22 Junho 2023
O objetivo desta minha reflexão é delinear alguns tópicos que estão presentes no recente livro de Clodovis Boff: A crise da Igreja católica e a teologia da libertação [1]. O livro recolhe dois textos anteriores de Clodovis Boff, publicados na Revista Eclesiástica Brasileira (REB) nos anos de 2007 e 2008. O primeiro texto foi publicado depois da Conferência de Aparecida (2007), com grande repercussão na ocasião, com reações publicadas também na REB, com artigos de teólogos como Leonardo Boff, Luis Carlos Susin, Francisco de Aquino Junior, José Comblín e João Batista Libânio [2]. A controvérsia já tinha de certa forma se iniciado por ocasião de uma conferência de Clodovis no encontro da SOTER, no ano 2000, onde abordou o tema: “Retorno à arché da teologia”. O texto veio publicado no livro organizado por Luiz Carlos Susin, A sarça ardente [3]. Além dos dois textos citados, o livro vem acrescido de um artigo inédito de Clodovis Boff e duas entrevistas concedidas por ele na Folha de São Paulo e na Adital [4]. A apresentação do livro foi feita por Leonardo Razera, também organizador da obra.
O incentivo à minha reação ocorreu também em razão de uma live com participação de Clodovis Boff, onde ele pôde apresentar o conteúdo essencial de seu novo livro. Isso ocorreu no dia 14 de junho de 2023, promovido pela diocese de Barra do Piraí e Volta Redonda, com o título: Diálogos fraternos sobre a unidade cristã. Educação e a Casa Comum [5].
Eu tive o privilégio de ter sido aluno de Clodovis Boff durante o meu mestrado no Rio de Janeiro, entre 1978 e 1982. Pude acompanhar várias disciplinas ministradas por Clodovis, entre elas uma que abordou o tema de sua tese doutoral, recém defendida na Universidade de Lovaina na Bélgica. A tese veio publicada em livro no ano de 1978 [6]. Na ocasião, pudemos trabalhar cuidadosamente com ele todas as argumentações a respeito do método da Teologia da Libertação (TdL). Além das aulas, lembro-me que fizemos também um grupo de estudos sobre o livro, com participação de Inácio Neutzling, que era igualmente aluno do mestrado em teologia.
Capa Divulgação: A crise da Igreja Católica e a Teologia da Libertação
O meu conhecimento de Clodovis veio aprofundado em outros momentos preciosos de encontros, como em congressos, reuniões e nos intereclesiais de CEBs. Além disso, pude trabalhar com ele por anos no ISER-Assessoria, no Rio de Janeiro, antes de sua transferência para Curitiba, quando então perdi seu contato. Digo isso para esclarecer aos leitores que tenho uma visão bem clara do que foi o pensamento de Clodovis Boff antes de sua virada eclesiológica, que é relativamente recente.
Na sequência do clássico encontro da SOTER, não participei do debate, por decisão pessoal, mas agora, depois do livro e da live, dada a minha perplexidade, decidi partilhar minhas reflexões pessoais, que estão abertas ao diálogo promissor.
O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Uma pergunta que permanece viva na minha consciência relaciona-se às razões que motivaram Clodovis a retomar agora, em outro contexto, um debate que aconteceu em 2007 e 2008. Os tempos eram outros, e bem bicudos no campo da conjuntura eclesiástica. Hoje estamos em tempos do pontificado de Francisco, marcado por perspectiva de um novo olhar face aos desafios que se colocam para a igreja católica.
Em minha opinião, entendo que a publicação do livro no atual contexto vem corroborar uma atmosfera eclesial adversa que não é só brasileira, e que envolve um questionamento da pastoral de Francisco e dos rumos que ele busca imprimir na caminhada da igreja. Vemos crescer por toda parte resistências diversificadas com respeito ao caminho seguido por Francisco. As críticas nem sempre são explícitas, mas vêm envolvidas por enigmas e névoas, marcando uma posição de controvérsia bem clara.
Com respeito às minhas questões, começo com uma indagação que ele lançou na live reagindo ao livro da socióloga francesa, Danièle Hervieu-Léger em diálogo com Jean-Louis Schlegel: Vers l´implosion?, onde ela aborda justamente o tema da atual crise na igreja católica e seu futuro possível [7].
Clodovis reagiu criticamente aos questionamentos levantados pela socióloga francesa, sobretudo às soluções que ela apresenta para o futuro da igreja. Para Herviéu-Léger, o caminho que se abre para igreja católica nesse momento de crise, que é mais viva na Europa, é o de ser uma comunidade diaspórica, aberta às provocações que advém do tempo presente.
A autora fala na necessidade de uma nova identidade eclesial, igualmente crítica diante dos desvios que marcam a sua inserção atual no tempo, sobretudo o clericalismo e os abusos no âmbito da sexualidade, que vem sendo objeto de denúncia pelo mundo afora [8]. Ela trata ainda do desafio que se coloca também para a igreja de se entender como minoria numa sociedade pautada pela diversificação e pluralismo.
Clodovis rejeita a perspectiva apontada pela socióloga francesa e insiste na esperança de uma igreja radiante, massiva e evangelizadora, desde que busque ardentemente superar limitações que ele percebe como graves e severas no tempo atual, sobretudo ligadas ao esvaziamento do ardor missionário eclesial.
O teólogo reconhece que ele mesmo, em certa fase da vida, foi contagiado por “ramos daninhos” em sua visão teológico-pastoral, sendo levado por uma onda de abertura ingênua ao mundo. Ele sinaliza que em certo momento sua fé mostrou-se fragilizada por influxos imprecisos, como os da teologia de Karl Rahner [9] e outros, que hoje ele reconhece como problemáticos e que acabaram, a seu ver, contribuindo para a mundanização da igreja e pela naturalização do sobrenatural (CIC, 13).
Numa das entrevistas Clodovis chega a dizer que a lógica rahneriana do “cristianismo anônimo” – que ele aderiu em certo momento – “constituía uma ótima desculpa para, deixando de lado Cristo, a oração, os sacramentos e a missão – se dedicar à transformação das estruturas sociais” (CIC, 165). Sublinha que aos poucos foi se dando conta da insustentabilidade de tal tese, que a seu ver carece de suficientes bases no Evangelho.
Lembro-me bem que numa das reuniões do ISER-Assessoria, Clodovis chegou a partilhar com a equipe de trabalho, que se fosse refazer sua tese doutoral, ele retiraria o capítulo II da segunda seção de sua tese, onde trata positivamente da tese rahneriana. No mencionado capítulo, Clodovis defende a tese do “existencial sobrenatural” de Karl Rahner e reitera a visão de que a salvação pode de fato acontecer “fora e independentemente de sua consciência”.
Reconhecia na ocasião sua “dívida” com Karl Rahner, mantendo então uma crítica à visão dualista cristã que opõe natural e sobrenatural [10]. Dizia ainda, com respeito à função da Economia da Salvação, que “a Escritura e os acontecimentos por ela reportados, bem como toda a ordem sacramental da Igreja, são, com relação à Salvação, não da ordem de sua constituição, mas da ordem de sua manifestação” [11]. Nessa linha de reflexão, vinha a necessária conclusão de que a fé explícita é “disjuntiva da Salvação com respeito à Revelação”, indicando ser plausível aceitar que a Salvação também possa ocorrer “antes e fora da Revelação” [12].
Foi essa a teologia de Clodovis que eu aprendi, que apreciei e continuo a defender de forma tranquila e viva. E é ela que quero deixar arquivada em meu coração. Foi esse o Clodovis que eu conheci e que me fez avançar na reflexão teológica para além dos padrões tradicionais.
Em seu pensamento atual, Clodovis nos adverte que já naquele tempo tinha dificuldades com a questão metodológica na TdL, e também “reservas em relação à Teologia da Libertação” como um todo. Argumenta que desde aquela época defendia o “primado da fé sobre a política”, e com o passar do tempo foi se dando conta, “desgraçadamente”, que a prioridade dada ao político em vez de refluir, foi ganhando uma dimensão cada vez mais decisiva na TdL, provocando um “dano para a identidade da fé” (CIC, 171). Por consequência, resolveu então “explicitar, sem rebuços”, sua posição crítica, que é a atual.
Há uma precisa motivação na atual visão crítica de Clodovis Boff à TdL. Não é de agora que ele vem se preocupando com o esvaziamento da igreja católica, que a cada Censo Demográfico revela uma diminuição de pertença [13]. Para Clodovis, o declínio eclesial em curso não é só quantitativo mas também qualitativo, expressando uma tremenda carência de vitalidade eclesial e missionária. Adverte que esse momento de desequilíbrio pode levar a uma “crise terminal” (CIC, 46).
Quando o autor fala em crise qualitativa, está também querendo dizer que a igreja vive um esvaziamento espiritual: “A Igreja declina porque a fé declina” (CIC, 21). É esse “déficit de espiritualidade” que está na base da crise. Aponta também um outro grave desvio que é, a seu ver, o deslocamento do lugar de Cristo vivo como salvador. Argumenta que não há possibilidade de vida para a igreja sem a centralidade crística (CIC, 21).
Lança então sua verve crítica contra exegetas e teólogos dogmáticos contemporâneos que contribuíram com sua pesquisa para o deslocamento da centralidade crística para um Jesus humano, que é aquele que vem narrado pelos evangelhos. Trata-se, a seu ver, de um Jesus “demasiado humano”; um Jesus que pode até ser “atraente”, mas que não é em verdade o Cristo objeto da fé, defendido pelos concílios cristológicos.
Vemos aqui, mesmo que de forma velada, uma crítica a livros como o de José Antonio Pagola, que enfatizam esse lado humano de Jesus [14]. É interessante constatar no livro de Clodovis que ele praticamente não fala em Jesus, mas só em Cristo, bem como esquiva-se de tratar o tema da convocação do Reino de Deus e do projeto de Jesus. Tudo fica em brancas nuvens. Não era mesmo o seu objetivo destacar isso.
Em polêmica com seu irmão, Leonardo Boff, em torno ao tema do fundamento da teologia, agora focando no dogma de Calcedônia, Clodovis destacou o traço “inconfuso” presente no “Cristo Senhor unigênito”, “perfeito da sua divindade e perfeito na sua humanidade” (DzH, 302). Isso para confrontar seu irmão que defendia a centralidade da dinâmica da encarnação (CIC, 134).
A título de esclarecimento, é bom que saibamos que Calcedônia não constitui um “ponto absoluto de referência”, como indicou Jacques Dupuis com acerto, em sua obra de cristologia. O traço relacional não pode jamais ser omitido na reflexão cristológica, que deve privilegiar sobretudo o “evento Cristo”, que jamais prescinde do Jesus histórico [15]. O maior risco permanece sendo o cristomonismo.
Em sua grandiosa obra sobre a teologia cristã do pluralismo religioso, Jacques Dupuis foi bem claro ao sublinhar a impossibilidade de aplicar a Jesus Cristo o qualificativo de absoluto, só possível a Deus. Ele admite ser um equívoco conferir a Jesus Cristo o traço de “Salvador absoluto”, que é também privativo do Mistério Maior, sem nome [16].
De acordo com Jacques Dupuis, a cristologia resguarda a face humana de Deus, numa narrativa que garante tanto a continuidade como a descontinuidade entre Jesus e o Cristo. Dupuis é bem claro quando sinaliza que “a particularidade de Jesus confere limitações inevitáveis ao evento-Cristo”. Acrescenta que tendo em vista a verdade da consciência humana de Jesus, não é possível garantir que sua presença na história esgote a revelação de Deus, e que, portanto, o poder salvífico de Deus revela-se “além do homem Jesus” [17], podendo inclusive acontecer através de outros meios. É o que diz igualmente Schillebeeckx, reconhecendo que Deus nunca absolutiza uma particularidade histórica, mesmo sendo a do seu filho, e que o ser humano pode, sim, encontrar a Deus também fora de Jesus, quer seja na história ou em outra tradição religiosa: “A manifestação de Deus em Jesus não põe termo à história da religião” [18].
Algo semelhante diz o teólogo Jesuíta Roger Haight, para quem “a mediação fundamental da presença salvífica de Deus nas outras religiões não precisa ser uma pessoa: pode ser um evento, um livro, um ensinamento, uma práxis” [19]. Daí ser complicado afirmar sem mais que Jesus Cristo é “constitutivo” da salvação [20]. Ele o é para os cristãos, mas não pode ser ampliado como dado universal para todos.
Com respeito à visão eclesiológica, Clodovis também é bem claro ao defender uma igreja espiritualizada. A seu ver, o modo de compreensão da TdL e outras teologias modernas, acaba firmando uma visão excêntrica da igreja, ou seja de uma igreja que se define por seu aggiornamento no mundo, uma igreja, que segundo ele “sacrifica o céu pela terra” (CIC, 33).
Sua crítica não se reduz aqui à TdL, mas ao campo geral da pastoral. Na contramão dessa perspectiva, Clodovis vai enfatizar um concepção eclesiológica que se mantém fiel à centralidade do Cristo e sua visão prioritariamente evangélica. O autor é bem claro ao afirmar que “a finalidade específica da Igreja não é a libertação social, mas a salvação espiritual e eterna de cada pessoa” (CIC, 52). Reafirma com ênfase que a igreja existe “in primis para a evangelização, não para a promoção humana” (CIC, 52).
Clodovis coloca-se aqui na contramão de uma série de teólogos atuais que defendem a radical presença da igreja no mundo, de seu aprendizado com o mundo (GS 44), e sobretudo a afirmação de que não pode haver salvação fora do mundo, como bem sinaliza o teólogo belga Edward Schillebeeckx, num dos volumes de sua trilogia cristológica: História humana, revelação de Deus [21].
A posição de Clodovis tenciona igualmente com a visão do papa Francisco, que eleva o agape à condição de princípio fundamental para a dinâmica da salvação, com base na narrativa evangélica. Como sinaliza Francisco, em entrevista concedida a Eugenio Scalfari, o agape é “o único modo que Jesus indicou para encontrar o caminho de salvação e das Bem Aventuranças” [22].
Como não há na reflexão de Clodovis uma atenção ao diálogo inter-religioso ou ao pluralismo religioso, sua perspectiva eclesiológica mantém uma centralidade que preocupa aqueles que buscam caminhos de abertura. Retomo aqui a visão mais arejada de Jacques Dupuis a respeito. Em sua perspectiva, é correto dizer que a igreja é sacramento do Reino de Deus na história, o que não significa que seja um sacramento universal de salvação.
Seria exagerado entender que ela “exerça uma atividade de mediação universal da graça em favor dos membros das outras tradições religiosas que entraram no Reino de Deus respondendo ao convite de Deus pela fé e pelo amor”. É uma posição que se sintoniza com a do documento pontifício Diálogo e Anúncio, para o qual o mistério da salvação é operante nos outros, de crenças diversas, “por caminhos por Deus conhecidos, graças à ação invisível do Espírito”, e isso mediante a “prática daquilo que é bom nas suas próprias tradições religiosas, e seguindo os ditames da sua consciência” (DA 29). Uma tal perspectiva não entra no horizonte da atual reflexão de Clodovis.
O grande místico Teilhard de Chardin, que tanta repressão sofreu do próprio mundo eclesiástico, sempre foi sensível a uma igreja em comunhão com o mundo, aberta aos sinais do espírito. Para ele, o mundo inteiro estava sob a égide do Espírito, tocado por suas malhas, inspirações e rumos. Via com grande clareza a presença de uma “energia espiritual” que cobria o mundo inteiro, e que a igreja vinha convocada a captar essa presença e aprender com ela. Diz em carta para Léontine Zanta, em outubro de 1926, que “a Humanidade não voltará a apaixonar-se por Deus antes que Este lhe seja mostrado no termo de um movimento que prolongue o nosso culto pelo Real concreto, em vez de a ele nos arrancar” [23]. Em outra carta, de maio de 1927, lamenta-se das “igrejinhas” que acabam por esconder a Terra [24], em vez de beber de seu húmus.
Retomando a reflexão de Clodovis Boff, podemos também acentuar a grande ênfase que ele concede ao trabalho da evangelização explícita, e seu mestre guia nesse trabalho é o papa João Paulo II, na sua carta encíclica Redemptoris Missio, sobre a validade permanente do mandato missionário, de dezembro de 1990 [25]. Há uma sintonia fina entre os dois, assim como com o papa Paulo VI na exortação apostólica Evangelii nuntiandi, sobre a evangelização no mundo contemporâneo, de 1975 [26].
Clodovis vincula-se à perspectiva de Paulo VI na Evangelii nuntiandi (EN), ao sublinhar com ênfase a “finalidade especificamente religiosa da evangelização” (EN 32). E igualmente no número 53, onde Paulo VI trata das religiões não-cristãs, quando insiste no primado do anúncio de Jesus Cristo, como faz também João Paulo II na Redemptoris Missio 44. Essa é a linha mestra seguida por Clodovis Boff. Em sua visão, o esquecimento dessa missão explícita vem sendo responsável por “consequências danosas” para a igreja. É o que ele nomeia como o “apagar-se” do “Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15).
É em razão desse primado da evangelização viva e explícita que se dá o questionamento de Clodovis a Karl Rahner, em várias partes do livro. Ele praticamente confirma a crítica feita por Ratzinger a Rahner, ao sublinhar que a tese do “cristianismo anônimo” acabou por diminuir a “essencialidade do batismo” e o esvaziamento da “tensão missionária” [27].
Clodovis não cansa de repetir ao longo do livro, insistentemente, que a igreja católica perdeu sua dinâmica evangelizadora, concentrando-se numa missão exclusivamente temporal (CIC, 20, 22, 34, 165). A palavra chave de Clodovis, tomada de João Paulo II, é “Nova evangelização” (CIC, 27). Sublinha que felizmente, essa perspectiva ainda encontra aconchego na Renovação Carismática Católica, pela qual manifesta uma grande alegria (CIC, 50). Acredita que o que mantém aceso o catolicismo no Brasil é a Renovação Carismática e o Catolicismo Popular.
A crítica tecida por Clodovis à dinâmica evangelizadora no Brasil está ligada ao que ele denomina de processo de antropologização da teologia e da pastoral. A seu ver, a igreja rendeu-se à virada antropocêntrica e dela se fez escrava. O objetivo agora, no que se vê em curso, é um perda da convocação à salvação, entendida como adesão à palavra evangelizadora. O trabalho observado não é mais, segundo ele, de “salvar as almas, mas salvaguardar os direitos humanos de todos” (CIC, 11). O que prevalece é essa “deriva social ou antropocêntrica”, que envolve agora também a temática ecológica (CIC, 45).
Sua crítica refere-se igualmente à proposta de Francisco de uma igreja em saída (CIC, 39). Para Clodovis, essa é uma perspectiva equivocada, pois o essencial é concentrar-se no que para ele é nevrálgico: o domínio da evangelização explícita e irradiadora. Critica ainda a “conformidade” de Francisco a uma igreja de minorias (CIC, 44). Como assinala, o que Cristo quis foi uma igreja universal. O tom proselitista de Clodovis esbarra radicalmente na visão crítica de Francisco a esse respeito [28]. Para o autor, a chamada “deriva antropocêntrica” ou social e o ardor imanentista contagiam todas as práticas eclesiais e pastorais em curso, como a Campanha da Fraternidade e o Sínodo da Amazônia (CIC, 29, 30, 67).
Diferentemente de Francisco, podemos perceber no texto de Clodovis Boff a carência de uma crítica ao clericalismo da igreja e aos problemas internos que a sufocam, como os abusos sexuais em curso. Tudo isso vem esquecido em seu discurso. Quando fala em reforma na igreja, logo desvia o olhar, pois para ele esse é um tema que não está implicado na crise atual da igreja. Trata-se, a seu ver, de um “atalho falso” para acionar o diagnóstico da crise, que entende como exclusivamente espiritual, demandando, sim, o caminho da espiritualização e oração, bem como do avivamento espiritual (CIC, 47).
O que vemos na visão de Clodovis Boff é um cristocentrismo eclesiocentrado, profundamente avesso a qualquer perspectiva dialogal. Tem sempre uma palavra para indicar a superioridade do cristianismo sobre as outras religiões, com uma firme adesão à “teologia do acabamento” de um Henri de Lubac ou Urs Von Balthasar. De Lubac vem citado diversas vezes em seu texto, como o grande lume teológico (CIC, 34, 42, 43 etc.).
Documentos fundamentais do magistério da igreja, como Dialogo e Anúncio [29], do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso, de 1991, desaparecem de sua ótica, em razão do predomínio da perspectiva dominante, que é a defendida pela encíclica Redemptoris Missio, agora ressuscitada com grande ênfase. Não há praticamente menção ao diálogo inter-religioso no texto de Clodovis, e quando isto aparece, ele até reconhece que o tema é necessário, mas logo adverte que mais necessário ainda é o “anúncio da Palavra” (CIC, 55).
Na parte em que aborda a Teologia da Libertação, insiste na tecla que vem defendendo desde meados de 2007, e que envolve uma crítica contundente à reflexão de Jon Sobrino, que segundo Clodovis, foi o responsável por colocar o pobre como ponto de partida da Teologia, e com isso provocar uma inversão do primado teológico fundamental que, segundo ele, deve ser sempre Deus e não o pobre (CIC, 63, 85, 164). Para Clodovis Boff, em razão dessa ênfase e outras questões ligadas à fixação na prática da libertação social, a TdL ficou refém de uma “autoconsciência epistemológica confusa e mesmo equivocada” (65). Aquilo que deveria ser a fundamental pertinência teológica, que é o auditus fidei, ficou num segundo plano, em razão do predomínio das mediações sócio-analíticas, em particular da análise marxista (CIC, 75).
Na visão de Clodovis, Deus sai de cena, como “princípio primeiro e operativo” e os pobres passam a ser “entronizados” como o núcleo fundante da teologia. É revoltante constatar em certa parte do livro, a indiferença de Clodovis quanto às perseguições sofridas pelos teólogos católicos ao longo do pontificado de João Paulo II. Para ele, o que ocorreu foi legítimo, na medida em que os teólogos avançaram ousadamente para além dos limites que tocam o “núcleo da fé” (164). Mesmo face à sua punição, quando foi expulso da PUC-RJ, acaba dando razão à admoestação feita a ele por dom Romer, então bispo auxiliar do Rio de Janeiro, quando mencionou que ele tinha desconsiderado o essencial da confissão da fé, privilegiando uma visão teológica que entendia como legítima a prática evangelizadora que priorizava o exercício do bem (CIC, 166).
Por fim, um último aspecto da visão crítica de Clodovis Boff, que diz respeito à desatenção da teologia e pastoral ao que considera a verdadeira espiritualidade. Para ele, o que está em curso é uma “tagarelice mística” ou uma espiritualidade que perde seu traço essencial, dissolvendo-se na prática social e libertadora (CIC, 23, 26). No seu olhar, o que ocorre é um esvaziamento da prática espiritual e da atenção teoversa.
Com base em Paulo VI, Clodovis vai insistir na ideia de que a verdadeira luta libertadora deve estar inserida “no desígnio global da salvação” (CIC, 68). Para ele, a igreja deve estar sempre no centro, como mestra da verdade, pois só ela “pode fornecer uma resposta plena à questão do sentido” (CIC, 57, 174). Aliás, a questão da busca de sentido, é o tema essencial da recente trilogia publicada por Clodovis Boff.
Sublinha que só a partir de um enraizamento espiritual é possível uma ação social autenticamente libertadora. Há algo de verdade no que diz Clodovis, e que concordo. Também Teresa de Ávila chamou a atenção para esse dado em seu livro Moradas. Ela dizia com razão que “o amor ao próximo nunca desabrochará perfeitamente em nós se não brotar da raiz do amor de Deus” [30]. Trata-se de uma observação preciosa.
Mas há que acentuar, entretanto, que Teresa insiste com as irmãs carmelitas que o essencial na evangelização é o obrar. Sublinha que elas só podem entender de fato o passo essencial do caminho espiritual se estiverem comprometidas com as obras, que tem um peso bem maior do que certos apetrechos espirituais, sempre secundários com respeito ao amor. Ela diz para as irmãs: “Não, irmãs, não é assim! O Senhor quer obras. Se vês uma enferma a quem podes dar algum alívio, não tenhas receio de perder a tua devoção e compadece-te dela” (VM III, 11). Diz ainda Tereza que havendo caridade, o caminho para Sua Majestade está aberto (VM III, 12). No Livro das Fundações, no capítulo V, Teresa vai mostrar às irmãs que a verdadeira espiritualidade está “entre as panelas”.
Concluo assim, minha primeira reação ao livro de Clodovis Boff, exercendo uma tarefa de consciência, sem deixar, em nenhum momento, de respeitar o direito de Clodovis Boff assumir e defender a sua posição. Trata-se de um amigo e mestre a quem devo uma profunda admiração. Aprendi algo de fundamental com o meu supervisor de pós-doutorado na Gregoriana, o jesuíta Jacques Dupuis, que sofreu como poucos nas mãos do antigo Santo Ofício. Alguém que não foi reconhecido enquanto vivo, e mesmo depois de morto ainda é objeto de querelas e oposições.
Ao final de um de seus clássicos livros, onde aborda o tema do cristianismo e as religiões [31], ele faz uma corajosa defesa do direito do teólogo em enunciar a mesma fé de modo distinto, sem que isso signifique uma ruptura com a tradição maior. Sublinha que mesmo sendo una, a fé possibilita legitimamente “diferentes percepções”, em razão de perspectivas que são também fruto da dignidade e da honradez.
É assim que respeito as diversas posições e defendo o direito de minha consciência pessoal. Como diz com acerto um dos mais ricos documentos do Vaticano II: “Cada qual tem o dever e por conseguinte o direito de procurar a verdade em matéria religiosa, a fim de chegar por meios adequados a formar prudentemente juízos retos e verdadeiros de consciência” (DH 3).
[1] Clodovis Boff. A crise da Igreja católica e a teologia da libertação. Campinas: Cedet, 2023 (organizado por Leandro Rasera Adorno). O livro será sempre citado no texto com a sigla: CIC.
[2] Ibidem, p. 79-80.
[3] Luiz Carlos Susin. A sarça ardente. São Paulo: Paulinas, 2000.
[4] Clodovis Boff. A crise da Igreja católica e a teologia da libertação, p. 163-174.
[5] Diálogos Fraternos Sobre a Unidade Cristã, Educação e a Casa Comum - Assista aqui (acesso em 16/06(2023).
[6] Clodovis Boff. Teologia do político e suas mediações. Petrópolis: Vozes, 1978.
[7] Danièle Hervieu-Léger; Jean-Louis Schlegel. Vers l´implosion? Entretiens sur le présent el l´avenir du catholicisme. Paris: Seuil, 2022.
[8] Ibidem, p. 360, 362-363, 379, 383, 387.
[9] Há uma sintonia fina entre Clodovis Boff e Joseph Ratzinger a respeito da crítica à tese dos cristãos anônimos: cf. Rapporto sulla fede. Cinisello Balsamo: Paoline, 1985, p. 211-212 (Vittorio Messori a colloquio con Joseph Ratzinger).
[10] Clodovis Boff. Teologia e prática. Teologia do político e suas mediações. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 178-179, 182.
[11] Ibidem, p. 185.
[12] Ibidem, p. 186.
[13] Para o tema cf. Faustino Teixeira e Renata Menezes. Religiões em Movimento. O Censo de 2010. Petrópolis: Vozes, 2013.
[14] José Antonio Pagola. Jesus, aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2007.
[15] Jacques Dupuis. Introduzione alla cristologia. 3 ed. Casale Monferrato, 1996, p. 157.
[16] Jacques Dupuis. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 390.
[17] Ibidem, p. 412.
[18] Edward Schillebeeckx. História humana, revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994, p. 214-215.
[19] Roger Haight. Jesus símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 477.
[20] Ibidem, p. 464 e 466.
[21] Edward Schillebeeckx. História humana, revelação de Deus, p. 21.
[22] Papa Francesco & Eugenio Scalfari. Dialogo tra credenti e non credenti. Milano: Einaudi /Repubblica, 2013, p. 56.
[23] Teilhard de Chardin. Cartas a Léontine Zanta. São Paulo: Herder, 1967, p. 91.
[24] Ibidem, p. 99.
[25] João Paulo II. Sobre a validade permanente do mandato missionário. Carta encíclica Redemptoris missio. Petrópolis: Vozes, 1991.
[26] Paulo VI. A evangelização no mundo contemporâneo. Exortação apostólica Evangelii nuntiandi. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 1979.
[27] Joseph Ratzinger. Rapporto sulla fede, p. 211-212.
[28] Papa Francesco & Eugenio Scalfari. Dialogo tra credenti e non credenti, p. 65;
[29] Pontifício Conselho para o Dialogo Inter-religioso. Diálogo e Anúncio. Petrópolis: Vozes, 1991. Veja em particular o número 29 e seu grande alcance para uma reflexão mais arejada.
[30] Santa Teresa de Jesus. Castelo Interior ou Moradas. 8 ed. São Paulo: Paulus, 1981, p. 121 (VM III, 9).
[31] Jacques Dupuis. Il cristianesimo e le religioni. Dallo scontro all´incontro. Brescia: Queriniana, 2001, p. 483 (Post scriptum).
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Um Cristo sem Jesus e sem os apelos do Reino: análise de um livro. Artigo de Faustino Teixeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU