15 Dezembro 2022
O principal desafio é parar de fantasiar sobre um retorno a um mítico “mundo cristão” e aceitar a condição de minoria. A crise dos abusos deixa clara a necessidade de a Igreja lidar com o mundo como ele é hoje, já que o escândalo jogou luz sobre “a perfeita conivência entre o sistema clerical e a lógica patriarcal”.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado em Commonweal, 13-12-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Terry Eagleton definiu que a cultura consiste em quatro componentes: um corpo de trabalho artístico e intelectual; um processo de desenvolvimento espiritual e intelectual; os valores, costumes, crenças e práticas simbólicas pelos quais homens e mulheres vivem; e todo um modo de vida.
Vale a pena manter isso em mente ao pensar na Igreja Católica estadunidense, que não apenas enfatiza a cultura, mas também exerce uma influência sobre ela. A história do catolicismo estadunidense é de “implantação” institucional e inculturação, e o encontro entre o catolicismo e a cultura muitas vezes levou a crises, como a condenação do “americanismo” em 1899 por Leão XIII na carta Testem benevolentiae.
Agora, no mundo ocidental, estamos testemunhando um tipo diferente de dinâmica na relação do catolicismo com a cultura. Pense nisso como “exculturação”, um conceito articulado há 20 anos pela socióloga francesa da religião Danièle Hervieu-Léger. É um desdobramento da profunda afinidade estabelecida ao longo da história entre as representações compartilhadas da cultura e a cultura católica.
Hervieu-Léger retoma esse conceito em seu último livro, escrito com Jean-Louis Schlegel (filósofo e sociólogo da religião e diretor da revista Esprit), intitulado “Vers l’implosion ? Entretiens sur le présent et lavenir du catholicisme” [Rumo à implosão? Conversas sobre o presente e o futuro do catolicismo].
Os autores argumentam que existem dois fenômenos paralelos e inter-relacionados de implosão (ou colapso) da Igreja Católica. O primeiro é interno, decorrente dos escândalos dos abusos sexuais e financeiros, e da resposta inepta da instituição – que evidencia a falta de pessoal qualificado profissional e socialmente no clero – e a inadequação das tentativas de recuperação emocional e simbólica por parte do clero no nível litúrgico (a batina, a missa pré-conciliar, o devocionalismo em latim).
Os autores afirmam que isso levou a Igreja a um estado de cisma de fato. Se as lutas pelo futuro da Igreja já estiveram centradas na oposição entre clero e laicato, ou em torno de modelos de “conservadorismo” e “progressismo”, isso mudou. Hoje, a luta é entre o tradicionalismo antimoderno, por um lado, e, por outro, uma noção de “ser Igreja” diferente – que busca romper o paradigma liberal-progressista de adaptação à cultura contemporânea, sem cair no antimodernismo tradicionalista.
Isso levanta questões significativas para o catolicismo liberal-progressista. De acordo com Hervieu-Léger e Schlegel, há sinais, na França e em outros lugares, de uma “restauração ou contrarrevolução católica em andamento”, alimentada por minorias mobilizadas que se deslocaram das margens para o centro da cena eclesial – uma dinâmica muito diferente daquela do início do período pós-Vaticano II e sob João Paulo II.
O desafio é complicado devido à fragmentação dentro do catolicismo, que agora parece um arquipélago de grupos separados, cada um com suas próprias tendências e relações com a instituição, mas também desconectados da instituição e de seus órgãos reguladores, levando àquilo que os autores chamam de “desregulação do elemento institucional” no contexto de uma “desqualificação de um sistema de poder”.
A segunda causa do colapso é externa: a profunda mudança na cultura desde o século XX. A rejeição atual da cultura católica pela corrente dominante difere da do passado, dizem os autores, porque é amplamente silenciosa – não há nenhum ataque direto ou explícito sendo lançado, como frequentemente ocorria nos séculos anteriores.
Essa rejeição não é resultado apenas do escândalo dos abusos. É também fruto de transformações epocais na relação entre a Igreja e a sociedade. Hervieu-Léger e Schlegel enfatizam quatro mudanças particulares: a dissolução das sociedades rurais; a redefinição da relação entre Igreja e política; o impacto da ciência na religião e na fé; e a mutação do modelo de família.
Este último, dizem eles, é “o principal vetor de exculturação” do cristianismo, não apenas na Europa ocidental amplamente secularizada, mas também nos países da Europa oriental, onde os padrões de secularização diferem – por exemplo, entre a Polônia e a República Tcheca.
Essa “exculturação” transformou a Igreja em um “empreendimento de serviços rituais”, algo que foi amplificado ou exacerbado pela pandemia. A hipermidiatização da Igreja funciona como uma espécie de trompe-l’oeil que esconde a fragilidade estrutural do catolicismo.
Hervieu-Léger e Schlegel oferecem pouca segurança àqueles que pensam que um catolicismo global, centrífugo e pós-institucional sobreviveria à implosão institucional. Uma tese central do livro é a necessidade de a Igreja redefinir o elemento institucional e superar a visão “territorial-imperial” e clerical do catolicismo em favor de uma abordagem “diaspórica”, sobre a qual Karl Rahner já havia escrito em 1954.
O principal desafio é parar de fantasiar sobre um retorno a um mítico “mundo cristão” e aceitar a condição de minoria. A crise dos abusos deixa clara a necessidade de a Igreja lidar com o mundo como ele é hoje, já que o escândalo jogou luz sobre “a perfeita conivência entre o sistema clerical e a lógica patriarcal”.
Não é nenhuma coincidência que “o papel das mulheres agora se tornou a chave para todas as reformas na Igreja”, como eles escrevem. O desafio é institucional, mas também cultural e, sobretudo, teológico: o escândalo dos abusos “abre um imenso canteiro de obras teológicas” que ainda não se realizou.
A reação ao escândalo destaca o status minoritário do cristianismo. Mas, ao mesmo tempo, também indica o fato de que “o catolicismo continua sendo um dos reservatórios de memória no centro da busca de identidade em nossas sociedades consumidas pela incerteza e pela inquietação”.
A análise da “exculturação” por parte de Hervieu-Léger e Schlegel também pode ser aplicada ao catolicismo estadunidense, mesmo que os Estados Unidos não sejam tão secularizados quanto a Europa ocidental. Há neste país um radicalismo pós-colonial que vê o cristianismo, e o catolicismo especificamente, como uma espécie de epidemia trazida pelos missionários europeus.
Não estou questionando o fato histórico de que empreendimentos coloniais patrocinados pela Igreja espalharam doenças no “novo mundo”. Mas a metáfora da própria Igreja como uma doença trazida pelo colonialismo se correlaciona com as imagens da Igreja que dominaram as manchetes nos últimos anos: que ela é um empreendimento criminoso por permitir e encobrir abusos; um sistema de opressão contra a liberdade individual; e um sistema patriarcal essencialmente hostil às minorias femininas, sexuais e de gênero.
Eu não acredito na narrativa que sustenta que os católicos nos Estados Unidos sofrem perseguição, especialmente devido às perseguições (e às ameaças) reais que os cristãos enfrentam em outras partes do mundo. Mas é difícil não ver que as representações do catolicismo como “o inimigo” passaram a fazer parte da percepção da nossa Igreja hoje. As tradições não cristãs são vistas, às vezes até pelos católicos, como mais parecidas com Jesus do que o cristianismo – e, especificamente, o catolicismo.
Essa questão reputacional abrange mais do que aquilo que é resumido pelos velhos e familiares lamentos de que “os bispos não entendem”. É algo maior e mais complexo. A exculturação estadunidense é uma resposta às obsessões culturais particulares dos formuladores de políticas católicos estadunidenses das últimas décadas.
E o estilo de liderança hierárquica que caracteriza o episcopado dos Estados Unidos – dez anos após a eleição do Papa Francisco – apenas reforça a percepção da natureza não cristã do catolicismo. Não é apenas o caso individual de um bispo do Texas que pediu que Hillary Clinton seja “silenciada pelo bem da humanidade”. A própria voz institucional da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos enfatiza uma narrativa revanchista e neotradicionalista, algo que provavelmente continuará, tendo em vista as lideranças eleitas na reunião plenária de novembro em Baltimore.
Católicos militantes influentes – clérigos, leigos, figuras políticas, doadores, especialistas e personalidades das mídias sociais – estão contribuindo com a exculturação, talvez inconscientes de quão perigoso isso pode ser (prova disso é o silêncio deles diante do surgimento de um “nacionalismo cristão”).
Isso não é ruim apenas para a Igreja em geral. Isso também está causando problemas no nível interpessoal. Nas interações dentro e fora dos ambientes católicos, parece que apenas a cortesia pessoal impede as pessoas de falarem desfavoravelmente sobre seu catolicismo (e às vezes as críticas vêm apesar da cortesia). Estabelecer distância entre os leigos e os bispos, enfatizando a diferença entre o povo e a instituição, funciona como um aviso prévio para qualquer conversa que possa se seguir.
Há não muito tempo, poderia ser uma carta pastoral mal pensada que causaria embaraço – mas pelo menos elas não eram tão lidas fora de um pequeno círculo de intelectuais católicos e de alguns católicos que iam à missa. Com a internet e as mídias sociais, muito mais pessoas podem ver – e com muito mais clareza – a vergonha que algumas lideranças católicas trazem para o catolicismo. E eu digo isso como alguém que não apenas estudou o episcopado nos últimos 30 anos, mas também como alguém que acredita veementemente na necessidade do episcopado.
Em uma fase anterior do período pós-Vaticano II, uma atenção especial à cultura era considerada essencial para avaliar os aspectos conservadores ou “irreformáveis” da instituição. Mas aqui, pelo menos neste país, a instituição está cada vez mais sob o controle de mãos antiliberais e iliberais. A barreira invisível destinada a separar o episcopado e os seminários do mundo mais amplo do sentimento anti-Vaticano II impediu tentativas de trabalhar com essas vozes e de moderar sua hostilidade; não impediu, no entanto, que essas vozes se infiltrassem naquelas partes do catolicismo antes consideradas inoculadas contra o revanchismo.
Talvez a exculturação seja necessária para desconstruir um sistema concebido após o Concílio de Trento há mais de quatro séculos. Resta saber se tal processo pode ser realizado sem pôr em risco a sobrevivência de todo o empreendimento.
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Exculturação: como o catolicismo passou a ser visto como o inimigo. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU