28 Agosto 2020
"Dom Helder foi um homem de joelhos vigilantes. Fez milhares de vigílias para viver mergulhado na Santíssima Trindade e para viver a união com Cristo. A Santa Missa, celebrada com tanta unção, era 'prolongada' por todo o seu dia... E deste forma, ele se tornou um 'dom para nós'... Dom Helder obrigado por ser o Dom do Serviço, o Dom dos Pobres, o Dom da Profecia... o Dom de Deus!", escreve Ivanir Antonio Rampon, teólogo, doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e professor do Itepa Faculdades.
É com muita alegria que celebro/celebramos a vida e o legado espiritual que o Servo de Deus e dos Pobres, Dom Hélder Pessoa Câmara, nos deixou: deixou para a Igreja de Cristo e para todos os que sonham por um mundo de irmãos.
Nesta data (27-8-2020) em que fazemos a memória dos 21 anos de seu falecimento, que palavras fortes podemos comentar? Podemos falar muito de Dom Helder, mas pensei em comentar três palavras: Serviço, Pobres, Profecia. E vou fazer isto comentando três episódios da vida do Dom.
Quando Helder tinha entre sete a nove anos, o seu pai lhe disse algo inesquecível e que ele sempre procurou viver: “Filho, você está crescendo e continua a dizer que quer ser padre, mas você sabe de verdade o que significa ser padre?” O menino ficou quieto, meio acabrunhado com o questionamento do pai, que prosseguiu: “Você sabia que para uma pessoa ser padre ela não pode ser egoísta, não pode pensar só em si mesma? Ser padre e ser egoísta é impossível, eu sei, são duas coisas que não combinam”. Atento, Helder não sabia o que dizer. O pai continuou: “Os padres acreditam que quando celebram a Eucaristia é o próprio Cristo que está presente. Você já pensou nas qualidades que devem ter as mãos que tocam diretamente no Cristo?”. Helder, convicto, disse: “Pai, é um padre como o senhor está dizendo que eu quero ser”. “Então filho” – disse o pai – “que Deus te abençoe! Que Deus te abençoe! Você sabe que não temos dinheiro, mas, mesmo assim, vou pensar como ajudá-lo a entrar no seminário”.
Helder aprendeu e sempre buscou viver isto. O Padre não se pertence. Ele pertence a Deus para servir o Povo de Deus. É um homem para servir. Isto significa que não vive buscando honras, aplausos, fama, comodidades individualistas, vaidades pessoais de todo o tipo. Como muito bem disse o querido Papa Francisco, é uma pessoa descentralizada. Helder se fez para nós, o Dom do Serviço.
No ano de 1955 aconteceu no Brasil, o Congresso Eucarístico Internacional. Este foi organizado por Dom Helder e sua equipe maravilhosa. O Cardeal Gerlier, de Lião, França, que acompanhara os trabalhos de Dom Helder na organização do Congresso Eucarístico, concluiu que não era razoável que a capacidade desse Bispo brasileiro ficasse presa à organização de megaeventos religiosos. Por isso, antes de retornar à França, quis um colóquio com ele, a fim de elogiá-lo, mas muito mais para lhe lançar um apelo:
Permita-me falar-lhe como um irmão, um irmão no batismo, um irmão no sacerdócio, um irmão no episcopado, um irmão em Cristo. Você não acha que é irritante todo este fausto religioso em uma cidade rodeada de favelas? Eu tenho certa prática em organização e por ter participado desse Congresso devo dizer-lhe que você tem um talento excepcional de organizador. Quero que faça uma reflexão: por que, querido irmão dom Hélder, não coloca todo este seu talento de organizador que o Senhor lhe deu a serviço dos pobres? Você deve saber que o Rio de Janeiro é uma das cidades mais belas do mundo, mas também uma das mais espantosas, porque todas essas favelas, neste quadro de beleza, são um insulto ao Criador...
O Cardeal sensibilizou Dom Helder que interpretou aquelas palavras como um novo desafio. Pegando e beijando as mãos do Cardeal, disse-lhe: “Este é um momento de virada em minha vida. O senhor poderá ver minha consagração aos pobres. Não estou convencido de possuir dotes excepcionais de organizador, mas todo o dom que o Senhor me confiou colocarei ao serviço dos pobres”.
A partir daquele dia, as visitas às favelas começaram a ser frequentes e estas se converteram em sua preferência pastoral. Quando Bispos e Cardeais o visitavam, ele os recebia com grande cordialidade e os levava para um passeio. O principal lugar a conhecer não era mais a Catedral de São Sebastião ou o Corcovado – de onde se contempla uma das paisagens mais belas do mundo. Ele tornou-se cada vez mais o Dom dos Pobres.
Quando foi Recife e assumiu a missão de Arcebispo Metropolitano, a sua primeira visita Pastoral foi para os Mocambos. Quando o Papa Francisco assumiu a missão de Sucessor de Pedro a sua primeira visita Pastoral foi para Lampedusa. Aliás, são muitas as coincidências entre as palavras e os gestos de Dom Helder e do Papa Francisco. Quase repetindo as palavras de Dom Helder disse o Papa: “Quando peço terra, teto e trabalho para os necessitados alguns me acusam dizendo que ‘o Papa é comunista’! Não entendem que a solidariedade com os pobres é a base mesma do Evangelho”. Portanto, Helder se fez para nós o Dom dos Pobres.
Dom Helder assumiu decididamente a missão profética com a alegria que é ser um profeta de Deus, mas também com os sofrimentos, as dores, as apreensões que fazem parte desta missão. Durante o regime militar ele foi tido como um dos principais, senão, o principal inimigo político do governo ditatorial. Não que ele fosse. Outros assim o consideram. Dom Helder padeceu muito por querer a fraternidade, o diálogo, a compreensão, o amor, a paz, a partilha, por defender o direito há um palmo de terra para cada brasileiro e brasileira, por ser contra a tortura dos presos políticos, por defender os direitos humanos. Ele não apenas foi um profeta, mas ele provocou um “arrastão profético” na América Latina.
Pouco antes de morrer, Dom Helder nos deixou o seu último pedido. Segundo o relato do Pe. Marcelo Barros, isto aconteceu no dia 5 de agosto. Marcelo foi visitar o Dom. O Arcebispo estava calado, parecendo pouco lúcido, mas fez um sinal demonstrando que o havia reconhecido. Então teria dito as suas “últimas palavras”: “Não deixe cair a profecia”.
Dom Helder não apenas foi um profeta, mas um alimentador da profecia e nos pediu para não a deixarmos cair. E ela cai quando, por exemplo, vivemos o mundanismo espiritual, a alienação religiosa, a sedução da espiritualidade do mercado e do capitalismo neoliberal. Não vamos deixar cair a profecia. Vamos alegrar Dom Helder atiçando a profecia!
Três palavras: Serviço, Pobres e Profecia. Se reparamos bem na vida de Dom Helder as três palavras se penetram. Porque quis servir mais e melhor fez a opção pelos Pobres. Porque quis fazer uma opção pelos pobres profunda, real, concreta se tornou um profeta. Porque respondeu com sinceridade à missão profética serviu mais e melhor a Deus e ao seu Povo amado.
O texto bíblico que a Igreja escolheu para o Dia de Santa Mônica (Mt 24,42-51) também se ajusta à memória de Dom Helder. No texto do Evangelho de Mateus, Jesus através de uma parábola ensina que os líderes da Igreja, das comunidades cristãs, devem não apenas cuidar dos outros, mas se vigiarem para não se afastarem da prática da Justiça do Reino. É muito fácil a gente trocar o essencial pelo superficial! É preciso vigiar sempre para em primeiro lugar buscarmos o Reino de Deus e a sua justiça. Dom Helder foi um homem de joelhos vigilantes. Fez milhares de vigílias para viver mergulhado na Santíssima Trindade e para viver a união com Cristo. A Santa Missa, celebrada com tanta unção, era “prolongada” por todo o seu dia... E deste forma, ele se tornou um “dom para nós”...
Dom Helder obrigado por ser o Dom do Serviço, o Dom dos Pobres, o Dom da Profecia... o Dom de Deus!
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Helder, um Dom! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU