24 Setembro 2019
Carlo Molari, teólogo italiano, comenta o “caso Dupuis” tendo como base o livro de Gerard O’Connell, Il mio caso non è chiuso. Conversazioni com Jacques Dupuis, que acaba de ser lançado. O artigo foi publicado por "Rocca" n. 18, de 15 de setembro de 2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em junho passado, iniciei uma reflexão sobre a teologia do jesuíta Jacques Dupuis (Rocca 2019 n. 12 p. 48-49: Pluralismo religioso e o caso Dupuis) .Ele escreveu uma espécie de autobiografia respondendo em vários capítulos a perguntas de um amigo jornalista, sem saber se e quando seriam publicadas. 15 anos após sua morte (28 de dezembro de 2004), o projeto foi realizado no volumoso livro de Gerard O'Connell, Il mio caso non è chiuso. Conversazioni con Jacques Dupuis (Meu caso não está encerrado. Conversas com Jacques Dupuis, em tradução livre, Emi, Bolonha 2019 p. 441).
Entre os vários episódios narrados, há duas crises na vida acadêmica correspondentes às decisões do padre geral Peter-Hans Kolvenbach, que constituem um verdadeiro espaço de treino à obediência para J. Dupuis.
A primeira crise, de abril de 1984, surgiu do pedido de deixar a Índia para ensinar cristologia na Universidade Gregoriana de Roma. O comentário de Dupuis é sincero: "Eu vivenciei aquela transferência repentina e inesperada como uma ferida profunda, humanamente falando, eu mal podia ver sabedoria ou sentido em tal decisão. Parecia inconcebível, para não dizer injustificado, porque eu queria dar à Índia toda a minha vida e meu trabalho. Inicialmente, foi um caso de cega obediência ao superior geral, como a Companhia de Jesus nos ensina a praticar, mesmo que a ordem recebida possa parecer absurda de acordo com os critérios humanos. Fiquei em estado de choque durante todo o verão, labutando para aperfeiçoar meus conhecimentos de italiano para estar pronto no início do ano acadêmico em Roma em outubro" (Il mio caso, p. 268). Com relação ao episódio, ele relembra: "Muito tempo depois, em uma conversa particular com o padre geral, lembrei-o de sua decisão sobre minha transferência e insinuei que aquela decisão provavelmente estava entre as primeiras que ele havia tomado como superior geral. Ele respondeu sorrindo que talvez também tenha sido o primeiro erro que havia cometido" (ibid. p. 268).
A segunda crise começou em 1º de outubro de 1998, quando Dupuis recebeu a carta do superior geral com a cópia de três documentos enviados pelo cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (Cdf) referentes ao livro Verso una teologia cristiana del pluralismo religioso (Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, em tradução livre) publicado por Dupuis pela editora Queriniana de Brescia, em 1997. Sobre as consequências, inclusive físicas, daquele episódio, o padre Dupuis declara com profundo pesar: "Naquela época, fui parar ao hospital diversas vezes por vários distúrbios. Todo o processo afetou profundamente minha pessoa e minha saúde mental. Eu me senti e continuo me sentindo como um homem alquebrado, que nunca poderá se recuperar totalmente da suspeita que a autoridade da minha igreja - uma igreja que eu amo e que servi por toda a vida - lançou em mim. A alegria de viver acabou, talvez nunca mais volte. Nem mesmo consigo me lembro de um caso em que, depois de 2 de outubro de 1998, tenha conseguido dar uma boa risada. E nem me distrair um pouco. Tive períodos de desconforto, durante os quais evitei deliberadamente qualquer companhia para ter certeza de não me permitir expressar meus sentimentos de uma maneira que os outros não poderiam entender. Eu me senti abandonado e renegado. Para resistir, havia apenas a fé cega e a oração".
Em 17 de outubro de 1998, no saguão da Universidade Gregoriana, apareceu este aviso assinado pelo reitor da Faculdade de Teologia Sergio Bastianel: “Algumas teses defendidas no recente livro do pe. Dupuis, Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, foram contestadas. Nos próximos meses, ele deverá responder às perguntas encaminhadas pela Cdf. Enquanto estiver envolvido neste trabalho, os superiores, de acordo com a pessoa em questão, decidiram afastá-lo de seus compromissos de ensino" (ibid. p. 122). O padre Dupuis observa: "o aviso causou sensação entre os estudantes e o caso - que a Cdf tinha a intenção de manter um segredo absoluto - tornou-se imediatamente de domínio público, divulgado por jornalistas de todo o mundo. A Cdf culpou o padre Kolvenbach por ter permitido que as notícia vazasse" (ibid. p. 123). Por sua parte, ao recordar o episódio, Dupuis expressa claramente seu desapontamento: "Isso foi muito doloroso para mim, porque o curso que iria iniciar no próprio mês de outubro teria sido o último: eu estava prestes a completar setenta e cinco anos, o limite de idade fixado pelos estatutos da universidade para o ensino" (ibid. p. 123).
O próprio padre Dupuis observa o paralelo entre as duas crises. "Em Délhi, às vezes fui acusado de ter uma atitude conservadora na teologia; em Roma, alguns viram em mim um teólogo progressista extremista. Em Délhi, alguns me consideravam um reacionário; em Roma, me chamaram de revolucionário, um subversivo da ordem constituída. Entre avaliações tão contraditórias sobre meu ser e as minhas obras, eu cheguei a temer a divisão da personalidade e a perda do meu senso de identidade" (ibid. p. 269). "Por um lado, eu tinha que ser submisso à autoridade doutrinária da igreja e disposto a mudar se eles me convencessem de que havia me afastado da fé cristã. Por outro lado, eu tinha que permanecer fiel a mim mesmo e à causa que estava servindo, até que me mostrassem claramente onde eu tinha errado. Foi essa atitude que me levou, em 4 de setembro de 2000, a recusar educadamente assinar do primeiro rascunho da Notificação, que o cardeal Ratzinger me apresentou para assinar" (ibid. p. 270).
Devido à costumeira alternância dos superiores locais em novembro de 2004, a situação havia se deteriorado. O próprio Dupuis observa: "Tenho a impressão de ser abandonado pelos meus superiores, que não conhecem toda a história. Só resta a possibilidade: de recorrer à autoridade do padre geral, que no passado interveio muitas vezes para me defender com pleno conhecimento da situação e tomou decisões a meu favor, contrariando o pedido da Cdf de implementar medidas drásticas contra mim.
Enquanto isso, devo sinceramente dizer que o que injustamente sofri de parte da Cdf me pareceu mais fácil de suportar do que a sensação atual de ser traído por meus superiores” (ibid. p. 362 s.). "Em minha carta ao padre Egaña, de 12 de junho de 2004, escrevi: ‘Perdi a alegria de viver em 2 de outubro de 1998 e desde então nunca mais a recuperei. Agora estou perdendo a vontade de sobreviver.’ A data é aquela do dia em que, como um raio, foi atingido pela notícia de que a Cdf havia iniciado, com a aprovação do papa, uma 'contestação' do meu livro de 1997 em que, sem nenhum esclarecimento ou diálogo prévio, eu era acusado de ‘graves erros contra a fé divina e católica’. A 'hora' se referia à carta de Egaña de 31 de maio de 2004, na qual me era negada a permissão de publicar o meu novo manuscrito" (ibid. p. 365 s).
Dupuis resume o caminho percorrido e o trabalho realizado: "Na época do Concílio Vaticano II, Karl Rahner falou de 'elementos de verdade e graça' contidos nas tradições religiosas do mundo, que exerciam uma influência positiva no mistério da salvação em Jesus Cristo pelos seus seguidores. Isso parecia bastante novo e ousado para a época e ia além do reconhecimento dos ‘valores naturais’ naquelas tradições realizado por grandes teólogos como Henri de Lubac, Hans Urs von Balthasar e outros. O Concílio adotou - sem saber - a expressão de Rahner falando expressamente de ‘elementos de verdade e graça’ (AG 9), bem como de ‘raio dessa verdade que ilumina todos os homens’ (NA 2), mas sem nunca definir tais termos como referidos às dotações ‘sobrenaturais’ que contribuem para a salvação dos membros daquelas religiões, nem jamais concluindo que as tradições religiosas são, portanto, ‘vias’ ou 'caminhos' da salvação" (ibid. p.271). Dupuis também lembra que na encíclica Redemptoris missio (1990), João Paulo II escreve: "a presença e a atividade do Espírito não afetam apenas os indivíduos, mas a sociedade e a história, os povos, as culturas e as religiões" (RM 28). Essas afirmações permaneciam suspensas a espera de conclusões "que parecem derivar logicamente delas" (ibid. p. 271). Ele realiza, com coerência e coragem, o passo definitivo.
"Para demonstrar a extensão da graça divina e cristã, reuni elementos diferentes: todo o arco da história da salvação, que começa na criação e se estende a toda a história da humanidade; a pluralidade das alianças que Deus estabeleceu com a raça humana nas várias fases da história. Esse evento é inquestionavelmente o centro, o ápice, o ponto mais alto e a chave interpretativa de todo o processo histórico de salvação e, como tal, tem um significado de salvação universal. Mas jamais deve ser isolado de todo o processo [...]. A cada passo, Deus tomou a iniciativa do encontro entre Deus e os seres humanos. Por esse motivo, se pode e se deve dizer que as tradições religiosas do mundo são ‘vias’ ou ‘caminhos’ de salvação para seus seguidores.
São tais porque representam ‘vias’ traçadas pelo próprio Deus para a salvação dos seres humanos. Os seres humanos não tomaram a iniciativa de começar a busca por Deus através de sua história; foi Deus quem primeiro se aproximou e traçou para eles as ‘vias’ pelas quais eles poderiam encontrá-lo" (ibid. p. 274-27). Assim, o dado é lançado.
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Jacques Dupuis nos apertos da obediência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU