24 Novembro 2023
Os homens? Devem reposicionar-se numa nova aliança de gênero, colocando o poder de lado.
“As novas categorias antropológicas são o legado dos feminismos que nos libertaram”. Fala Lucia Vantini, presidente da coordenação das teólogas italianas.
A entrevista é de Luciano Moia, publicada por Avvenire, 22-11-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Diante de tragédias como a que aconteceu com Giulia, onde mais uma vez uma jovem foi vítima da vontade criminosa de posse de um homem que a considerava evidentemente algo do qual livremente dispor, ainda não chegou a hora de tomar a sério o pedido do Sínodo concluído há poucos dias que nos convida a rever as “categorias antropológicas que elaboramos” reconhecendo que “não são suficientes para compreender a complexidade" na qual estamos imersos?
O triste caso de Giulia Cecchettin - responde Lucia Vantini, presidente da Coordenação das Teólogas Italianas, professora de filosofia e teologia fundamental em Verona, especialista em perspectivas de gênero - deixou uma marca profunda em nós. Inscreveu-se em nós com toda a dor e a raiva que pode trazer a notícia de uma jovem mulher assassinada no auge da vida por um jovem que não conseguiu elaborar seu abandono e aceitar que seus caminhos haviam se dividido.
Como escreveu Elsa Morante, a obsessão confundida com amor desencadeia o inferno na terra: “é um inferno ser amados por quem não ama nem a felicidade, nem a vida, nem a si mesmo, mas apenas a você." Além da amargura que está ligada à impotência por uma vida que acaba de florescer e que gostaríamos milagrosamente de reanimar, o que me perturba e agita agora é a percepção de um impressionante despreparo cultural em relação às questões de gênero e de um insistente analfabetismo afetivo que se obstina a não reconhecer ou pelo menos reduzir a injustiça do patriarcado em todas as suas formas explícitas de violência, mas também naquelas ocultas nas falsas e obsessivas preocupações do controle contínuo.
Se é de fato fácil ler em Masha Amini a história de uma mulher que paga com a vida o fato de não ficar docilmente no lugar que o sistema lhe atribuiu, mais difícil é perceber o esquema em histórias como essa e há quem insiste em não ver. As categorias necessárias para essa consciência, no entanto, não precisam ser inventadas: são um legado dos feminismos que libertaram as vidas das mulheres da opressão do patriarcado e do “fratriarcato” e que agora pedem insistentemente a todos os homens para que se reposicionem numa nova aliança como pais, companheiros, amigos, irmãos, filhos. Sem inveja que consome ou poder a disputar, mas, no máximo, a discutir.
Quanto peso têm nessas situações os estereótipos de gênero a que, mais ou menos conscientemente, todos nós fomos educados e a que, de diferentes maneiras, educamos nossos filhos?
É como se o mundo ainda não conseguisse perceber as ligações entre uma tragédia como essa e as culturas, os imaginários, as leis, os hábitos em que vivemos. Certamente o caso de Giulia e Filippo, na diferença e na assimetria das suas posições, é singular e não pode ser usado como argumento para dizer outra coisa, mas ao mesmo tempo revela uma urgência que não é mais adiável: corroer o sistema do domínio dos homens sobre as mulheres com uma cultura, uma educação, uma práxis capazes de reconhecer a liberdade feminina como um valor para o mundo inteiro, e finalmente cuidar de uma interioridade masculina que muitas vezes tem dificuldade para segurar a vulnerabilidade agora sem coberturas, e que tende a enfrentar as perdas da vida com ressentimento e violência.
A incapacidade de aceitar o rompimento de um relacionamento não é apenas uma experiência íntima, mas conecta-se em profundidade à ordem simbólica do contexto. Talvez no caso citado também tenha algo a ver a competição entre os sexos, que muitas vezes é desconsiderada. No plano pessoal, talvez o diploma de Giulia poderia parecer a Filippo o sintoma trágico de um caminho divergente, mas no plano cultural torna-se espontâneo ligar o desconforto àquelas leis não escritas segundo as quais não é aceitável que uma mulher supere um homem nos objetivos de sua vida. Nesse sentido, a práxis de um salário mais baixo para as mulheres não é um elemento casual, mas uma forma de garantia social. Público e privado estão sempre interligados.
Se quisermos realmente preparar uma grande virada, qual é o papel da família?
As famílias não são todas iguais: algumas fazem parte do problema, porque são disfuncionais. Nelas circula violência psicológica, física e espiritual, talvez reabsorvida em narrativas normalizadoras ou no silêncio que simula o bem. Tudo isso não se alimenta necessariamente de episódios dramáticos e bem reconhecíveis, porque a cultura tóxica que estrutura a identidade masculina no orgulho e aquela feminino no cuidado e na força para salvar vínculos a qualquer custo é potencializada também cada vez que pedimos a uma filha que seja mais paciente e mais gentil que seu irmão, em relação ao qual talvez se tolerem comportamentos e atitudes mais instintivos e agressivos, cada vez que nos ocorre de forma espontânea examinar e julgar ela – suas roupas, sua atitude, sua vida – quando denuncia a violência dele, quando se insinua a falta de confiabilidade feminina em posições de autoridade e de poder, quando se insiste demais sobre o desaparecimento dos pais sem qualquer atenção às mães, quando se fala às meninas que as provocações dos meninos são um sinal de seu interesse ou que o ciúme é uma forma de amor, quando aceitamos como certo que o estupro seja uma arma de guerra.
Talvez levando tudo isso em consideração, Elena Cecchettin, irmã de Giulia, tenha declarado que os monstros nunca nascem da noite para o dia porque existe uma cultura que os alimenta e os protege, e que o drama que envolveu sua família não é um crime passional, mas um crime de poder.
E o papel da Igreja?
Por sua vez, a Igreja corre sempre o risco de confundir com “desvarios” as palavras femininas, de neutralizar o desejo de justiça das mulheres através de idealizações ou demonizações, de remover todo lamento ou profecia femininas que poderiam minar um poder masculino ao qual alguns homens não querem renunciar. Uma comunidade justa pode ser vista pela forma com que ousa reconfigurar a si mesma quando as mulheres não querem mais ficar no quadro sufocante que inicialmente lhes havia atribuído.
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“Liberdade feminina, um valor para todos”. Entrevista com Lucia Vantini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU