28 Novembro 2022
Os católicos brasileiros tiveram reações diversas ao anúncio do arcebispo Fernando Saburido, de Olinda e Recife, de que a causa da beatificação do arcebispo Hélder Câmara (1909-1999) está em andamento.
A reportagem é de Eduardo Campos Lima, publicada por Crux, 27-11-2022.
Saburido disse em 15 de novembro que a Santa Sé emitiu um decreto de “validade jurídica” sobre o inquérito diocesano sobre a vida de Câmara. O processo foi iniciado em 2015 e envolveu uma investigação de três anos em que especialistas coletaram e analisaram documentos e depoimentos de testemunhas sobre o falecido arcebispo.
Segundo o padre capuchinho Jociel Gomes, vice-postulador da causa, um funcionário nomeado pelo Vaticano vai agora elaborar um estudo biográfico e enviá-lo a várias comissões da Santa Sé.
“Depois disso, o pontífice pode declará-lo venerável. Mas não sabemos quanto tempo esse processo pode levar. Câmara era um homem muito famoso e há um grande número de documentos sobre ele”, disse Gomes ao Crux.
Enquanto muitos fiéis em Pernambuco e em outros lugares – especialmente aqueles que conheceram Câmara – comemoraram o avanço de sua causa, vários críticos se opuseram à possível canonização de um homem chamado de “arcebispo vermelho” – apelido dado a ele por grupos conservadores devido às suas visões políticas progressistas.
Hélder Câmara (Foto: Hans Peters | Anefo | Wikimedia Commons)
Líder católico de grande influência no Brasil e na América Latina no século 20, Câmara esteve envolvido na pastoral com os pobres desde seus tempos de padre. No início, porém, ele não era considerado politicamente progressista. Por vários anos, foi organizador da Ação Integralista Brasileira (AIB), movimento de direita.
Posteriormente, distanciou-se da ideologia integralista e inspirou-se em pensadores como Jacques Maritain, filósofo francês de meados do século XX . As habilidades de liderança que ele demonstrou durante seus anos na AIB, no entanto, só cresceram com o passar dos anos.
Em 1952, foi ordenado bispo no Rio de Janeiro. No mesmo ano, foi autorizado pelo Vaticano a criar a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Foi também membro fundador da Conferência Episcopal da América Latina (CELAM).
Como delegado ao Concílio Vaticano II (1962-1965), foi o principal proponente do chamado Pacto das Catacumbas, um manifesto de 40 membros do clero (muitos deles da América Latina) no qual juravam viver com simplicidade vidas, abandonando todos os sinais de riqueza, e colocando os mais pobres da sociedade no centro de seu ministério.
O Pacto foi posteriormente assinado por centenas de bispos e padres e influenciou muito o movimento da Teologia da Libertação.
Entre 1964 e 1985, Câmara foi arcebispo de Olinda e Recife, coincidindo com o período da ditadura militar no Brasil. Grande defensor dos direitos humanos e crítico da repressão e do totalitarismo, Câmara foi continuamente perseguido pelo regime.
Os jornais não foram autorizados pelo governo a entrevistá-lo – na verdade, eles foram proibidos de mencionar seu nome. Seu assistente pessoal, padre Antônio Henrique Pereira, foi morto em 1969, supostamente por agentes do governo como retaliação ao ativismo de Câmara. A família de Pereira foi visitada poucos dias depois de seu assassinato por oficiais da ditadura que se ofereceram para pagá-los se aceitassem receber e divulgar documentos que pudessem incriminar Câmara injustamente.
Hélder Câmara (Foto: Bert Verhoeff | Anefo | Wikimedia Commons)
“Ele nunca deixou de trabalhar pelos pobres, mesmo naquelas condições terríveis. Ele foi a voz dos sem voz e promoveu a paz durante toda a sua vida”, disse Gomes. Câmara foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz em diversas ocasiões, mas a ditadura brasileira pressionou para impedi-lo.
Em sua arquidiocese, Câmara promoveu a formação de comunidades eclesiais de base (CEBs), grupos formados por leigos que se reuniam semanalmente para ler a Bíblia e discutir os problemas de sua comunidade à luz do evangelho. O movimento das CEBs foi fortemente influenciado pela Teologia da Libertação.
Do ponto de vista socioeconômico, Câmara disse que países pobres como o Brasil precisam adotar políticas voltadas para o seu desenvolvimento. Ele pediria cooperação internacional para desenvolver nações desfavorecidas em várias ocasiões durante fóruns internacionais.
Movimentos católicos tradicionalistas como a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) vêm chamando Câmara de “arcebispo vermelho” desde a década de 1960, quando ele pressionou para que a República Popular da China substituísse a República da China com sede em Taiwan nas Nações Unidas e defendeu a entrada de Cuba na Organização dos Estados Americanos.
Plínio Corrêa de Oliveira, fundador da TFP, disse em artigo publicado em 1969 que a retórica de Câmara “esboça toda uma política de entrega do mundo, e mais particularmente da América, ao comunismo”.
De fato, o Instituto Plinio Corrêa de Oliveira (IPCO) ficou “perplexo” ao saber do andamento de seu processo de beatificação, disse o porta-voz Frederico Viotti. “Ele era notório por suas posturas que favoreciam o comunismo não só no Brasil, mas também em vários outros países com a expansão da chamada Teologia da Libertação, que ele promovia”, disse ao Crux .
Viotti disse que muitos católicos “sabem que suas posições pessoais estavam em desacordo com o magistério da Igreja e acabam se confundindo com o processo de beatificação”. “Esperamos que seja suspenso. É uma prova, para esses católicos, de que há uma crise na Igreja”, acrescentou Viotti.
A polarização política no Brasil desde a campanha presidencial, quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o titular Jair Bolsonaro disputaram ferozmente a corrida, intensificou ainda mais as reações à possível canonização de Câmara. Muitos dos apoiadores de Bolsonaro foram às redes sociais para acusar Câmara de não ser um verdadeiro católico, já que ele era um “comunista”.
“Entendo que essas opiniões são algo positivo. Os santos nem sempre são aceitos por unanimidade”, disse Gomes. Ele chamou Câmara de “verdadeiro discípulo de Cristo”, algo que pode provocar desconforto em muitas pessoas.
“Ele pode ter incomodado alguns ao viver um Evangelho encarnado entre os pobres”, disse ele. As fortes reações de alguns desses grupos serão coletadas e analisadas ao longo do processo, disse Gomes. “Por isso nosso trabalho deve ser transparente. Não estamos autorizados a emitir nenhuma decisão. Cabe à Igreja dar a palavra final sobre sua canonização”, explicou.
Hélder Câmara (Foto: Cees de Boer | Wikimedia Commons)
Por outro lado, muitas pessoas que conheceram Câmara acreditam que ele já é um santo. É o caso de João Virgílio Tagliavini, professor de Pedagogia da Universidade Federal de São Carlos, no interior de São Paulo. “Estudei teologia nos anos 1970 e fui padre por oito anos. Em duas oportunidades, ele veio ao nosso seminário para ministrar conferências e dirigir retiros espirituais”, disse ao Crux .
Tagliavini relembrou que certa manhã Câmara desapareceu e deixou todos preocupados. Horas depois ele chegou de ônibus e disse ao povo que caminhava até um bairro distante para visitar uma livraria católica.
“As pessoas perguntavam porque ele ia a pé, e ele respondia: 'Preciso ver o povo, falar com o povo'. O balconista teve que lhe dar algum dinheiro para que ele pudesse pagar a passagem de ônibus e voltar ao seminário”, disse Tagliavini.
Ele nunca esqueceu como Câmara se comoveu e chorou durante a Eucaristia. “Ele tinha um grande amor pela Eucaristia. Ele acordava às 4h para meditar e rezar antes de se sentir preparado para celebrar a missa às 6h”, disse. Tagliavini diz que a mesma campanha de difamação que Câmara sofreu durante sua vida agora está acontecendo novamente.
“Ele tinha uma frase famosa sobre isso. 'Quando eu dou pão aos pobres, eles me chamam de santo. Quando faço perguntas sobre as causas da pobreza, me chamam de comunista”, disse.
Na opinião de Gomes, “muitos de seus críticos não o conheciam nem a sua obra”. “Muitas pessoas manifestam suas opiniões com base em coisas que ouviram de outras pessoas. Eles precisam aprender mais sobre o arcebispo Hélder Câmara”, disse.
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Causa de canonização de “Arcebispo Vermelho” gera polêmica no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU