19 Setembro 2021
Em meados deste ano, a revista Missione Oggi, dos padres xaverianos – com sede na Bréscia –, em sinergia com a Libreria Paoline está levando aos palcos algumas representações teatrais reunidas na iniciativa denominada “Teatro dell’Anima” [Teatro da Alma], incluindo “Eretici o profeti. Jacques Dupuis: il mio caso è ancora aperto” [Hereges ou profetas. Jacques Dupuis: o meu caso ainda está aberto].
O comentário é de Franco Valenti, publicado em Settimana News, 16-09-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O tema principal do ciclo de espetáculos encenados no claustro de San Cristo, na Bréscia, nasceu da tentativa de aprofundar uma interrogação que a história moderna e contemporânea continua se fazendo: os homens e as mulheres contestados e até levados ao martírio – mesmo que não de sangue – por parte da Igreja devem ser considerados “hereges ou profetas?”.
Na apresentação da série de eventos, foi ressaltado que a Igreja, composta por santos, profetas e conservadores, muitas vezes e talvez com demasiada frequência, ao longo da sua história, confundiu profetas com hereges. Com efeito, a fronteira entre heresia e profecia é sutil, porosa. Há hereges de “fé demais”, irremediavelmente forçados, por lealdade, a correr o risco de destruir a religião e a própria Igreja representada; e outros hereges, que estão firmemente convencidos de que o Espírito Santo não terminou de falar com o evento-Cristo, mas continua falando – e falou – também por meio dos textos de outras religiões e de outros povos.
Por isso, alguns elementos do pensamento dos chamados hereges foram retomados nos espetáculos do verão italiano da Missione Oggi. Os personagens levados em consideração vão de Arnaldo da Bréscia a Giordano Bruno, de Savonarola a Abelardo.
Um interesse particular foi reservado a um teólogo do nosso tempo e às muitas questões teológicas em aberto em uma Itália e em uma Europa já multicultural e multirreligiosa. Trata-se de Jacques Dupuis, jesuíta belga, um dos maiores teólogos do pós-Concílio, professor da Universidade Gregoriana de Roma, que acabou sob acusações por parte do ex-Santo Ofício por “graves erros, ambiguidades doutrinais e opiniões perigosas”, por ser defensor da ideia de que o Espírito Santo falou nos antigos livros de outras religiões, incluindo o hinduísmo, portanto não só nos da religião cristã.
O suposto desvio doutrinal teria sido expressado em particular no seu livro “Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso” (Ed. Paulinas, 2000). O ponto crucial do texto levanta a articulada questão sobre se a salvação de Jesus Cristo também pode ser alcançável pelos “não cristãos”, se as outras religiões podem conter ou não valores humanos e cristãos autênticos, que significado positivo pode ser atribuído pela teologia cristã às outras religiões no âmbito do plano divino da salvação da humanidade.
Esses são os temas sobre os quais Dupuis havia refletido durante a sua longa permanência na Índia, onde passou 36 anos, dos quais 25 ensinando Cristologia em contato com as perguntas cada vez mais críticas dos seus estudantes quanto ao significado das tradições religiosas dos antepassados no plano providencial de Deus. Um desafio profundo para o jesuíta, que partiu para a Índia em 1948, levando consigo, junto com as convicções de fé, também os preconceitos da civilização e da cultura ocidentais, com a convicção de que, como cristãos, estamos na posse do monopólio da verdade.
Em 1984, Dupuis foi chamado a lecionar “Teologia e religiões não cristãs” na Universidade Gregoriana de Roma. Depois foi nomeado diretor da revista Gregorianum, além de consultor do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso.
Foi determinante para a evolução do seu pensamento o ensino no Saint Xavier’s College de Calcutá. A esmagadora maioria dos estudantes da faculdade não era de origem cristã, mas detinha tanto uma grande capacidade intelectual quanto uma elevada moralidade e excelência espiritual. Eram jovens destinados a se tornar os formadores e os construtores da Igreja indiana, que reivindicavam o direito de organizar com autonomia e com toda a liberdade a sua pesquisa teológica. A questão fundamental residia em entender até que ponto poderia ir o pensamento da inculturação da mensagem cristã.
Esses são os termos de consciência e de pesquisa que pululam nas páginas da biografia de Dupuis publicada pela editora EMI com o título “Il mio caso non è chiuso. Conversazioni con Jaques Dupuis” [O meu caso não está encerrado. Conversas com Jaques Dupuis], editado pelo jornalista Gerard O’Connell. Este reuniu em um volume póstumo as entrevistas feitas com o teólogo nos últimos anos da sua vida.
Em tais páginas, ele defendeu com convicção a correção doutrinal das suas pesquisas e rejeitou as críticas dirigidas contra ele com a acusação de negar o cumprimento da salvação humana e universal no evento-Cristo.
A sua reflexão espiritual e teológica parece ser sufragada por uma longa e leal experiência de relações profundas com estudantes e personagens de destaque da religiosidade indiana. A pergunta que lhe foi repetidamente feita é como é possível que a vontade salvífica original de Deus, necessariamente universal, seja negada àquela humanidade que não conheceu ou não aderiu ao anúncio cristão, embora vivendo profundamente valores e atitudes evangélicos: como não reconhecer uma centelha divina em cada ser humano, amado pelo Pai desde as origens?
Dupuis nunca pôs em discussão o evento salvífico único e universal da fé cristã, ou seja, a encarnação, morte e ressurreição de Cristo. No entanto, ele reconhece que o bem que também se encontra fora da Igreja “é obra do Espírito de Deus”.
O cardeal Joseph Ratzinger, então à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, apoiado por outros membros e consultores da mesma Congregação, continuou considerando ambíguo aquilo que Dupuis afirmava e escrevia.
O teólogo, já idoso e doente, não quis se submeter a um julgamento considerado injusto; aliás, apresentado a ele indiretamente. As várias “Notificações” contra Dupuis, transmitidas pela Congregação aos vários superiores dos jesuítas ou ao reitor da Gregoriana, foram vividas por ele como uma vontade indisfarçável de fugir do debate aberto e leal.
Também é preciso dizer que os próprios jesuítas, apesar de terem feito várias tentativas de defesa da boa-fé do coirmão, não tiveram forças para apoiá-lo até ao fim. Singular foi a falta de resposta a um texto redigido em sua própria defesa e enviado à Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Ele foi considerado longo demais, e solicitou-se que o autor resumisse em poucas linhas a resposta às “ambiguidades” que lhe haviam sido contestadas.
Um traço dessa exigência transparece em todos os parágrafos da declaração Dominus Iesus sobre a unicidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja, de 6 de agosto de 2000, publicada com a assinatura do cardeal Joseph Ratzinger, prefeito, e do cardeal Tarcisio Bertone, SDB, secretário.
Em particular, é preciso destacar a referência expressada ao capítulo 12:
“Há também quem sustente a hipótese de uma economia do Espírito Santo com um caráter mais universal do que a do Verbo encarnado, crucificado e ressuscitado. Também essa afirmação é contrária à fé católica, que, ao invés disso, considera a encarnação salvífica do Verbo como evento trinitário. No Novo Testamento, o mistério de Jesus, Verbo encarnado, constitui o lugar da presença do Espírito Santo e o princípio da sua efusão à humanidade, não só nos tempos messiânicos (cf. At 2,32-36; Jo 7,39; 20,22; 1Cor 15,45), mas também nos que antecederam a sua vinda na história (cf. 1Cor 10,4; 1Pd 1,10-12).”
Essas palavras não parecem se centrar no caso de Jacques Dupuis, lendo bem os seus textos.
No dia 2 de outubro de 1999, dois anos após a publicação do seu polêmico livro, o Pe. Jacques Dupuis foi dispensado, por ordem da Congregação para a Doutrina da Fé, ainda presidida pelo cardeal Ratzinger, da docência na Universidade Gregoriana de Roma, onde lecionava há 19 anos.
Em 2002, o mesmo cardeal pediu que o jesuíta belga fosse demitido da direção da revista teológica Gregorianum, que ele dirigia há 15 anos, e instou o superior-geral da Companhia de Jesus, o Pe. Peter Hans Kolvenbach, que retirasse a sua liberdade de palavra e o reduzisse ao silêncio das comunicações orais e escritas.
Jaques Dupuis morreu em Roma no dia 28 de dezembro de 2004, sem que a sua posição teológica jamais fosse esclarecida. Não houve nenhuma condenação formal de heresia e não houve nenhuma reabilitação.
A pièce teatral, construída sobre a dolorosa experiência de um teólogo aberto ao futuro e aos problemas ligados à pluralidade religiosa da humanidade, foi preparada de forma dialógica a duas vozes. As perguntas e as respostas seguem umas às outras.
Como o papa emérito podia compreender as razões do pensamento de Dupuis? Como se pode conjugar a ideia do “extra ecclesiam nulla salus” com o diálogo entre as religiões? Como se pode entender o chamado à salvação de toda a humanidade – e até mesmo de toda a criação – sem reconhecer plenamente a presença da ação de Deus mesmo fora da Igreja Católica?
Somente mais tarde – muito recentemente – chegaram os encontros do Papa Francisco com o Grão-Mufti de Al-Azhar e de Ur dos Caldeus e com os componentes sunitas e xiitas do Islã, a busca da compreensão e da paz entre as religiões sem oferecer nenhuma legitimidade às violências fundamentalistas.
Esses são hoje “sinais dos tempos” imprescindíveis para as etapas fundamentais no horizonte de um futuro em que os desejos de Deus para a humanidade possam efetivamente se realizar.
Portanto, o título afixado à representação teatral dramática prefere oferecer um anúncio positivo: “O caso ainda está aberto”.
“Hereges ou profetas? Jacques Dupuis: o meu caso ainda está aberto” é um espetáculo teatral de Giuseppe Marchetti livremente inspirado no volume de G. O’Connell, com a participação de Gabriele Reboni e Luciano Bertoli, Maurizio Pasetti e Marta Favaro, e introdução de Laura Novati.
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Jacques Dupuis: um caso aberto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU