06 Outubro 2021
Fruto de dois anos e meio de trabalho, o relatório apresentado pela Comissão Independente sobre os abusos sexuais na Igreja Católica, na terça-feira, fala de 216 mil vítimas agredidas quando eram menores de idade por membros do clero, no período de 1950 a 2020.
A reportagem é de Cécile Chambraud, publicada por Le Monde e reproduzida por Fine Settimana, 05-10-2021. A tradução da versão italiana é de Luisa Rabolini.
Descreve um fenômeno "massivo" e "sistêmico".
Ainda mais do que o valor absoluto, trágico, mas provavelmente subestimado, é a comparação que é devastadora. O relatório da comissão independente sobre os abusos sexuais na Igreja Católica (Ciase), divulgado na terça-feira, 5 de outubro, estima o número de vítimas que durante a menoridade sofreram violências sexuais por parte de um padre, diácono ou religioso, violências declaradas por pessoas que hoje têm 18 ou mais de 18 anos.
A comissão presidida por Jean-Marc Sauvé, ex-vice-presidente do Conselho de Estado, procurou descobrir, nesta avaliação, onde a Igreja Católica se situava em comparação com outros ambientes de socialização. A sua resposta é clara: “A Igreja Católica é, fora dos círculos familiares e de amigos, o ambiente em que a prevalência de violências sexuais é mais elevada”. Se somarmos as agressões sexuais sofridas por pessoas ligadas à Igreja, mesmo que não padres e não religiosos (funcionários de escolas, catequistas, dirigentes de movimentos juvenis ...), chegamos a uma estimativa de 330.000 vítimas.
Fruto de dois anos e meio de trabalho, o relatório foi entregue terça-feira às entidades responsáveis por sua encomenda, ou seja, a Conferência Episcopal da França (CEF) e à Conferência das Religiosas e dos Religiosos da França (Corref). Sob a pressão dos coletivos das vítimas, os dois órgãos mandatários, representando um as dioceses, o outro as congregações, em novembro de 2018 decidiram criar um órgão independente para fazer um balanço do que tinha acontecido desde 1950, para estudar as reações da hierarquia eclesiástica, avaliar as providências tomadas nos últimos vinte anos para prevenir a repetição dos abusos. Há alguns dias, começaram a circular mensagens de determinados bispos para alertar os fiéis de que revelações particularmente chocantes eram esperadas.
Com o título "As violências sexuais na Igreja católica - França 1950.2020", a comissão, que pôde trabalhar sem obstáculos, faz um balanço "particularmente sombrio", sintetiza Jean-Marc Sauvé na introdução. Para os vinte e dois membros da CIASE, os números mais preocupantes chegaram na última fase de sua missão. No primeiro semestre deste ano, a investigação com a população em geral realizada com 30.000 pessoas permitiu calcular a prevalência das violências sexuais em diversos âmbitos de socialização.
De acordo com esse levantamento, realizado sob a orientação da socióloga Nathalie Bajos, diretora de pesquisa do Inserm e da École des hautes édues en sciences sociales (EHESS), as agressões sexuais a menores cometidas por clérigos e religiosos representaram um pouco menos de 4% de todos as agressões deste tipo cometidas, que envolveram um total de 5,5 milhões de pessoas que hoje têm 18 ou mais 18 anos (14,5% das mulheres, 6,4% dos homens). A proporção sobe para 6% se forem incluídas as agressões cometidas por leigos ligados à Igreja.
No conjunto da população hoje de maior idade, a maior parte das violências contra menores foi cometida no âmbito da família (3,7%), por um amigo da família (2%) ou por um amigo ou companheiro (1,8%). Mas, em comparação com outros âmbitos de socialização, é a Igreja católica que está na liderança, e amplamente, pela prevalência das agressões. A proporção de pessoas que a frequentaram e que foram agredidas enquanto eram menores é de 0,82% se forem contadas apenas as violências cometidas por padres ou religiosos, e de 1,16% se forem incluídos os demais agressores ligados à Igreja. Nas demais instituições de socialização, a taxa é de 0,36% para as colônias e campos de férias, 0,34% para a escola pública, 0,28% para os clubes esportivos e 0,17% para as atividades culturais e artísticas. No total, a taxa de prevalência das violências sexuais contra menores na Igreja católica é, portanto, duas vezes maior do que nos outros ambientes considerados, exceto a família.
O número de padres, diáconos e religiosos perpetradores de agressões sexuais contra menores não pode ser avaliado com os mesmos métodos. Em vez disso, a investigação a partir dos arquivos e dos testemunhos conduzidos pela equipe do sociólogo e historiador Philippe Portier, professor da École pratique des hautes études (EPHE), permite estabelecer um dado “base”. Desde 1950, entre 2.900 e 3.200 padres, diáconos e religiosos cujos nomes são conhecidos infligiram, de forma confirmada, violências sexuais a menores (principalmente) ou adultos vulneráveis (principalmente religiosas, mas também seminaristas).
Se esse número for comparado com o total de padres e religiosos que exerceram a profissão durante os setenta anos considerados, ou seja, cerca de 115.000, pode-se estabelecer uma percentagem de abusadores clericais que varia entre 2,5% e 2,8%.%. Pode refletir a realidade? A Comissão Sauvé permanece cautelosa a esse respeito. Ressalta que essa relação se situa "na extremidade inferior da faixa" estabelecida por comissões equivalentes que trabalharam por vinte anos em outros países ocidentais - que está entre 4,4% e 7,5% - mas que é superior àquela obtida pela comissão holandesa.
Além disso, a comissão constata que, quando comparada com os dados da pesquisa sobre a população em geral, essa relação suporia um número muito elevado de vítimas (entre 64 e 67) por agressor. Assim estabeleceu outras hipóteses "correspondentes a taxas entre 5% e 7%", para chegar a uma estimativa de que "uma taxa de cerca de 3% de clérigos e religiosos autores de agressões sexuais constitui uma estimativa mínima e uma base de comparação pertinente com os outros países".
No total, tendo em conta os dados resultantes das várias investigações em ciências sociais realizadas, a comissão considera que o fenômeno das violências sexuais na Igreja católica pode ser definido como "massivo" e que apresenta "um carácter sistêmico".
Diante dessas violências, como se comportou a instituição? Sua atitude teve uma evolução ao longo das décadas, conforme mostrado em detalhes pelo estudo de arquivos de Philippe Portier. Durante as décadas de 50 e 60 do século passado, aquelas em que ocorreram mais da metade (56%) dos fatos (na época representavam 8% do total das violências sexuais contra menores), a hierarquia eclesiástica busca em primeiro lugar “proteger-se do escândalo”, realizando um tratamento dos padres agressores em estruturas ad hoc, enquanto as vítimas são “convidadas a ficar em silêncio” e a sua sorte é “ocultada”. Nas duas décadas seguintes (22% dos abusos), a preocupação da Igreja com os abusos parece diminuir e depois, nos anos 1990, começa a "levar em consideração a existência das vítimas", até chegar, na segunda década de 2000, a começar a "reconhecê-las".
O juízo geral expresso pela Ciase é severo. Resume-o com estas palavras: “ocultação”, “relativização, senão negação, com um reconhecimento apenas muito recente, realmente visível apenas a partir de 2015, mas desigual segundo as dioceses e as congregações”. Em última análise, “impõe-se a noção de fenômeno sistêmico”, na medida em que “a instituição eclesial claramente não foi capaz de prevenir aquelas violências, nem simplesmente vê-las, e muito menos tratá-las com a determinação e a precisão necessárias”.
A Ciase analisou diversos fatores que parecem explicar a extensão do fenômeno, como o mau tratamento que aplicou. Coloca em discussão o direito canônico, ou seja, o direito interno da Igreja, que considera "bastante inadequado", pois não prevê nenhum espaço para a vítima e nunca faz menção às violências sexuais. Em suma, não responde “aos padrões do processo justo e aos direitos da pessoa humana na matéria tão delicada das agressões sexuais contra menores”.
A comissão questionou também o papel de certos elementos da doutrina católica, cujos "desvios" e "distorções" teriam facilitado os abusos. Cita “a sacralização excessiva da pessoa do padre”, “a valorização excessiva do celibato”, “o desvio da obediência quando beira o cancelamento da consciência”, “a visão excessivamente tabu da sexualidade”. No entanto, a síntese do relatório não se aventura na questão central do celibato dos padres ou na ordenação reservada aos homens.
A comissão era também convidada a avaliar as medidas tomadas pelas autoridades eclesiásticas nos últimos vinte anos, depois que casos de agressões sexuais tinham regularmente chegado ao conhecimento da opinião pública. Aqui também, apesar das decisões definidas “importantes” para preveni-las ou tratá-las, a Ciase expressa um juízo severo. Aquelas medidas foram muitas vezes “tardias”, decididas “como reação aos ‘acontecimentos’ e, além disso, ‘aplicadas de maneira desigual’”. Em suma: “Globalmente insuficientes”.
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Abusos sexuais na Igreja católica: o balanço avassalador da comissão Sauvé - Instituto Humanitas Unisinos - IHU