, os três bispos-profetas sofreram a incompreensão e a desconfiança da hierarquia vaticana, pagando o preço de sua liberdade na vivência do espírito conciliar. Em outros tempos, certamente, teriam sido nomeados cardeais e chamados a colaborar com o papa, na condução da Igreja universal. Mas seu profetismo incomodou os poderosos.
Sonharam e buscaram implementar experiências concretas de uma Igreja-Povo de Deus, comprometida com as causas populares e aberta ao protagonismo laical das comunidades eclesiais de base. Defensores das pastorais sociais, sempre estiveram preocupados com as injustiças infligidas aos marginalizados e empobrecidos. Cientes de que contrariavam muitos interesses internos e externos, não retrocederam.
Depois desses anos difíceis de inverno eclesial, um latino-americano chegou ao papado. Com ousadia, Francisco tem tentado provocar mudanças no estilo pastoral e nas estruturas de poder. Entretanto, muitas vezes lhe falta o apoio necessário. Imaginem o que Dom Hélder, Dom Luciano e Dom Zumbi teriam feito sob o pontificado de Francisco? Provavelmente, seriam os cardeais mais fiéis e afinados com a reforma bergogliana.
Ainda que a ausência desses pastores seja fortemente sentida, em meio a profunda crise de lideranças visionárias no episcopado nacional, os três, possivelmente, relativizariam o cenário desolador e diriam que a Igreja se vive nas bases, não nos palácios. Talvez, apontassem ser esta uma oportunidade para repensar o modo de se exercer a autoridade eclesial, com a tardia e inadiável valorização feminina. Diante do encolhimento das comunidades, recordariam a importância de ser “fermento na massa”, como verdadeira minoria abraâmica.
Em 1955, o arcebispo de Lyon na França, Cardeal Gerlier, provocou seu jovem companheiro de episcopado: “por que, querido irmão dom Hélder, não coloca todo este seu talento de organizador que o Senhor lhe deu a serviço dos pobres?” Não será esse o apelo que o Espírito dirige a cada um dos cristãos e cristãs, como fundamento de credibilidade para seu testemunho? Não é tempo de se preocupar menos com as vestes e os incensos e retomar com vigor o compromisso com os abandonados e sofredores deste mundo? Parafraseando Karl Rahner, ou o cristão do século XXI está comprometido com a justiça social ou não será cristão! E, portanto, a memória perigosa de Hélder, Luciano e Zumbi nunca foi tão necessária para uma verdadeira Igreja em saída.
[1] COMBLIN, José. Dom Hélder e novo modelo episcopal no Vaticano II. In POTRICK, M.B. Dom Hélder, pastor e profeta, p. 27-28.
[2] RAMPON, Ivanir Antonio. O caminho espiritual de Dom Hélder Câmara. São Paulo: Paulinas, 2013.
[3] PIRES, José Maria. O Todo-poderoso fez por mim grandes coisas. In: ROCHA, Z. Hélder, o Dom. Uma vida que marcou os rumos da Igreja no Brasil, p. 15-19.
[4] Disponível aqui. Acesso em: 24/08/2024.
[5] Disponível aqui. Acesso em: 24/08/2024.
[6] PIRES, José Maria. Do centro para a margem. 2ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1980.
[7] DONEGANA, Costanzo; DIAS, Paulo da Rocha. Apaixonado por Cristo e pelos pobres. Mundo e Missão, n. 55, 2001, p. 23.
[8] ALMEIDA, Luciano Pedro Mendes de. O rosto da criança pobre. Folha de São Paulo, 30/06/1984, p.2.
[9] ALMEIDA, Luciano Pedro Mendes de. A serviço da vida e da esperança. São Paulo, Paulina, 1997, p. 247.
[10] LEÃO, Darci Fernandes. Em que posso ajudar? Vida e pensamento de Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida. São Paulo: Paulus, 2022, p. 16-17.
[11] BEOZZO, Oscar. Dom Luciano: compaixão e misericórdia, inteligência e lucidez. In: ARROCHELLAS, Maria Helena (org.). Deus é bom. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 207.
[12] LEÃO, Darci Fernandes. Em que posso ajudar? Vida e pensamento de Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida. São Paulo: Paulus, 2022, p. 48-49.
[13] ALMEIDA, Luciano Mendes de. Palavras de agradecimento de dom Luciano. In: PAUL, Cláudio (org.) Doctor amoris causa. São Paulo: Loyola, 2007, p. 58.