08 Setembro 2022
Há mais de quarenta anos, para quem quiser entender como está mudando o mundo católico e quais são as correntes que o atravessam, Danièle Hervieu-Léger é o ponto de referência obrigatório. Socióloga, ex-presidente da École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em Paris, traduziu os resultados de suas análises aprofundadas em imagens de grande eficácia (o peregrino e o convertido, religião em migalhas, fé à la carte...). Como também faz no último livro chamado Vers l’implosion? Entretiens sur le présent et avenir du catholicisme (Rumo à implosão? Conversas sobre o presente e o futuro do catolicismo, em tradução livre, Seuil, 2022), no qual aborda, em diálogo com Jean-Louis Schlegel, a crise e as emoções da novidade do catolicismo francês abalado pelos escândalos.
Capa do livro Rumo à implosão? Conversas sobre o presente e o futuro do catolicismo (Foto: Divulgação)
A entrevista é de Piero Pisarra, publicada por revista Jesus, edição setembro de 2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O relatório da Comissão Sauvé (Ciase) sobre os abusos sexuais teve o efeito de um terremoto para a Igreja na França. E parece ter acelerado a implosão do catolicismo, já em curso há várias décadas. Quais são os principais motivos da crise?
O relatório da Ciase mostrou claramente o fracasso da instituição diante dos abusos sexuais e dos crimes cometidos por padres. Sua publicação, por si só explosiva, ocorre em um momento crucial da história da Igreja na França: a Igreja deve, de fato, tomar ciência de seu status agora minoritário em uma sociedade plural do ponto de vista religioso, onde o número de pessoas que se declaram "sem religião" supera aquele dos crentes.
Para uma instituição que por séculos ocupou uma posição hegemônica no cenário religioso, social e cultural, mesmo após sua expulsão do cenário político, trata-se de um trauma notável, que acentua dramaticamente as divisões entre os próprios católicos:
- entre aqueles que pedem uma nova atitude da Igreja em relação ao mundo e aqueles que defendem o papel da Igreja como "contracultura" diante das evoluções da sociedade;
- entre aqueles que não conseguem imaginar um futuro para a Igreja senão através do fortalecimento do sistema de poder vertical, clerical e patriarcal que constitui sua espinha dorsal, e
- aqueles que pedem uma Igreja "horizontal", inclusiva e comunitária, que dê amplo espaço à iniciativa autônoma dos leigos...
Essa divergência é mais complexa do que a clássica oposição política entre "progressistas" e "conservadores": o que se opõem são visões do cristianismo que já não se comunicam mais entre si. De fato, a Igreja da França está aos pedaços.
Você refuta a tese do historiador Guillaume Cuchet, que em um livro recente (Le catholicisme a-t-il encore de l’avenir en France?, Seuil, 2021) atribui a culpa pelo colapso ao Concílio Vaticano II: uma tese que, no entanto, encontra amplo eco não só nos círculos tradicionalistas, mas também nas chamadas franjas "moderadas". Por que essa leitura lhe parece enganosa?
Parece-me principalmente incompleta. O livro de Guillaume Cuchet destaca um fato estabelecido, ou seja, o colapso da prática religiosa e o colapso da autoridade social e moral da Igreja na virada dos anos 1960 e 1970, no imediato período pós-conciliar. Não tenho nada a contestar. Mas ao focar no Concílio como gatilho, Cuchet subestima, na minha opinião, dois aspectos.
O primeiro é o declínio da prática no longo prazo: uma tendência que já podia ser observada no final da Segunda Guerra Mundial (e antes mesmo). O mesmo vale para a demografia clerical: na França, desde 1959, menos padres vêm sendo ordenados do que aqueles que morrem! O encolhimento do clero não está ligado ao próprio Concílio, embora muitos padres tenham questionado seu sacerdócio após o Vaticano II.
A segunda dimensão que falta no livro de Cuchet é o contexto cultural específico dos anos 1960 e 1970: aquele de uma revolução do indivíduo que afirma sua própria autonomia pessoal, uma revolução que diz respeito à transmissão do depósito de cultura e de experiências em todas as instituições (não só na Igreja) e que coloca a instituição católica num contraste cultural estridente com o ambiente ao seu redor. As reformas conciliares puderam acelerar o processo, em particular tornando os fiéis mais cientes, graças ao uso das línguas nacionais na liturgia, da incongruência de uma linguagem religiosa antiquada em relação à cultura contemporânea. Mas essas reformas – aguardadas por muitos, é preciso lembrar – não causaram em si a hemorragia dos fiéis.
Em um livro de 2003 (Catholicisme, la fin d'un monde, Bayard) você cunhou e contribuiu para a difusão do neologismo "exculturação", o oposto, pode-se dizer, de "inculturação". Quase vinte anos depois, em que ponto estamos?
Com esse neologismo quis indicar o processo de deslocamento da matriz católica da cultura francesa, que por muito tempo permitiu que a Igreja se dirigisse a todos, para além da secularização das instituições e das mentalidades. Desde a década de 1970, a Igreja perdeu o apoio daquele tecido cultural comum que lhe permitia manter uma posição dominante no cenário religioso e social, apesar da diminuição do número de fiéis.
Cinquenta anos depois, essa "exculturação" é completa e definitiva. A Igreja só pode falar aos seus próprios fiéis, e nem sequer é certo que estes a escutem, especialmente sobre as questões de moral sexual, que consideram pertencer apenas à esfera da consciência pessoal.
Neste contexto, quais são as condições para uma verdadeira reforma da Igreja universal? Quais são as armadilhas a evitar de forma prioritária?
Como socióloga, evito traçar uma perspectiva para a Igreja do futuro! Mas minha hipótese é que a doença do catolicismo é a do sistema romano, estruturado entre o Concílio de Trento e o século XIX para enfrentar a investida da Reforma e depois da modernidade política. Qualquer reforma hoje exige a "desconstrução" desse sistema, que se baseia inteiramente na autoridade sagrada do sacerdote.
Resta saber até que ponto tal "desconstrução" possa ser realizada sem comprometer a estabilidade de todo o edifício.
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A Igreja rumo à implosão. Entrevista com Danièle Hervieu-Léger - Instituto Humanitas Unisinos - IHU