A proteção aos Povos Indígenas Livres e as ameaças do povo da mercadoria: resistência à pacificação forçada. Artigo de Gabriel Vilardi

Isolados Yanomami em registro feito pela Funai: pressão vem de madeireiros e garimpeiros | Foto: CGIRC/Funai

14 Agosto 2024

Como denunciado pelo Cimi, a Funai não tomou as devidas providências em 37 territórios identificados com a presença de grupos isolados. Logo, esses povos estão à mercê de todo tipo de ameaça e, evidentemente, não possuem os devidos meios para fazerem as denúncias cabíveis nessas situações, o que agrava sobremaneira sua vulnerabilidade. Até quando permanecerá inerte o governo? Acaso aposta no genocídio dos Povos Livres?

O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o artigo.

“Violência e doença, batedores da civilização: o contato com o homem branco, para o indígena, continua sendo o contato com a morte”, já dizia Eduardo Galeano. “As disposições legais que, desde 1537, protegem os indígenas do Brasil voltaram-se contra eles”, apontou com clareza. “De acordo com os textos de todas as constituições brasileiras, são ‘os primitivos e naturais senhores’ das terras que ocupam”, reconheceu o autor de As veias abertas da América Latina em 1971, sem saber que a Constituição de 1988 também garantiria a esses povos o direito às terras ocupadas tradicionalmente. “Ocorre que, quanto mais ricas são essas terras virgens, mais grave se torna a ameaça que pende sobre suas vidas; a generosidade da natureza os condena à espoliação e ao crime”[1], desenhou com perspicácia o cenário tenebroso que enfrentam os Povos Indígenas no Brasil.

Se os povos originários que mantêm contato com os colonizadores e seus descendentes há séculos vem lutando bravamente contra o impiedoso extermínio, muito mais em risco se encontram os Povos Indígenas Livres ou em Isolamento Voluntário. Esses grupos escolheram, por razões diversas, se manter afastados da sociedade envolvente e até de seus parentes indígenas em contato com o mundo não indígena, preservando seu modo de vida ancestral.

Segundo dados do Grupo de Trabalho Internacional para a Proteção dos Povos Indígenas em Isolamento e Contato Inicial (GTI-PIACI), “há registros de 185 grupos indígenas isolados, dos quais foi confirmada a existência de 66 em oito países da Amazônia, Cerrado e Gran Chaco (Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Suriname, Peru, Venezuela e Paraguai)”[2]. Desses, a Equipe de Apoio aos Povos Livres (Eapil) do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) atesta 119 referências de Povos Livres no Brasil. Ao passo que a Funai reconhece apenas 28 dessas presenças.

Esses povos mantinham relações com outros povos originários, mas geralmente por situações traumáticas e violentas, atreladas aos não indígenas, se sentiram ameaçados e optaram por se isolar. Pode-se dizer que são povos da anticonquista, que se negaram a se submeter à barbárie do povo da mercadoria – como denomina a liderança Davi Yanomami os não indígenas. Resistem de uma maneira extrema nos últimos rincões de floresta profunda à destruição de seu mundo tradicional. Nesse sentido ensina Guenter Francisco Loebens, experiente indigenista e grande conhecedor dessa realidade:

“Para entender a vontade manifesta desses povos pelo isolamento deve ser considerada a sua opção pela autonomia, evitando relações de dominação ou conflitos que poderiam gerar desequilíbrios internos. essa opção normalmente está associada a experiências traumáticas de encontros, protagonizados ou não por eles, com os agentes das frentes econômicas das sociedades nacionais. encontros marcados pela violência dos massacres, das epidemias, da invasão de seus territórios e da depredação de suas fontes de alimento e de seus referenciais simbólicos. revela, por outro lado, uma enorme capacidade de luta e resistência desses povos para manter, mesmo em situações muito adversas, a sua autonomia e para suprir suas necessidades materiais, espirituais e de vida em sociedade”.[3]

Como se depreende destes casos, os Povos Livres estão em estado de específica fragilidade e correm grande perigo. Infelizmente, a sanha dos neocolonizadores parece ser ilimitada. Seus expoentes nomeados como “desbravadores” e “pioneiros” avançam sobre os territórios então preservados de floresta. Diante de si conseguem ver apenas o lucro fácil e as vantagens que podem auferir das vastas terras inexploradas pelo tóxico capital.

Os “representantes do progresso” possuem um apetite incontrolável e parecem dispostos a qualquer sacrifício em nome do desenvolvimento nacional e do aumento de seu patrimônio pessoal. Na sua visão os Povos em Isolamento Voluntário são obstáculos a serem superados e, conforme inúmeras notícias, estão prontos para usar da violência e do genocídio para alcançarem seus objetivos. Madeireiros, garimpeiros, pescadores ilegais, latifundiários e governos com seus faraônicos projetos de infraestrutura, entre outros, os inimigos desses povos são muitos.   

Conforme detalhada análise apresentada no Relatório de Violência contra os Povos Indígenas no Brasil-Dados de 2023 um número alarmante de Povos Livres está sob concreta ameaça e considerável vulnerabilidade:

“Em 2023, foram registrados casos de invasões e danos ao patrimônio em 30 TIs com presença de indígenas em isolamento voluntário. Estas áreas reúnem 56 dos 119 registros de Povos Indígenas Isolados atualmente contabilizados no país pela Eapil – ou seja, quase metade do total. O contexto é ainda mais grave se considerarmos que 37 do total de 119 registros encontram-se em áreas sem nenhuma providência para a restrição de acesso, demarcação territorial e proteção efetiva da Funai”. [4]

Apesar de alguns inegáveis avanços do atual governo em relação à pauta indígena, ainda muito resta a ser feito. E no tocante aos Povos em Isolamento Voluntário garantir a proteção das terras em que vivem e circulam é absolutamente fundamental. Dentre os instrumentos que o órgão indigenista federal possui para assegurar uma mínima proteção estão as Portarias de Restrição de Uso dos territórios e a instalação de Bases de Proteção Etnoambiental (Bapes).

Se a gestão atual reverteu o descabido expediente do governo anterior que se utilizava de prazos de validade exíguos para as referidas portarias, aumentando a exposição de tais povos aos voluptuosos invasores, pouco se avançou além de algumas desintrusões determinadas pelo Supremo Tribunal. Tristemente, a Funai não possui nem servidores nem orçamento suficiente para cumprir seu papel de salvaguardar esses povos tão gravemente em risco.

De acordo com o entendimento do Cimi, a melhor estratégia para resguardar os Povos Livres é a divulgação e a confirmação de informações mínimas desses grupos, para que assim não sejam exterminados na surdina do desconhecimento do restante da sociedade. Uma vez demarcados seus territórios, conforme manda o art. 231 da Constituição Federal, o governo precisa instalar as bases com servidores experientes e recursos necessários para assegurar a segurança de seus habitantes originários.

Como denunciado pelo Cimi, a Funai não tomou as devidas providências em 37 territórios identificados com a presença de grupos isolados. Logo, esses povos estão à mercê de todo tipo de ameaça e evidentemente não possuem os devidos meios para fazerem as denúncias cabíveis nessas situações, o que agrava sobremaneira sua vulnerabilidade. Até quando permanecerá inerte o governo? Acaso aposta no genocídio dos Povos Livres?

Muitos Povos Indígenas já estão cansados das promessas vazias e das falsas proteções legais oferecidas pelo sistema não indígena. Afinal, o descaso e o projeto de extermínio remontam ao tempo das Colônias, em toda a América Latina, como frisa Galeano:

“Manava sem cessar o metal das veias americanas, e da corte espanhola, também sem cessar. Chegavam ordenações que outorgavam uma proteção de papel e uma dignidade de tinta aos indígenas, cujo trabalho extenuante sustentava o reino. A ficção da legalidade amparava o indígena; a exploração da realidade o dessangrava. Da escravidão à servidão, do trabalho forçado ao regime de salários, as variantes da condição jurídica da mão de obra indígena só alteravam superficialmente a situação real”.[5]

Não bastasse o cerco promovido aos seus parentes em isolamento voluntário cada vez mais espremidos por aqueles que cobiçam seus territórios, o movimento indígena ainda tem sido cobrado a se sentar para negociar com os ruralistas seus direitos conquistados com muita luta. Patrocinada pelo ministro Gilmar Mendes a acintosa “conciliação” quer colocar os indígenas sob intensa pressão para que cedam suas terras ancestrais.

Para aprofundar a questão e conhecer o drama a que estão submetidos os Povos em Isolamento Voluntário, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o debate “A proteção aos Povos Indígenas Livres e as ameaças do povo da mercadoria”, na próxima quinta-feira (15), às 17h30min. Contribuirão nessa reflexão o Prof. Dr. Lino João de Oliveira Neves (UFAM) e o indigenista Guenter Francisco Loebens (EAPIL-CIMI).

Vale asseverar que a aparente conciliação não passa de uma mal disfarçada tentativa de pacificar os indígenas segundo os interesses do povo da mercadoria, que julga haver um preço monetizado para tais territórios. O que o magistrado não compreende é que abrir mão desses territórios, parte deles com a presença de grupos isolados, significa renunciar à vida desses parentes resistentes. Estes parentes vêm sendo monitorados com cuidado e responsabilidade por seus irmãos e respectivas associações indígenas.

Mal sabe o ilustre decano da Corte Constitucional – membro do povo da mercadoria – que tal pretensão imoral jamais será aceita pelas organizações indígenas, porque suas comunidades e seu modo de vida tradicional são inegociáveis e não estão sujeitos a qualquer desejo arrogante de “pacificação” forçada. Basta de genocídios! Lutar pela integridade dos Povos Indígenas Livres significa garantir que continuem exercendo a sua autodeterminação sem quaisquer constrangimentos ou ameaças. Demarcação, já! Pacificação, nunca!

Notas

[1] GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2021. p. 66.

[2] GTI-PIACI. Um apelo à urgência na proteção dos Povos Indígenas em Isolamento e Contato Inicial na América Latina. 8 mar. 2024. Disponível em: https://cimi.org.br/2024/03/um-apelo-a-urgencia-na-protecao-dos-povos-indigenas-em-isolamento-e-contato-inicial-na-america-latina/

[3] LOEBENS, Gunter Francisco. Povos Indígenas Isolados: violência e impunidade na Amazônia. Povos Indígenas Isolados na Amazônia: A Luta pela Sobrevivência. Manaus: Ed. UFAM, 2011. p. 26/27.

[4] Eapil/Cimi. Legado trágico, pressão contínua: ações emergenciais são insuficientes para garantir proteção a Povos Isolados. Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados 2023. p. 230.

[5] GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2021. p. 56.

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