18 Mai 2024
Ainda é possível ser cristão numa sociedade que não é mais cristã? Aqui está a questão crucial que decidiu analisar publicamente, sem muitos descontos, o teólogo e estudioso bíblico belga Jozef De Kesel, cardeal e arcebispo emérito de Bruxelas-Malines, grande diocese que liderou de 2015 até último junho. A Libreria Editrice Vaticana recentemente fez a curadoria da tradução italiana de seu livro, o primeiro a aparecer em mercado editorial do país, já publicado em francês em 2021, Foi et Religion dans une société moderne, seu título foi traduzido para: Cristiani in un mondo che non lo è +. Da qual emerge não uma última e desesperada tentativa de sobreviver às mudanças sem muitas perdas, mas um apelo franco para redescobrir a vocação prática, realista e política do Evangelho, num planeta agora definitivamente multicultural e multirreligioso que efetivamente o tornou facultativo: o neologismo exculturação, aplicado ao cristianismo e agora difundido no uso, foi criado pela socióloga Danièle Hervieu-Léger em referência ao contexto francês, para indicar o processo de deslocamento da matriz católica da cultura do país, que durante muito tempo permitiu à Igreja Católica dirigir-se a todos, para além da secularização das instituições e da secularização das mentalidades. Da década de 1970 até hoje, aquele processo se teria concluído e definido, tendo a Igreja perdido o apoio do tecido cultural comum que permitia-lhe conservar uma posição dominante no cenário religioso e social, apesar da diminuição do número de fiéis.
Um quadro que nos oferece a oportunidade para uma verdadeira reinvenção que provavelmente ainda reserva algumas surpresas, como afirma, entre outros, o teólogo indiano Felix Wilfred, dado que estaríamos apenas nos primeiros passos desse movimento: em que a provocação será cada vez mais a de tornar-se cristão, mais do que simplesmente ser cristão: “Tornar-se cristãos inter-religiosamente é uma experiência enriquecedora e estimulante." Além disso, se o papel sociológico das Igrejas parecia preponderante até poucos anos atrás na vida das comunidades e na organização ritual da existência, do nascimento à morte, esse vínculo dissolveu-se, pelo menos no nosso continente, até testemunhar a dupla extinção do cristianismo político e do cristianismo sociológico.
Jozef De Kesel, nascido em 1947, natural de Ghent, nas Flandres, estudou teologia na Universidade Católica de Leuven e na Universidade Gregoriana de Roma, com uma tese sobre o Jesus histórico na interpretação por Rudolf Bultmann. Antes de se tornar bispo auxiliar de Bruxelas-Malines em 2002, ensinou teologia dogmática e teologia fundamental em Ghent e Leuven. Ele desfruta há tempo de merecida reputação de homem aberto e disposto a dialogar sem medo com a cultura da modernidade, esperando – como ele escreve – "uma Igreja que participe no debate público e se empenhe por um mundo mais humano e fraterno”. Características totalmente confirmadas na entrevista que nos concedeu, na qual nos inspiramos em algumas das teses do seu livro, cujo prefácio é assinado pela teóloga Lucia Vantini, que assim resume o sentido: “Não é dito que para o cristianismo a perda da fisionomia cultural seja o início do fim, e de fato essa perda poderia até se revelar um kairòs, um momento na história da salvação com expressividades proféticas e inéditas, na qual a vida finalmente se tornará importante. Se uma cultura secularizada não é necessariamente uma cultura em que a religião está ausente, ainda assim devem ser buscadas as mediações para uma outra presença do cristianismo e formular perguntas diretas como esta: qual será o futuro e a forma da Igreja e da religião num Ocidente tão transformado?”.
A entrevista é de Brunetto Salvarani, publicada por Jesus, maio de 2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Há mais de vinte anos, em 1999, um fino teólogo como o canadense Jean Roger Tillard se perguntava: "Somos os últimos cristãos?" No seu livro o senhor admite que agora até mesmo na Europa não vivemos mais numa sociedade cristã, mas afirma, por outro lado, que o fim da cristandade não representa necessariamente o fim do cristianismo. Por qual razão?
Não creio que sejamos os últimos cristãos na Europa. É verdade que nem todos são cristãos. Não somos uma minoria, mas já não representamos mais a maioria. Isso é o que tento ressaltar no meu livro: que não estamos vivenciando o fim do cristianismo, mas sim o fim de uma figura história do cristianismo. Durante um milênio, o cristianismo foi a religião cultural do Ocidente. A Igreja podia viver e cumprir a sua missão num mundo que era ele próprio um mundo cristão: uma situação evidentemente muito confortável. Não é mais assim hoje. Mas não isso significa o fim do cristianismo. E a Igreja pode cumprir a sua missão, mesmo que já não tenha mais o status de religião cultural. A Igreja não é tudo. O mundo é muito maior que a Igreja, mas em mundo, ela é chamada a ser sinal do amor de Deus por este mundo. Não são as nações que são a Igreja, mas a Igreja é chamada a viver entre as nações na diáspora. É assim que nos ensinam o Antigo e o Novo Testamento.
Eminência, quais são na sua opinião as características que a Igreja Católica deveria assumir para ser mais credível e mais capaz de se fazer entender pela humanidade atual?
O que me parece importante é que a Igreja aceite em primeiro lugar a sua mudança de posição na sociedade; que reconheça o seu lugar e não pense que é tudo. Deve distanciar-se da posição confortável que teve no passado aqui no Ocidente, chamada em primeiro lugar a ser fiel ao Evangelho e à sua vocação. Não deve conformar-se às evidências de uma cultura secular. Uma igreja mais professante, que tem muito a oferecer ao mundo. Mas ao mesmo tempo, acho que também tem muito a aprender com o mundo. Fiel à sua identidade, mas ao mesmo tempo aberta ao mundo e à sociedade. Como claramente pediu o Concílio Vaticano II: não se atolar num espasmo nostálgico, mas aprender a compreender os sinais dos tempos. Para compreender melhor o que o Evangelho nos pede.
Anos atrás, o teólogo alemão Johann B. Metz argumentou, no seu Memoria passionis, que no nosso tempo convivem paradoxalmente uma evidente “crise de Deus”, mesmo que tal crise não se manifesta facilmente, porque por sua vez está muitas vezes ligada a uma evidência religiosa, até levá-la a falar de crise de Deus em uma época religiosamente entusiasta. O que pode nos falar sobre isso?
Eu certamente concordo com Metz. Se podemos falar de uma crise hoje, é certamente uma crise de fé. Martin Buber falou de ‘eclipse de Deus’ (Gottesfinsternis). Esse é certamente o caso de uma cultura secular em que a fé em Deus não é mais uma prova social. No entanto, eu não rotularia o nosso tempo como ‘uma época religiosamente entusiasta’. Compreendo o que Metz quer dizer, mas em referência ao nosso tempo, prefiro falar de ‘uma época espiritualmente entusiasta’. Porque a espiritualidade tornou-se um conceito que não inclui necessariamente a abertura à transcendência e, nesse sentido, à religiosidade. A espiritualidade é para muitos um meio de se aproximarem mais a si mesmos, mas não necessariamente também a Deus. E, portanto: o fato de existir um desejo de maior espiritualidade não significa que estejamos tranquilamente nos despedindo da secularização e retornando a ser uma cultura religiosa...
Não se pode negar que propicia uma certa contribuição para a desorientação dos católicos uma contestação agora aberta e generalizada, especialmente em alguns países, à ação do Papa Francisco e seus esforços para renovar a nossa Igreja. O que o senhor pensa?
Em primeiro lugar, isso me deixa muito triste. Também tenho dificuldade para entender essa atitude e essas críticas ao Papa Francisco. É claro que as reservas críticas são permitidas na Igreja, mas fazê-lo com tanta segurança e de forma tão aberta, mesmo por pessoas que têm grande responsabilidade na Igreja, é uma novidade. Às vezes penso: são mais modernos do que pensam. Lembram-me a parábola de Jesus sobre o fariseu e o publicano. Jesus não fala em geral, mas se dirige concretamente a ‘alguns que de si mesmos confiavam que eram justos, e desprezavam os outros” (Lc 18,9). Para mim, o pontificado do Papa Francisco não é uma ruptura, mas sim mais uma continuação das intenções mais profundas do Concílio Vaticano II. Não esqueçamos que já naquela época havia uma minoria muito preocupada. O que equivale a dizer que a grande maioria vê e vive este pontificado como uma grande graça, justamente como no caso do Concílio.
A Igreja Católica, em todo o caso, está vivendo um tempo de sinodalidade: que expectativas tem a respeito? Quais são os temas que na sua opinião o Sínodo mundial – o senhor participou, aliás, na sessão de outubro passado - deveria focalizar e os problemas que deveria pelo menos tentar resolver? Por exemplo, a hipótese dos padres casados, das diáconas, do papel dos leigos, a relação entre centro e periferia...
Os exemplos que você cita me parecem muito importantes: a corresponsabilidade na Igreja, o lugar das mulheres, uma maior descentralização. E também as questões relativas ao ministério ordenado: a ordenação das mulheres como diáconas e a questão – caso a necessidade pastoral o exigir – de ordenar presbíteros mesmo aqueles que são casados. Claro, não se pode fazer essas alterações simplesmente com um decreto. Isso requer muita consulta e tempo. Contudo, penso que será importante que o Sínodo já possa dar um impulso nesse sentido. Mas ao mesmo tempo não acredito que nos tornaremos uma Igreja mais sinodal apenas por meio de reformas estruturais: essas reformas não nos levarão muito longe se não forem o resultado de uma verdadeira conversão. Não se trata apenas de uma renovação, mas de uma conversão profunda.
O fato é que viemos de um passado muito clerical. O clericalismo consiste em considerar-se mais que os outros em virtude da própria ordenação ou responsabilidade. A Igreja é estruturada hierarquicamente: existem responsabilidades maiores e menores. Nem todos são bispos. Isso, contudo, causaria muitos problemas! Mas não existem governantes e subordinados: ‘porque um só é o vosso Mestre, e todos vós sois irmãos’ (Mateus 23,8). O clericalismo é também um perigo para a própria Igreja. Uma Igreja que não escuta mas sabe tudo e que se considera superior aos outros. Sim, superior ao mundo e que não tem nada a aprender dele e, portanto, está cega aos sinais dos tempos. Uma Igreja sinodal, ao contrário, é uma Igreja mais fraterna e, portanto, também uma Igreja humilde. ‘Bem-aventurados os pobres de espírito, os pobres de coração’: essa pobreza Jesus a pede não só a cada um dos seus discípulos, mas também à sua Igreja. Mas mais uma vez: uma Igreja sinodal, mais fraterna e mais humilde, não se torna assim apenas por meio de reformas estruturais. Não se torna sinodal em dois anos. É realmente um caminho, e um longo caminho.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
É o fim da cristandade, não do cristianismo. Entrevista com Jozef De Kesel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU