Memória. Dom Hélder, dom Luciano e dom José Maria Pires

Neste dia 27-08, lembramos a Páscoa destes três bispos que incitaram o povo a viver o Evangelho encarnado e ver o Cristo naquele que sofre e está ao lado

Arte: Marcelo Zanotti

Por: João Vitor Santos | 28 Agosto 2023

Depois dos solavancos que a Igreja tomou com o advento da Modernidade, uma mudança de eixo se tornou inevitável. É neste contexto que vemos surgir o Concílio Vaticano II, ocorrido entre 1962 e 1965, como uma resposta institucional aos desafios destes novos tempos. Mas, por aqui, neste Brasil ainda muito rural e cheios de desafios e desigualdades, três religiosos já vinham atuando a partir da intuição de que uma Igreja ultramontana, e ainda tão pouca àquela ainda lastreada na ideia de cristandade, não era capaz de entender os problemas locais e a partir disso se mover por estas terras. Tratamos de três religiosos que, ainda muito na elaboração do Papa Francisco, viviam a ideia de uma “igreja peregrina” e de “pastores com cheiro de suas ovelhas”: dom Hélder Câmara, dom Luciano Mendes de Almeida e dom José Maria Pires.

No que consistia a intuição deles? Basicamente descer os degraus que separam o presbitério da assembleia do povo e se misturar com as gentes, ouvir e sentir o que todos sentiam. Os três também entendiam que a Igreja não é um prédio, mas uma presença e por isso deveria de ser peregrina e estar entre as pessoas. Curiosamente, numa daquelas coincidências inexplicáveis, os três morrem em um 27 de agosto. Dom Hélder em 27 de agosto de 1999, aos 90 anos. Dom Luciano em 27 de agosto de 2006, aos 76 anos. E, por fim, dom José Maria em 27 de agosto de 2017, aos 98 anos. Assim, recuperamos a memória destes três sujeitos que, muito mais do que sustentar um episcopado ritualísticos e cheio de regras, optaram por ouvir o clamor do povo e transformar a pregação em ação concreta de assistência e presença a quem precisa.

Profetas

O que chama atenção é a atualidade das ações dos três bispos. É como se lá no passado já fossem capazes de auscultar os problemas que viriam só a crescer. Hoje, por exemplo, discutimos a chamada crise do cristianismo, um tempo em que o segmento de Jesus parece não responder aos anseios de um mundo em guerra e fraturado. Recentemente, o IHU promoveu XX Simpósio Internacional IHU – A (I) Relevância pública do cristianismo num mundo em transição. Ao ouvir muitas das conferências deste Simpósio, percebemos que a institucionalização do catolicismo lá no passado parece ir distanciando a vivência cristã do cotidiano das pessoas em nosso tempo. Aliás, na última conferência do Simpósio, com Alec Ryrie, da Durham University, na Inglaterra, há a reflexão de que valores cristãos e seculares precisam uns dos outros e juntos devem conceber um novo modo de ser no século XXI.

 

Acesse aqui as demais conferências do XX Simpósio Internacional IHU – A (I) Relevância pública do cristianismo num mundo em transição

Em certa medida, é pensar que não existe o espaço da religião, do sagrado, e o espaço do mundo. Como já indicava o Vaticano II, é preciso pensar a Igreja no mundoDom Hélder, por exemplo, tinha essa consciência. Observe, na entrevista abaixo, como ele diz ter superado as críticas por trabalhar diretamente com os pobres. Aliás, pobres estes pelos quais ele insiste que são pelos quais se precisa ver o Cristo.

 

Dom Luciano, em outra entrevista, provoca justamente a pensarmos no desafio de ser cristão no mundo de hoje, num Brasil de tantos problemas. Para ele, não é possível lavar as mãos, no sentido de nos omitirmos, enquanto cristão, e negarmos ou fugirmos da realidade. Observa sua fala no vídeo abaixo.

 

O caminhar junto, pelo que podemos perceber, é uma opção consciente. Isto fica ainda mais claro quando olhamos para a trajetória de dom José Maria, ou o dom Zumbi, apelido que ganhou pela forma como sempre assumiu sua negritude e a partir dela lutou contra o racismo que até hoje mata muita gente, de diferentes formas. E tudo não só como discurso, pois José Maria ia para terreiros, assumia a cultura local e inculturava a fé cristã. Atitude pioneira, de um caminhar junto, mas que nem sempre era bem recebida. É o que lembra na entrevista abaixo, quando celebrou uma missa em pleno quilombo.

 

Hoje, o Papa Francisco tem insistido muito na ideia de Igreja em saída e uma Igreja sinodal. Vemos que estes valores estão plenamente associados a história destes bispos que no passado foram capazes de sentirem isto. Não por acaso o Papa tem sintonia com eles, pois Francisco é fruto do Vaticano II e, também, na história de religiosos como dom Hélder, reconhece o bom caminho, o de um cristianismo que não perde a relevância e está em sintonia com o povo, especialmente os mais necessitados.

 

E se até mesmo Francisco encontra muita resistência neste seu estilo de tensionar para que a Igreja se coloque de frente a frente com o mundo, fazendo com que superemos a velha ideia de uma cristandade imposta, como reflete o jornalista e pensador italiano Raniero La Valle, em conferência realizada no IHU.

 

Que possamos superar estas resistências e, através da memória destes três religiosos dom Hélder Câmara, dom Luciano Mendes de Almeida e dom José Maria Pires, possamos ter coragem de enfrentar e superar conservadorismos para apreender o que é narrado nos próprios Evangelhos sobre Jesus. Ou seja, o filho de Deus que dá sinais de que se chega a Ele pelo pobre, pelo faminto e por todo aquele que necessita, como na belíssima imagem do samaritano.

Tela O bom samaritano, de Vincent van Gogh (Imagem: reprodução Wikipédia)

 Conhece um pouco mais sobre os três bispos

Dom Hélder Câmara

Dom Hélder Pessoa Câmara nasceu em FortalezaCeará, no ano de 1909, e foi arcebispo de Olinda e Recife. Antes de exercer a função de arcebispo em Pernambuco, foi bispo auxiliar na Arquidiocese do Rio de Janeiro. Também foi um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, atuou como secretário-geral da CNBB, ajudou na criação do Conselho Episcopal Latino-Americano - Celam e recebeu quatro indicações ao Prêmio Nobel da Paz. Faleceu em 1999.

Hélder Câmara esteve diante dos mais marcantes eventos da Igreja latino-americana no século XX, atuando com protagonismo, como bem pontua o Prof. Dr. Ivanir Rampon, autor de dois livros sobre dom Hélder, em entrevista para o IHU.

Dom Hélder (Foto: Instituto Dom Hélder Câmara)

Já no Concílio Vaticano IIHélder exerceu um papel de destaque pela defesa da colegialidade episcopal, por aproximar os diálogos entre os países do Norte e Sul Global e por afirmar a opção pelos pobres, firmada sobretudo no Pacto das Catacumbas. Para Rampon, foram as opções pastorais e a profunda abertura ao Espírito Santo que uniu dom Helder e o Papa Paulo VI em uma amizade espiritual, mesmo estando em realidades tão distantes. Os dois haviam se conhecido no Congresso Internacional da Ação Católica, em 1950, ainda padre e bispo, respectivamente, e lá nasceu a semente da fundação da CNBB e das conferências episcopais pelo mundo, um passo anterior ao Vaticano II, em vista de uma Igreja descentralizada.

No Concílio, Hélder também teceu relações intelectuais com teólogos igualmente renomados, como Henri de Lubac e Yves Congar. A historiadora Lucy Pina Nieta escreveu em livro sobre a rede intelectual formada pelo "bispo das favelas": "Ele costumava reunir no episcopado intelectuais, teólogos e artistas para trocar opiniões e encontrar possíveis soluções". A autora revela que as leituras de dom Hélder ainda passavam por Sigmund FreudRomano GuardiniMarthin Luther King Jr. e até estudos marxistas.

O Prof. Dr. José Oscar Beozzo descreve em entrevista ao IHU os passos eclesiais do "bispinho". O teólogo relata que dom Hélder passou de uma proximidade à Liga Eleitoral Católica e ao integralismo brasileiro para uma oposição contundente, ousada e corajosa à ditadura militar, perseguido e acusado por suposto comunismo. Essa perseguição foi descrita em sua célebre frase, recordada pelo Papa Francisco no discurso para a Cúria Romana no Natal de 2020:

Beozzo descreveu que essa conversão se deu pelo contato próximo e direto com os trabalhadores e educadores por meio da Ação Católica e pela inserção direta nas comunidades pobres do Rio de Janeiro e Recife e Olinda. Hélder desenvolvia sua teologia e sua pastoralidade em sintonia com o espaço em que estava inserido, assim também intuía a formação de novo modelo de Igreja, como podemos associar à afirmação do teólogo Eduardo Hoornaert, em entrevista ao IHU para este artigo "para ele, a Igreja tinha de ser minoria, ou seja, vivida em comunidades espalhadas minoritariamente na grande sociedade, sem aspirações hegemônicas".

 

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Dom Luciano Mendes de Almeida

Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida nasceu no Rio de Janeiro, no ano de 1930, e foi arcebispo de Mariana. Antes de exercer a função de arcebispo em Minas Gerais, foi bispo auxiliar na Arquidiocese de São Paulo. Ingressou na Companhia de Jesus em 1947, sendo ordenado padre no ano de 1958. Também atuou como secretário-geral e presidente da CNBB. Faleceu em 2006.

A vida de Dom Luciano foi marcada pela proximidade com os que sofrem. Quando estudava na Itália, fez pastoral junto aos encarcerados, em São Paulo se colocou a serviço nas periferias, e em Mariana junto às comunidades rurais mais empobrecidas. Pelo Celam, visitava com frequências os países da América Latina, passou por quase todos eles, também esteve em outros locais de conflitos como o Líbano. "Tudo isso me despertou muito a consciência da América Latina. É a situação de populações sofridas, esmagadas, incompreendidas, empobrecidas que também desperta uma grande vontade de trabalhar e ajudar. São populações, às vezes, indígenas e, às vezes, que passaram pela tristeza da escravidão", narrou dom Luciano em entrevista ao IHU, quando esteve em São Leopoldo em 2005.

 

Dom Luciano (Foto: Guaxupé)

Como afirma o teólogo Geraldo Trindadedom Luciano experenciou um cristianismo de despojamento e de amor pelo outro que sofre. "Ele pode ser chamado o irmão do outro. Nem amigo, nem colega, nem conhecido, mas irmão, que sentiu a dor, que se aproximou, que viu, que sentiu e amou! A apóstolo do amor e da caridade mostra que só se é possível viver o cristianismo amando, só se pode ser cristão despojando-se de toda e qualquer vaidade!", escreve em artigo publicado pelo IHU.

Ainda, em outro artigo, Trindade ressalta a afinidade espiritual que Luciano e Hélder Câmara mantinham na radicalidade e na ousadia evangélica: "dom Luciano e dom Hélder, souberam viver neste mundo a diaconia cristã, do serviço fraterno, alegre e impetuoso, pois eram tomados pela fé em Cristo e em seu projeto de salvação. Eles nos envergonham pela radicalidade e fidelidade ao Evangelho, pois sabiam que o mundo, sofrido, complexo, pluricultural, midiático e ideário, é espaço absoluto e completo da ação do evangelizador".

Essa ousadia de Luciano era complementada pelo seu estilo alegre e corajoso, confiante na missão do Evangelho e desafiador para enfrentar a morte e o sofrimento. "Ele tinha características próprias de alguém cheio da santidade de Deus, de desprendimento, de vida austera, de pobreza, compaixão, misericórdia, de suportar a dor e o sofrimento, de enfrentar os grandes desafios", afirmou o padre Júlio Lancelotti em entrevista ao IHULancelotti foi educando de dom Luciano no seminário em São Paulo, depois de concluir a teologia e ser ordenado, acompanhou o bispo na criação da Pastoral do Menor, assim como por anos, dias e noites, assumiram o serviço da Pastoral do Povo de Rua na maior arquidiocese da América Latina.

Jesuíta como Francisco, Luciano morreu em 27 de agosto de 2006, portanto, não vivenciou o atual pontificado. Mas há uma sintonia clarividente entre os dois, defensores da coerência cristã e promoteres de uma Igreja das periferias. Foi no pontificado de Francisco, em 2014, que o Vaticano deu início ao processo de beatificação de dom Luciano Mendes de Almeida.

 

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Dom José Maria Pires

Nasceu em Córregos, Minas Gerais, no ano de 1919, e foi arcebispo da Paraíba. Foi ordenado bispo de Araçuaí, Minas Gerais, em 1957, tornando-se o primeiro bispo negro do país. Em 1965 foi nomeado para a Arquidiocese da Paraíba, a qual administrou por 30 anos. Autor de diversos livros, recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade Federal da Paraíba. Faleceu em 2017. 

Foi padre conciliar no Vaticano II, participando de quatro sessões. Suas posições no concílio foram de defesa da formação sacerdotal voltada à realidade e o retorno da Igreja ao espírito das primeiras comunidades cristãs, um fundamento para as Comunidades Eclesiais de Base - CEBs. Ele também foi o primeiro bispo a presidir a Missa dos Quilombos, escrita por Pedro Casaldáliga e musicada por Milton NascimentoSegundo o teólogo belga José Comblindom Zumbi foi um dos bispos que mais lutou para trazer o Vaticano II para as conferências de MedellínPuebla e se efetivar na Igreja latino-americana e brasileira.

Dom José Maria (Foto: Cebi)

O apelido de Dom Zumbi lhe foi dado por Casaldáliga, após ser apelidade de Dom Pelé, por ser um bispo negro. Zumbi, remetendo ao líder quilombola do século XVII, não expressava apenas a cor da pele, mas a resistência e a doação pela libertação dos negros e da construção de pequenas comunidades - em sua arquidiocese chegaram a existir mais de 400 CEBs. O educador e antropólogo Mauro Passos apresenta detalhes da jornada de Dom Zumbi e seus escritos: "em lugar de fazer, mobilizava os grupos e as pessoas para com isso multiplicar ações. Para ele, a pastoral dever ser um farol iluminando a vida", afirma em artigo publicado pelo IHU.

Passos relata como dom José sempre foi incisivo e respeitoso em suas asserções, não temia as represálias, mas falava com a convicção de que o discurso deve se aliar à prática, e a prática deve se atualizar com a realidade do povo. Essa também era a percepção que Hélder Câmara tinha, como afirmou em prefácio de um dos livros do seu companheiro arcebispo: "Dom José Maria vai às causas, vai às raízes... E fala claro, sem perder a serenidade, mas chamando as coisas pelos nomes. Quem quiser livrar-se de um Cristianismo desencarnado, quem quiser livrar-se de ensinamentos inodoros, incolores, pregados no vácuo, leia suas páginas".

O bispo do povo negro sabia muito bem se localizar no tempo e espaço que o aggiornamento do Vaticano II exigia. Ao saber onde se colocar, sabia que a missão cristã era comunitária, e a Igreja assim deveria ser, portanto, se atualizar era saber se descentralizar, ir às margens, aos marginalizados pelo poder temporal. No Brasil a exploração colonial e capitalista da terra cercou latifúndios, escravizou negros, segregou povos. Em artigo publicado pelo IHU no dia da morte de dom Zumbio sociólogo e teólogo Fernando Altenmeyer, constata que "como discípulo de Cristo, sabe mostrar ainda hoje as riquezas do Concílio Vaticano II, como um projeto de vida. Uma Igreja que se distancie dos 'centros' e que se aproxime das 'margens' do mundo. Uma Igreja que não espere nem confie nos poderosos e nos senhores do mundo. Uma Igreja que deve continuar a cumprir a missão profética de proclamar os direitos dos oprimidos mesmo sabendo que sobre ela pesa a cólera dos governantes, pois só esta fé autêntica é que poderá salvar a pobres e ricos. Nesta Igreja não há lugar para acomodados e passivos". 

Segundo o padre Júlio Lancelotti, não há no Brasil hoje bispos com a estatura de dom Zumbi, dom Hélder ou dom Luciano, e talvez sequer reconheçam a importância destes.

 

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