24 Junho 2024
"Medellín representa uma revolução copernicana no âmbito pastoral e teológico, uma surpresa e uma provocação inaceitável para o centro, porque nasceu de geografias periféricas e consideradas inferiores, mas que de repente aparecem como protagonistas", escreve Flávio Lazzarin, padre Fidei Donum, italiano, atuando na diocese de Coroatá, MA, em artigo publicado por Settimana News, 24-06-2024.
José Valdeci Santos Mendes, bispo de Brejo (Maranhão) e atual presidente da Comissão Episcopal de Ação Sócio-transformadora da Conferência Episcopal Brasileira (CNBB), por ocasião da celebração de sua ordenação episcopal citou uma frase de votos de felicidades do inesquecível Padre Umberto Guidotti: "Somos todos filhos e filhas de Aparecida" – mas completou afirmando de forma decisiva: "E netos de Medellín!".
Muitos de nós - um pequeno remanescente, que tentamos ser fiéis ao legado do Concílio, especialmente nestes tempos de tradicionalismo e traição - repetiríamos de bom grado esta interpretação de Dom Valdeci, preparando-nos para comemorar os setenta anos do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM): 1955-2025.
Gostaria de salientar que não sou capaz de produzir argumentos que sejam fruto de pesquisas históricas sérias e de certas abordagens teológicas, mas que me limito a relembrar, quase como num diário, situações, sentimentos, posições assumidas, que surgiu na coexistência de décadas com a Igreja dos pobres e da libertação.
Dizer brevemente algo sensato sobre estes setenta anos é no mínimo presunçoso, porque não se trata apenas de um longo período de história, mas, sobretudo, de tempos - com exceção, talvez, do período de 1955 a 1968 – de mudanças políticas, sociais e culturais rápidas e surpreendentes.
Foram também os anos pós-Concílio e a Conferência de Medellín. Estes são, inevitavelmente, anos de tensões entre as Igrejas da América Latina e de Roma: tempos de conflitos pastorais e teológicos; tempos de perseguição e silenciamento de teólogos.
Nesta chave, posso afirmar que o CELAM foi realmente importante no caminho da Igreja do cristianismo colonial, especialmente na promoção das cinco conferências dos bispos latino-americanos.
O que emerge claramente, porém, é a minha intenção de escrever este livro de memórias guiado por um preconceito pastoral e ideológico invencível, obscurecendo três conferências - Rio de Janeiro, Puebla, Santo Domingo - para sublinhar polemicamente a importância da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, a de Medellín na Colômbia (24 de agosto a 6 de setembro de 1968), e também da V Conferência de Aparecida no Brasil (13 a 31 de maio de 2007).
Além disso, um preconceito hermenêutico também me guia quando decido preservar positivamente a memória de Aparecida (2007), partindo da convicção de que o acontecimento e o documento da V Conferência foram a tentativa, num clima eclesial ainda invernal, de recuperação pastoral, pelo menos em pequena parte, o legado indispensável da profecia de Medellín.
Das duas Conferências anteriores de Puebla e Santo Domingo, porém, recordo as preocupações, com as intervenções críticas de Roma e dos setores mais tradicionais das Igrejas latino-americanas, apesar dos documentos serem substancialmente fiéis a Medellín e proporem algumas inovações pastorais relevantes.
Pensemos, por exemplo, nas novidades de Puebla (1979) que escolheu a Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi de Paulo VI (1975) como texto inspirador para a reflexão. Se Medellín foi uma releitura do Concílio, inspirada no "Pacto das Catacumbas", Puebla foi uma releitura da Evangelii nuntiandi.
Puebla colocou o desafio da evangelização e, em tempos obscuros e sombrios de ditaduras militares, redescobriu a importância dos direitos humanos à luz do Evangelho de Jesus. Os direitos individuais, os direitos sociais, os direitos emergentes têm a sua fonte na dignidade do ser humano, na imagem de Deus.
Confirmou a opção preferencial pelos pobres e acrescentou a opção preferencial pelos jovens. A “Libertação” continua presente, mas é acompanhada por duas novas figuras pastorais, que a ofuscam: “comunhão e participação”.
Evangelização e missão são tarefa das Cebs, Comunidades Eclesiais de Base. São novos desafios para a evangelização, porque nas diferentes culturas latino-americanas e caribenhas – e em todas as camadas sociais – irrompe uma nova cultura, de natureza urbano-industrial, que compara as tradições nas práticas e nas atitudes com o espírito da modernidade.
A Conferência de Santo Domingo também dá continuidade a Medellín num contexto polêmico favorecido pela data em que o evento começa: 12 de outubro de 1992, quinhentos anos depois da chamada descoberta da América. A celebração de abertura deveria ser penitencial ou eucarística? Mais penitencial que eucarístico ou mais eucarístico que penitencial? O que seria comemorado? A invasão europeia ou a primeira evangelização?
Mesmo o tema central de Santo Domingo, uma “nova evangelização inculturada”, parece problemático porque a relação da Igreja com as culturas nativas, que resistem, apesar de tudo, ainda hoje, continua marcada e ferida pelo colonialismo e pelo eurocentrismo. Dilema difícil de resolver, porque é impossível reescrever positivamente – com algumas santas exceções – a chegada do Evangelho a estas terras; a cruz e a espada, a Igreja e o Império, uniram-se para conquistar este mundo e subjugá-lo material e espiritualmente.
Em 1955, o documento final da Conferência do Rio de Janeiro ainda insistia na necessidade de os povos indígenas, considerados primitivos, se deixarem incorporar na esfera da verdadeira civilização. Em Santo Domingo, obviamente, não foi possível, nem prudente, repetir esta crença, mas a relação com as culturas e religiosidades indígenas e de origem africana foi, em certo sentido, posta de lado e, de fato, continua a provocar-nos, a hoje, nas práticas pastorais e na reflexão teológica.
Acompanhei estas duas conferências (Puebla e Santo Domingo) com a sensação de que se tratava de uma redução da profecia de Medellín a uma mera narrativa teológica, cujas fontes concretas no caminho dos pobres já estavam ameaçadas e reduzidas, a começar pela rápida crise social - mudanças culturais das sociedades latino-americanas, corroboradas pelos projetos de difusão da religiosidade alienada financiados pelos Estados Unidos e pelos mal-entendidos persecutórios do Vaticano.
A surpreendente coerência entre os caminhos pastorais e políticos concretos e a reflexão teológico-pastoral do CELAM desapareceu gradualmente. Se, de fato, na experiência revelada por Medellín, os pobres foram os protagonistas eficazes e reconhecidos de uma revolução cultural e espiritual que aspirava a mudar o mundo, nos anos de Puebla e de Santo Domingo esse protagonismo foi progressivamente esquecido, substituído e traído.
Os Cebs também entraram num rápido processo de redução paroquial e controle clerical; o protagonismo da jornada dos pobres que constroem processos de autonomia e libertação sobreviveu - mas, com dificuldade, até hoje - apenas em pastorais como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP).
Medellín representa uma revolução copernicana no âmbito pastoral e teológico, uma surpresa e uma provocação inaceitável para o centro, porque nasceu de geografias periféricas e consideradas inferiores, mas que de repente aparecem como protagonistas.
A profecia de Medellín não pode ser explicada apenas a partir do acontecimento, porque - esta é a novidade que comove e desconcerta - é o reconhecimento de processos de transformação e conversão da Igreja que atravessam a realidade concreta da vida das comunidades cristãs em todo o mundo. Processo único e irrepetível do Espírito que reinterpreta o clima de atualização do Concílio Vaticano II a partir do Sul do mundo, do chamado Terceiro Mundo, numa chave abertamente crítica das perspectivas hegemônicas eurocêntricas que ainda são presunçosa e opressivamente coloniais.
Medellín reflete a partir de uma realidade de violência e opressão: e é esta abordagem que a distingue radicalmente da visão otimista do Concílio, em que a palavra-chave era “desenvolvimento” – pensamos também na Encíclica de Paulo VI Populorum progressio, individual e solidária.
A teologia desenvolvimentista e de promoção humana dos povos subdesenvolvidos é substituída em Medellín pela teologia pastoral e da libertação, pela necessidade de enfrentar o pecado social da injustiça e da opressão, lutando por transformações estruturais. Novas mulheres e homens para uma nova sociedade: novas políticas e mudanças estruturais radicais.
Hoje nos perguntamos – e alguns perguntam cinicamente – para onde foram todos os projetos e sonhos daqueles anos. Certamente a realidade que vivemos não é apenas a negação dessas esperanças, mas também o regresso acelerado, sem travões ou antídotos, de potências incontroláveis e violentas em toda a América Latina e no Caribe.
Um capitalismo que quer impor-se independentemente do Estado, abraçado pelos novos fascismos, pela narcopolítica, pela ocupação do Estado pelo crime organizado, vence em todas as frentes. O que resta da resistência dos povos originários e das comunidades rurais e urbanas tradicionais é vivido por minorias proféticas atacadas pelas empresas capitalistas e suas milícias. E a vida e o bem que se rebelam diante da anomia e do renovado projeto de morte.
Neste sentido, embora os ímpios queiram apagá-lo permanentemente, Medellín é o futuro. Nossa esperança incurável nos diz. É a Esperança poética e política de Dom Pedro Casaldáliga que nos repete todos os dias: "Somos militantes derrotados de uma causa invencível".
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Rumo ao 70º aniversário do Celam. Artigo de Flavio Lazzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU