08 Outubro 2020
"Obra de Casaldáliga une vidas negras à memória sacramental da morte e ressurreição de Jesus", escreve Luís Corrêa Lima, padre jesuíta, doutor em História pela Universidade de Brasília – UnB e professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio.
Poucos meses após a morte do negro norte-americano George Floyd, faleceu dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Felix do Araguaia, aos 92 anos de idade. A onda mundial de protestos contra o racismo, com o lema "Vidas negras importam" (Black lives matter), coincidiu com a despedida deste bispo espanhol radicado no Brasil e grande defensor de indígenas, camponeses, negros, mulheres e dos mais esquecidos. Ainda nos tempos da ditadura civil-militar, em 1981, Casaldáliga criou a Missa dos Quilombos, em parceria com o poeta Pedro Tierra e com o músico Milton Nascimento. Esta missa foi celebrada em União dos Palmares (AL) na data da morte de Zumbi, dia 20 de novembro. Dois dias depois, a celebração ocorreu no Recife, na Praça do Carmo, o mesmo local onde a cabeça do líder negro decapitado foi exposta, em 1695. Participaram da celebração dom Helder Câmara, então arcebispo de Olinda e Recife, outros membros do clero e uma multidão de aproximadamente 8 mil pessoas.
O belo canto de entrada da Missa, A de Ó, fala com propriedade de dores e padecimentos dos afro-brasileiros no passado e no presente, bem como de seus sonhos, lutas e alegria contagiante:
Estamos chegando do fundo da terra,
estamos chegando do ventre da noite,
da carne do açoite nós somos,
viemos lembrar.
Estamos chegando da morte dos mares,
estamos chegando dos turvos porões,
herdeiros do banzo nós somos,
viemos chorar.
Estamos chegando dos pretos rosários,
estamos chegando dos nossos terreiros,
dos santos malditos nós somos,
viemos rezar.
Estamos chegando do chão da oficina,
estamos chegando do som e das formas,
da arte negada que somos,
viemos criar.
Estamos chegando do fundo do medo,
estamos chegando das surdas correntes,
um longo lamento nós somos,
viemos louvar.
A DE Ó
Estamos chegando dos ricos fogões,
estamos chegando dos pobres bordéis,
da carne vendida que somos,
viemos amar.
Estamos chegando das velhas senzalas,
estamos chegando das novas favelas,
das margens do mundo nós somos,
viemos dançar.
Estamos chegando dos grandes estádios,
estamos chegando da escola de samba,
sambando a revolta chegamos,
viemos gingar.
A DE Ó
Estamos chegando do ventre de Minas,
estamos chegando dos tristes mocambos,
dos gritos calados nós somos,
viemos cobrar.
Estamos chegando da cruz dos engenhos,
estamos sangrando a cruz do batismo,
marcados a ferro nós fomos,
viemos gritar.
Estamos chegando do alto dos morros,
estamos chegando da lei da baixada,
das covas sem nome chegamos,
viemos clamar.
Estamos chegamos do chão dos quilombos,
estamos chegando no som dos tambores,
dos Novos Palmares nós somos,
viemos lutar.
A DE Ó
No Brasil, os quilombos foram uma alternativa ao poder colonial e à escravidão. Ainda hoje, há aproximadamente 5 mil comunidades remanescentes de quilombos, de Norte a Sul do país, em povoados com população variando de 30 a duas mil pessoas. Conhecer e celebrar esta história é valorizar o protagonismo do povo negro, que não se resignou totalmente diante da opressão.
Em 2003, uma lei federal tornou obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira no ensino fundamental e médio. O conteúdo abrange história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a sua contribuição nas áreas social, econômica e política da história brasileira. Esta história e cultura afro-brasileira deve ser ministrada no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística, literatura e história. E, em 2011, outra lei federal estabelece o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, a ser comemorado anualmente em 20 de novembro. Estas leis, se bem implementadas, são instrumentos importantes de políticas públicas para fortalecer a autoestima da população negra e apoiar sua luta por mais efetiva cidadania.
A Missa dos Quilombos de dom Pedro Casaldáliga é pioneira nesta causa, unindo as vidas negras à memória sacramental da morte e ressurreição de Jesus. Obrigado, dom Pedro! Você nos ajuda a sermos melhores brasileiros e melhores cristãos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A Missa dos Quilombos e a importância das vidas negras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU