"É necessário dizer que a crítica do direito e do Estado não se configuram como uma proposta de anulação violenta e imediata das instituições que nos governam, mas constitui propostas de conversão ética e política profunda ao serviço de uma práxis em que os passos possíveis para a construção do novo sejam sempre inspirados na Justiça e no Ágape", escreve Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em artigo publicado por Settimana News, 17-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Após o fim da guerra civil-ditadura militar no Brasil, foi difícil para nós entender que o Estado era o inimigo mortal de quem se opõe ao capital e defende a causa dos pequenos e dos pobres.
Reencontrar novamente, depois de tantos anos, o pensamento de Simone Weil sobre os conceitos de direito e de estado permite revisitar experiências eclesiais distantes, que sobrevivem na memória com interrogações que não encontravam respostas.
Estou pensando na Comissão Pastoral da Terra do Maranhão (CPT-MA), dos anos 1970, quase no limiar do novo milênio. Eu estava convencido de que a nossa solidariedade eclesial e ecumênica com as famílias de agricultores ameaçadas, agredidas e expropriadas pelo latifúndio e pelo Estado tivesse uma radicalidade revolucionária indiscutível, que era comprovada pelas perseguições e pelos mártires. E para muitos - as testemunhas do Reino de Jesus - certamente era assim. Ainda hoje, gostaria que essa nossa oposição insurgente tivesse sido mais dura contra o Estado ou tão dura quanto a luta contra o capital. Mas não foi assim.
Após o fim da ditadura civil-militar, tivemos dificuldade para compreender que o Estado é o inimigo mortal de quem se opõe ao capital e defende a Vida e a causa dos pequenos e dos pobres.
A CPT-MA, de fato, era organizada em termos especulares em relação ao estado: havia agentes que tratavam de produção e agroecologia - o ministério da agricultura; havia agentes que acompanhavam o movimento sindical - ministério do trabalho; havia advogados civis e criminalistas - ministério da justiça -; havia jornalistas e pesquisadores - ministério das comunicações e cultura; havia agentes na coordenação - os ministros da Casa Civil; e depois havia o ministério da economia, o dos transportes etc.
Roubando superficialmente a antropologia do cotidiano de Michel de Certeau, que afirma que a vida cotidiana pode ser reinventada com mil formas de caça ilegal, que escapam às regras e controles disciplinares do sistema, me pergunto, com uma transposição indevida, hoje, pela primeira vez, se naquele tempo a CPT conseguia praticar, apesar de atuar à sombra do poder do Estado, formas de desobediência e de autonomia.
A resposta, evidentemente sujeita à contradição, é que éramos de alguma forma reféns do Estado, e isso apesar das fortes motivações e da radicalidade das interpretações da realidade e das práticas de escuta e de serviço.
O exemplo mais claro dessa dependência é o apoio dado pela CPT à política fundiária baseada na desapropriação do latifúndio para fins de uma fantasmagórica Reforma Agrária: uma política que favorecia a conquista da terra pelos camponeses, mas, ao mesmo tempo, indenizava os chamados proprietários com indenizações altíssimas, numa lógica de mercado que, naqueles anos, era sustentada apenas pelo dinheiro público distribuído pelo Ministério da Agricultura e pelo INCRA aos grileiros, ou seja, aos ladrões de terra, quase sempre sem documentos notariais para comprovar a propriedade. Com o agravante da ausência programática de políticas agrárias adequadas e suficientes, após a criação dos assentamentos.
Assim, também a oposição radical da CPT à política posterior de Crédito Fundiário, que acarretou uma ruptura com a posição da CONTAG e da FETAEMA – sindicatos oficiais de agricultores – foi apenas uma opção para o mal menor da desapropriação.
Aceitamos, inclusive, nomenclatura governamental para definir a "clientela" da chamada Reforma Agrária, quanto ao latifúndio improdutivo, adotando para os Sem Terra e os pequenos agricultores em geral - e não apenas para os descendentes da colonização europeia recente - o conceito e as políticas agrárias da Agricultura Familiar.
Ainda mais grave, além disso, no contexto da política de Regulação Fundiária, foi a adoção pelo Estado e a aceitação pela CPT do conceito de posseiro, - mais uma noite em que todas as vacas são pretas – para caracterizar as inúmeras culturas das comunidades tradicionais presentes desde sempre, com seus territórios físicos e espirituais, nos diversos biomas do Brasil, sempre ameaçadas, violentadas e expulsas pelo capital e pelo estado.
Cegueira devida ao colonialismo constitutivo da elite dominante e, em alguns aspectos, inocentemente introjetada também por grande parte da CPT.
Outro aspecto que nos vinculava às lógicas estatais era a convivência com os partidos de esquerda cujas propostas partilhávamos e nas quais apostávamos para possibilidades eleitorais para construir uma Reforma Agrária digna desse nome. Hoje, muitos de nós sabemos, há tempo que isso também era um equívoco.
O fato de termos recebido financiamento de entes eclesiais europeus libertou-nos inicialmente da dependência das contribuições nacionais, constitutivamente marcadas pelo apadrinhamento e pelo clientelismo, que também confunde a contribuição pública com a iniciativa da generosidade dos políticos de plantão e pede em troca obsequioso silêncio e fidelidade eleitoral. Mas essa liberdade, quando as Igrejas europeias entraram em crise, inclusive econômica, tornou-se cada vez mais difícil e problemática de exercer porque, ao aumentar consideravelmente a contribuição financeira dos Estados, aumentava paralelamente o poder de impor metodologias ao planejamento da CPT.
E a metodologia que fomos obrigados a adotar é aquela seguida pela ONU: a da USAID, marcada pelo desenvolvimentismo e convicção behaviorista - outro sequestro, desta vez pela sociologia, de um paradigma psicopedagógico - de que exista uma relação indiscutível de causa e efeito, entre as iniciativas de serviço às comunidades camponesas e as respostas, sempre concretas, monitoráveis e verificáveis das comunidades.
Hoje talvez consigamos superar parcialmente os erros e descuidos flagrantes do passado, valorizando e acompanhando os processos de autonomia territorial das comunidades tradicionais, dos quilombolas e dos povos indígenas que compõem essa teia de alianças e lutas. Mas a relação com o Estado não está resolvida - e isso é óbvio, porque não se resolve da noite para o dia - mas, infelizmente, não é objeto de reflexão e discussão entre nós, como nos tempos germinais e iniciais na CPT do Maranhão, pelo menos no que diz respeito ao discernimento sobre a dialética legalidade-legitimidade que era uma preocupação constante.
Se é verdade que o protagonismo insurgente das inúmeras "Vias Campesinas" emerge com força, muitas vezes a gravidade das violências e dos conflitos faz pesar a balança no prato do direito - das relações com o poder judiciário - e do protagonismo, inevitavelmente assistencialista, dos advogados populares. E isso nos torna reféns mais uma vez do direito e do Estado.
E é aí que retorna Simone Weil, citada no início deste artigo: o exemplo que Simone usa para criticar radicalmente o direito é paradigmático: "Quando se fala do destino dos trabalhadores, geralmente se escolhe falar de salários... Esquecemos assim que o objeto sobre o qual se negocia, de qual se queixam de serem obrigados a entregá-lo a baixo custo, sendo-lhes negado o preço justo, não é outro senão sua alma. Imaginemos que o diabo está comprando a alma de um desafortunado e que alguém, com pena do infeliz, intervenha na negociação e diga ao diabo: “É vergonhoso de sua parte oferecer esse preço; o objeto vale pelo menos o dobro". Esta é a funesta farsa que encenou o movimento operário, com seus sindicatos, seus partidos, seus intelectuais de esquerda...” [1].
A noção de direito era marcada por esse espírito do mercado desde 1789: o direito baseia-se na negociação e na divisão; o direito funciona a partir das reivindicações quantitativas e comerciais que nunca discutem a hegemonia da coletividade e do Estado. Os gregos não tinham o conceito de direito e limitavam-se à noção de justiça, princípio este que também é supremamente evangélico, cristão, ainda que desde sempre esquecido pelas Igrejas.
De fato, foram os romanos que inventaram o direito, conceito inseparável daquele do império, realidade "pagã, não batizável" em que o direito de propriedade, estendido às coisas e aos seres humanos, é o fulcro inspirador de todas as leis. Só a justiça abre espaço para o ágape, para os excessos extremistas do amor. Constitutivamente, o direito não tem ligação com a ética e a política, âmbitos fundamentais para a construção da humanidade.
Exemplo claro e transparente da oposição da justiça ao direito é o testemunho existencial, profético e poético de Pedro Casaldáliga, sempre ligado à Justiça do Reino, portanto a uma ideia e a uma realidade teológica absolutamente irredutível, num automatismo infelizmente nunca contestada, à tradição da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e as subsequentes complementações teóricas sintetizadas no paradigma da Plataforma DhESCA.
Os direitos humanos, presunçosamente proclamados pelo Ocidente, sofrem de uma justaposição paradoxal com o Estado. De fato, como é possível exigir políticas de implementação dos direitos por parte do Estado, que sempre foi inimigo dos pobres, patriarcal, racista e sexista, conivente com todas as atrocidades coloniais perpetradas contra os povos originários da Abya Ayala, confirmadas pela escravidão dos afrodescendentes e pela persistência de políticas constitutivamente desumanas?
Em conclusão, é necessário dizer que a crítica do direito e do Estado não se configuram como uma proposta de anulação violenta e imediata das instituições que nos governam, mas constitui propostas de conversão ética e política profunda ao serviço de uma práxis em que os passos possíveis para a construção do novo sejam sempre inspirados na Justiça e no Ágape.
Em suma, que o método nunca traia o fim! Gandhi, para definir o método de luta, deu-nos o exemplo do arroz, que é arroz na semente que morre, arroz em processo de crescimento, arroz na espiga. Assim é para o Bem, que deve permanecer assim durante todo o processo. O fim nunca justifica os meios! Poderíamos então viver longe de cinismos pessimistas e paralisantes, do realismo impotente, escravo das convenções sociais que sempre nos empurram a cair em compromissos a serviço da iniquidade que governa o mundo.
[1] Weil, Simone, A pessoa e o sagrado, Adelphi, Milão, 2012, p.27