"Esperamos que a CNBB que, em 1994, provocou a criação do Grito dos Excluídos continue se sentindo comprometida com o Grito e consiga sinodalmente escutar a voz e o grito de tantos irmãos e irmãs, inseridos na caminhada das comunidades eclesiais de base e das pastorais sociais, que insistem na herança do Papa Francisco por uma Igreja em saída para as periferias e organizada a partir da sinodalidade e não a partir da hierarquia."
O artigo é de Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e escritor. Assessora movimentos sociais e comunidades eclesiais de base e é membro da Comissão Teológica da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo.
Marcelo Barros (Foto: Arquivo pessoal)
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
Em meados de agosto deste 2025, alguns canais de comunicação, ligados a grupos católicos tradicionalistas, celebraram o fato de que o Papa Leão XIV escreveu aos bispos católicos da Amazônia que a missão da Igreja é anunciar Jesus Cristo e teria também aludido de que não devemos adorar a Mãe-Terra. De fato, por ocasião de um encontro dos bispos da região amazônica em Bogotá (de 17 a 22 de agosto), o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, dirigiu ao cardeal Pedro Barreto Jimeno, presidente da Conferência Eclesial da Amazônia (CEAMA), um telegrama, no qual o Papa Leão XIV agradece aos bispos por "seus esforços para promover o bem maior da Igreja para os fiéis do amado território amazônico". Nessa mensagem, o papa afirma: “É necessário que Jesus Cristo, em quem se recapitulam todas as coisas, seja anunciado com clareza e imensa caridade entre os habitantes da Amazônia".
O papa também elenca quais devem ser os três elementos ou dimensões da missão da Igreja:
1 - o anúncio do evangelho,
2 - a solidariedade aos povos da região
3 - o cuidado com a Casa Comum.
Ainda acrescenta: “O cuidado com a terra e a natureza se baseia no fato de que toda criação é feita para louvar ao Criador "[1].
As mesmas redes sociais que festejaram esse telegrama do papa também aplaudiam o fato de que, no site da CNBB, Dom João Santos Cardoso, arcebispo de Natal, publicou uma síntese que pareceria elogiosa do livro A Crise da Igreja Católica e a Teologia da Libertação, do frei Clodovis Boff e do padre Leandro Adorno, pároco. Em seu ensaio, o arcebispo ressalta que, ao examinar o “declínio atual da Igreja Católica, a obra de Clodovis Boff e Leandro Adorno não se limita à análise de dados estatísticos, mas apresenta um diagnóstico que integra dimensões espirituais, pastorais e teológicas. A questão central seria, sobretudo, a perda de vitalidade espiritual e a inversão de prioridades quanto à missão e à identidade eclesial”. (...) “Segundo os autores, a Igreja perde fiéis porque, em muitos contextos, deixou de comunicar de forma viva o mistério de Deus, oferecendo respostas mais sociológicas que espirituais. (...)“A gravidade está no deslocamento do centro da Igreja de Cristo para o mundo, priorizando demandas sociais em detrimento da experiência teologal”[2].
Quem, inadvertidamente, lê o livro de Clodovis Boff e do padre Adorno pode imaginar que esses irmãos estão descrevendo e criticando a proposta de Igreja que nas décadas de 1970 e 1980, bispos como Oscar Romero em El Salvador, Leónidas Proaño em Riobamba, no Equador e aqui no Brasil, de Helder Camara, Pedro Casaldáliga, Tomás Balduíno e outros pastores profetas orientavam. Esses bispos e outros cristãos e cristãs, mártires da fé, são os culpados desse desvio que Clodovis e os seus aliados apontam. Esses bispos, assim como padres, irmãs e leigos que deram a vida pela causa do reino atuaram e guiaram a nossa Igreja nesse caminho e foram acusados exatamente com os mesmos argumentos que ainda hoje são usados contra a caminhada de libertação.
No fundo, em 2025, essa discussão volta aos conflitos que, no começo dos anos 1970, existiam nos ambientes de Igreja com relação a algumas pastorais sociais e à organização missionária da Igreja. Motivados pela conferência eclesial de Medellín e de suas conclusões (1968), um grupo de missionários da Amazônia cria o Conselho Indigenista Missionário (1972). A orientação é que as missões indígenas nas aldeias não teriam mais como objetivo “anunciar Jesus Cristo” às comunidades indígenas, ou seja, converter as comunidades indígenas à religião. Iriam sim, testemunhar concretamente o amor de Jesus e a sua proposta do reinado divino, ao se inserir amorosamente e apoiar a caminhada dos povos indígenas na reconquista de suas terras, na revalorização de suas culturas e no direito de viverem suas espiritualidades originárias. Três anos depois, a assembleia que fundou a Comissão Pastoral da Terra (CPT) propunha trocar o modelo de missão da Pastoral Rural que visava o que se chamava de “evangelização do homem do campo” pela inserção amorosa e apoio às causas do povo do campo: Reforma Agrária, agricultura ecológica, etc.
É claro que, naquela época, muitos bispos e padres diziam que a CPT não era religiosa e sim social e política. Ao olhar a ação da CPT, muitos se perguntavam: Onde está o P da Pastoral da Terra? Para eles, só seria pastoral se fosse religiosa e eclesiástica. Nem o martírio de pessoas como o Padre Josimo Tavares, Margarida Alves, Ezequiel Ramín e a Irmã Dorothy Stang, todos ligados à Pastoral da Terra, nem o martírio do irmão jesuíta Vicente Canas, da Irmã Adelaide Molinari, de Marçal Guarani e de outros e outras irmãs ligados ao CIMI os convenciam de que o sangue desses irmãos e irmãs provavam a veracidade do caminho e era preciso sermos irmãos e companheiros no testemunho de Jesus e nas aflições por causa do reino (Ap 1, 9). Como disse Jesus no evangelho: “Se em Sodoma e Gomorra, tivessem sido feitos os sinais que foram feitos no meio de vós, essas cidades teriam se convertido” (Mt 10, 15- 23).
Ao mesmo tempo que muitas Igrejas locais e muitos pastores se deixaram comover, outros mais eclesiásticos invalidavam a herança de nossos mártires pela sua forma de propor uma volta à Cristandade que, de certa forma, “legitima” o sistema que os matou e não reconhece o sangue deles como misturado ao sangue de Jesus na cruz.
Em San Salvador, logo depois do martírio de Oscar Romero, o Vaticano nomeou como arcebispo alguém ligado aos militares que mataram Romero. Em toda a América Latina, muitos dos nossos irmãos e irmãs mártires foram torturados e mortos por governos e instituições que se proclamavam cristãos. No Chile, o núncio papal era amigo pessoal do General Augusto Pinochet e foi através dele que, quando o papa João Paulo II foi ao Chile, visitou o ditador na residência presidencial e ali celebrou uma missa privada para o Ditador e a sua família. Na Argentina da ditadura militar, bispos católicos foram acusados de entregar aos algozes padres e leigos considerados comunistas. Era a ditadura que os representantes do Vaticano consideravam como aliada da Igreja e não os irmãos e irmãs que viviam a missão em um modelo de Igreja ligado à Teologia da Libertação.
Ainda hoje, muitos desses irmãos que defendem a Cristandade propõem orar pelos cristãos perseguidos e esquecem de orar pelas vítimas, quando são os que se dizem cristãos que os perseguem.
Seria muito bom que esses atuais críticos das “demandas sociais” pudessem nos mostrar quais as dioceses e Igrejas que, atualmente, mantêm esse modo de ser Igreja e de viver a missão dos tempos da profecia e da caminhada. Alguém de vocês que leem essas linhas, consegue me mostrar onde se realiza isso que o livro de Clodovis ou a resenha do bispo apontam como denúncia?
Parece que, atualmente, a maioria das paróquias católicas no Brasil e em outros países tenta reproduzir um Catolicismo devocional, da época das nossas avós. Em paróquias e dioceses, nas quais, há algumas décadas, se realizavam encontros de comunidades eclesiais de base e círculos bíblicos, atualmente, só se fazem novenas de santos e santas, sucedidas por terço dos homens e adoração ao Santíssimo Sacramento. Muitos padres, na maioria, jovens, dão mais importância a vestes litúrgicas romanas do que ao serviço do povo. Para celebrar missa, precisam da corte de dez ou doze coroinhas, paramentados com túnicas vermelhas. Também no mundo evangélico, o devocionismo toma conta das Igrejas. Mas, isso, os autores do livro e a resenha do bispo não percebem nem estranham. Talvez porque para eles, isso significa “anunciar Jesus Cristo”.
O que parece estar por trás do livro e da resenha do bispo, assim como do telegrama do Papa Leão é: Precisamos retomar o modelo de Cristandade. Sem negar a necessidade do trabalho social em favor do povo mais carente e sem descuidar da ecologia ambiental, de forma amorosa, portanto, nova, é preciso novamente separar Deus e o mundo, o espiritual e o social, o Cristo e os pobres. Talvez, eles tenham certa razão ao perceber que há uma crise e que insistir hoje no modelo de Cristandade e usar linguagem pós-moderna é como vestir-se com paletó e gravata, mas manter nos pés sandálias de dedo. Só que, ao invés de propor o despojamento e a liberdade, eles aconselham: coloquem sapato social. Ou seja, vocês que mantêm a lógica e o espírito de Cristandade voltem ao eixo central de sua organização. E foi o caminho que alguns deles seguem: voltam aos trajes clericais. Assumem um estilo de vida conventual antigo e usam o pretexto de sempre: a linguagem clássica do anúncio de Jesus Cristo para legitimar o estilo colonial e europeu da Igreja hierárquica de sempre.
Em 1994, depois da 2ª Semana Social Brasileira, a CNBB criou o Grito dos Excluídos e Excluídas. Nesse ano, estamos preparando para esse 7 de setembro o 31º Grito com o tema: “Cuidar da Casa Comum e da Democracia é luta de todo dia”. Assim os irmãos e irmãs recordam os dez anos da publicação da encíclica Laudato Si e tomam posição diante de todas as ameaças que a nossa frágil democracia ainda sofre diariamente.
Esperamos que a CNBB que, em 1994, provocou a criação do Grito dos Excluídos continue se sentindo comprometida com o Grito e consiga sinodalmente escutar a voz e o grito de tantos irmãos e irmãs, inseridos na caminhada das comunidades eclesiais de base e das pastorais sociais, que insistem na herança do Papa Francisco por uma Igreja em saída para as periferias e organizada a partir da sinodalidade e não a partir da hierarquia.
Hoje, muitos irmãos e irmãs continuam dando a vida e são mártires da causa do reinado divino nesse mundo cruel. Escrevem com o seu sangue o pedido para que abramos os olhos do espírito para esse modelo de Igreja Cristandade no qual, de vez em quando, mesmo nós ainda nos movemos. Precisamos perceber que não se trata apenas de debate intelectual ou mesmo teológico. As comunidades afrodescendentes e os grupos de espiritualidades indígenas nos confirmam: há uma questão de humanidade por trás dessa discussão. Não nos deixemos seduzir por políticas de ódio ou de indiferença, disfarçadas em discursos espirituais e, pior ainda, em nome de Jesus Cristo, nosso irmão maior e mártir primeiro da fila das testemunhas (mártires) de nossa fé. A Vida em primeiro lugar. Cristandade, nunca mais!