29 Junho 2021
Em uma entrevista ao jornal neerlandês Katholiek Nieuwsblad, o cardeal belga Jozef De Kesel, arcebispo de Malines-Bruxelas, falou sobre secularização e como isso não é necessariamente um problema.
Pelo contrário, diz ele, a secularização pode oferecer uma nova perspectiva para a Igreja.
“As pessoas tendem a ver a secularização de nossa cultura como um desenvolvimento negativo, mas não há necessidade de ficar triste sobre isso”, afirmou De Kesel.
Em seu último livro, o cardeal de 73 anos, que recentemente concluiu o tratamento contra um câncer, falou da sua visão sobre o papel que a fé pode ter em tempos modernos.
“O cristianismo se tornou uma religião cultural no Ocidente devido às circunstâncias históricas. Entretanto, esse não é necessariamente o caso em outras partes do mundo, veja a África ou Ásia. Não é verdade que a Igreja pode salvar apenas quem vive sua vocação na cultura cristã. Essa seria, claro, uma posição confortável para estar, mas também nunca se arrisca para as minorias e para a própria Igreja”, afirmou.
“Mesmo essa imagem é a uma incorporação profunda em nossa consciência coletiva”, continuou o cardeal. “Como resultado, as pessoas tendem a pensar que a Igreja está declinando porque as Igrejas não estão mais cheias. Mas eles não conseguem enchê-las porque o número de assentos na Igreja foi determinado em um tempo em que se vivia uma cultura religiosa. O fato de nossa cultura ter se tornado secular é visto como um desenvolvimento negativo. No entanto, nós não precisamos ficar tristes com o fato de que o cristianismo não é mais a religião da cultura de hoje, ou porque há descrentes ou não-crentes. Para esse mundo é que Deus chamou a Igreja para dar testemunho do seu amor”.
A entrevista é de Pieter Derdeyn, publicada por Katholiek Nieuwsblad e Crux, 26-06-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Você quer tirar o medo da secularização?
Eu questiono se uma cultura puramente secularista tem futuro, ou seja, uma cultura que ignora, marginaliza e privatiza a religião. Eu critico fortemente essa radicalização da secularização, que chamo de secularismo. Ela se apresenta como uma filosofia de vida, como uma espécie de religião secular, que mantém a sociedade sob controle e faz de um pensamento único: só o que é politicamente correto é permitido. Em tal cultura, a religião não tem nenhuma relevância social e é considerada um fenômeno puramente opcional. O homem, entretanto, é fundamentalmente um ser religioso. Todas as culturas pré-modernas foram culturas religiosas. Se eu disser “sim” para uma cultura secular, não é um “sim” para uma cultura sem religião. Eu digo “sim” a uma cultura em que nenhuma religião em particular tem a função de religião cultural, como costumava ser o caso no Ocidente ou como ainda é o caso do Islã em outras partes do mundo. Uma cultura secular garante diversidade.
Pode uma cultura realmente ser secular?
Em minha análise histórica eu considero a Paz de Westfália, em 1648 (tratados que encerraram a Guerra dos Trinta Anos, 1618-1648, e a Guerra dos Oitenta Anos, 1568-1648), ser de grande importância. Lutero queria reformar a Igreja, mas em vez disso a dividiu. Nós não entendemos quão sério isso foi, mas resultou na Guerra dos Trinta Anos, que foi a verdadeira primeira guerra mundial. A primeira solução, “um país deveria aderir à religião da monarquia”, não funcionou. Em Westfália decidiu-se que todos deveriam aderir à religião que quisesse. Acima estava a liberdade do homem e não a cultura dominante. A cultura secular tentou nos dar o panorama no qual eu respeito meu vizinho e não preciso usar a violência.
Isso não é uma utopia?
Eu espero que seja possível. É claro, essa não é uma solução miraculosa que encerra todos os problemas. Eu não idealizo as coisas. Eu simplesmente argumento que o cenário secular é necessário para garantir liberdade e diversidade. Porém, secularização precisa reconhecer seus limites sem se tornar uma ideologia cultural por si. Deve fornecer uma estrutura na qual eu respeito a outra pessoa. Quando um muçulmano emigra para este país, ele não pode dizer que a Sharia é lei aqui. Inculturação significa respeitar a estrutura secular. O drama no Oriente Médio mostra que tolerância é o que é necessário, em vez de ostracismo. No Iraque, onde os cristãos são cidadãos de segunda classe, o cardeal Louis Raphaël I Sako pede um regime secular que os trate como cidadãos que desejam reconstruir o país junto com outros.
E a Igreja ainda tem um papel a desempenhar neste mundo secular?
É precisamente a fé que ajuda a ser cidadãos responsáveis e a não permanecer à margem. A Igreja deve simpatizar e cuidar de todos. Trata-se de integração, não de assimilação. Não pode haver identidade sem abertura e não pode haver abertura sem identidade.
Em suma, a Igreja deve permanecer fiel à sua missão fundamental.
É minha convicção mais profunda que a Igreja deve ouvir a Palavra de Deus. Existe uma grande ignorância cultural sobre a fé cristã. Devemos celebrar bem a liturgia, também por todas essas pessoas que visitam a igreja em momentos cruciais de suas vidas. Temos que nos solidarizar com os altos e baixos da vida das pessoas, com os principais problemas do mundo: pobreza, refugiados, clima e assim por diante. A Igreja existe porque Deus quer, como sinal e sacramento para o mundo. Portanto, não deve se esconder ou entrar em uma dinâmica de “nós contra eles”. A Igreja deve estar presente como uma luz brilhante. Isso é evangelismo, mas não cristianização. No entanto, é uma realidade escatológica que o mundo inteiro compartilhará da glória de Deus, algo para o fim dos tempos.
Qualquer coisa que façamos, devemos fazer bem. É infinitamente importante que recebamos bem as pessoas e ouçamos com reverência. Não devemos abordá-los com premeditação. Se houver um encontro real, algo pode acontecer. Mas devemos nos abster de uma eficiência exagerada na assistência pastoral. É Deus quem abre os corações e Deus é paciente e leva seu tempo.
Qual é o verdadeiro tesouro da fé cristã?
Cada pessoa busca a felicidade. O que torna uma pessoa feliz está no que ela pode fazer pelos outros. Uma pessoa quer amar e ser amada, conhecer e ser conhecida. Eu acredito que isso tem a ver com Deus. Há uma quantidade infinita que não sabemos sobre Deus, mas sabemos disso: que somos amados por Ele nos dias bons e nos maus. Isso não significa que não haja mais problemas ou dúvidas. É uma compreensão profunda que se concretiza na missão de seu Filho, que tem um coração para cada homem e mulher.
De 04 de junho a 10 de dezembro de 2021, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU realiza o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.
XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição
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