17 Mai 2023
"O importante é manter acesa a chama da existência e continuar vivendo, com a certeza de que um horizonte mais ameno possa nos acolher com alegria".
O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Falar sobre o belo filme do diretor japonês, Ryusuke Hamaguchi – Drive my Car, foi das ricas experiências que vivenciei ao longo dos debates no Filmes em Perspectiva do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. O comentário sobre o filme ocorreu em 10/05/2023. Trata-se de um diretor e roteirista nascido em Kanagawa, Japão, em 16 de dezembro de 1978. Outro filme conhecido seu é Roda do Destino (2021), que chegou a receber o Urso de Prata no Festival de Berlim.
Falar sobre filmes não é uma tarefa fácil, exige muito estudo, conversa com especialistas, e sobretudo ter o trabalho dedicado de assistir algumas vezes o filme desejado para poder captar detalhes que passam desapercebido num primeiro contato.
Isto ocorreu comigo ao ver a primeira vez o filme japonês. Aquele ritmo lento, aquela estética diversa dos filmes ocidentais. Não é um filme tão simples como se imagina, mas um longa metragem de 3 horas de duração, que destoa de muitos dos filmes que estamos acostumados a assistir. Um exemplo: o filme demora 45 minutos para trazer à cena os primeiros créditos do filme.
É um filme que foge do trivial e da estética a que estamos habituados, apresentando-nos uma profunda reflexão contemplativa, intrigante, complexa e intimista [1]. Ele nos possibilita habitar um olhar mais oriental sobre a vida e o modo como lidamos com os sentimentos. Como aponta Inácio Araújo em resenha,
“Há muito a ver e ouvir. A fala é essencial no cinema de Hamaguchi, que parece às vezes ser outro rohmeriano, embora de originalidade absoluta. As personagens falam. Suas histórias quase sempre nos remetem ao passado. Nos fazem lembrar que o cinema, embora arte vinculada ao presente, não existe sem um passado” [2].
A montagem do filme se dá na cidade de Hiroshima, que por si só já nos evoca uma dinâmica histórica marcada pela devastação e destruição ocorrida numa cidade pela gana de um Império humano. É algo que suscita também “um apelo à necessidade de aproximação entre humanos, à tentativa de se entenderem apesar da diversidade não só entre idiomas, culturas e nações, mas também entre as pessoas” [3].
O filme concorreu a quatro Oscar em 2022: melhor filme, melhor filme estrangeiro (onde era o mais contado), o melhor roteiro adaptado e o melhor diretor. Não conseguiu nenhuma premiação, mas o filme teve uma irradiação importante em âmbito mundial. É um filme marcado por um clima introspectivo, e mesmo contemplativo, com duração de cerca três horas de duração.
O que vemos na tela é uma jornada humana, de alguém que se vê perdido diante do próprio luto e que tenta buscar caminhos de lidar e superar uma dor tremenda, apegando-se a uma sombra do passado. Uma outra possível interpretação do título do filme é “me conduza em movimento”.
Somos levados a acompanhar dois personagens que buscam lidar com cicatrizes difíceis, sendo que importantes cenas ocorrem dentro de um carro. É um filme que apresenta várias camadas, e que assinalam que as nossas dores “não cabem num porta-malas”. Essas camadas desdobram-se em três atos que se conversam entre si.
Tudo foi pensado com muito critério e delicadeza, a começar pelo brilhante elenco, composto pelos atores Hidetoshi Nishijima (no papel de Yusuke Kafuku); Toko Miura (no papel da motorista Misaki); Reika Kirishima (no papel da mulher de Kafuku, Oto Kafuku), Park Yoo-Rim (no papel delicado de Lee Yoon-a, que atua por meio da linguagem de sinais) e Masaki Okada (que faz o papel de Koji Takatsuki, personagem na peça e o último amante de Oto)
O roteiro do filme vem baseado em dois contos do grande escritor japonês, Haruki Murakami (janeiro de 1949 – 74 anos), conhecido no Brasil pela tradução de alguns de seus livros, muitos publicados no Brasil pela editora Objetiva [4]. O livro de contos utilizado foi: Homens sem mulheres, publicado no Brasil em 2016 [5]. Os dois contos são. Drive my car (cerca de 40 páginas) e Sherazade (cerca de 28 páginas).
O filme segue Yusuke Kafuku, que interpreta um diretor de teatro, num trabalho espetacular que envolve intérpretes que que se utilizam de várias línguas. Trata-se da interpretação da clássica peça do dramaturgo russo, Anton Chekhov (Tio Vânia), que foi escrita pelo autor no final do século XIX, em 1897, e cuja primeira direção ocorreu sob a tutela de Constantin Stanislavski. Como tema da peça, a difícil questão do envelhecimento e do medo do futuro, bem como da tristeza de lidar com a impossibilidade de transformar o passado, numa vida “irremediavelmente perdida”. Em contraponto ao pessimismo de Tio Vânia, temos a esperança da personagem Sonia.
Na linha da reflexão de Inácio Araújo, já citada antes,
“Há muita coisa a ver (e ouvir) em 'Drive My Car', de tal modo que é difícil fazer a seleção quando a observação é rápida. Mas podemos começar pelos idiomas. Os personagens falam em japonês, inglês, mandarim, coreano e pela linguagem dos gestos. Existe ainda uma rápida menção ao russo.”
No filme, temos dois personagens que estão apaixonados pela mesma mulher, tendo que trabalhar juntos na peça que está sendo montada. Um deles, que iria fazer o personagem principal da peça, Tio Vânia, tinha sido escolhido pelo diretor. Não tinha sido fácil a tarefa de escolher os atores para a peça que estava para ser encenada. E o “rival”, que já era um artista consagrado, Koji Takatsuki, foi escolhido para a tarefa. Os dois, diretor e ator, tinham então que conviver ou se aturar no mesmo palcocênico.
O diretor, Yusuke Kafuku, tinha perdido sua mulher há dois anos, e vivia na ocasião dos ensaios, um luto doloroso. E a esse luto, somava-se outro, anterior, com a perda de sua filha de quatro anos, acometida por pneumonia. Ele e sua mulher, Oto Kafuku, tinham custado a superar a dor da perda da filha.
Depois do luto difícil em decorrência da perda da filha jovem, Oto viveu tempos de muita dificuldade na retomada da vida. Um luto que não se dirimia. Na sequência de sua trajetória, descobriu que tinha vivas inspirações depois do ato sexual com o marido. Ela contava para ele suas histórias à noite e não se lembrava mais de nada pela manhã. Por sorte, ele anotava tudo, e as histórias serviram de roteiro para um trabalho dela na TV: foi o caminho como ela conseguiu renascer. Esse tema da criatividade pós-sexo entra no roteiro com base no conto Sherazade, de Haruki Murakami.
Ocorre que ela não se satisfazia só com o marido, mas tinha outros amantes, e isso incomodava muito Kafuku, mas ele não conseguia expressar para ela sua dor. Daí a culpa que o assoma depois de sua morte: a culpa de não ter aberto um espaço de conversa honesta com ela sobre o que ocorria.
A mulher de Kafuku, Oto, só aparece na primeira meia hora do filme, até o desenredo de sua morte. O filme se inicia com os dois nus na cama, depois do ato sexual, quando ela então narra para ele uma de suas histórias.
No dia fatal de sua morte, Oto tinha expresso para seu marido que precisava falar seriamente com com ele ainda no mesmo dia. Justamente no dia em que ele flagrou sua mulher na cama com Takatsuki. Nesse dia, tomado pela ansiedade, Kafuku demorou-se mais para retornar à casa, e quando lá chegou sua mulher já estava desacordada, vindo depois a falecer em razão de uma hemorragia cerebral.
Dois anos após a morte da esposa, Kafuku descobre que era portador de glaucoma, e não mais poderia dirigir o seu fabuloso carro: um Saab 900 turbo, um dos modelos mais populares de produção sueca. A viatura era o xodó do diretor, que cuidava do carro como uma joia rara, com toda a delicadeza e trato que sua preciosidade exigia. Não era qualquer um que podia tomar lugar na direção do veículo.
É quando entra na história a personagem Misaki, que vai servir de motorista para o diretor. Era alguém muito séria e introspectiva, mas uma excelente motorista. Estava na ocasião com 23 anos, a mesma idade que teria sua filha se não tivesse falecido. Temos então dois personagens que se encontram num carro, com seus dramas pessoais, e conversas voltadas para o que era prático e essencial, sem maiores envolvimentos.
Misaki, na direção do carro, participa de todas as conversas que ali ocorrem e com seu olhar sério e ensimesmado examina e reflete tudo que se passa com seu olhar refletido no retrovisor. No início, ela limita-se a colocar as gravações da peça nas fitas cassete, gravadas por Oto, e que serviam para o diretor ir memorizando cada um dos atos do espetáculo, sentado sempre no banco de trás, e com muita reserva. Aos poucos, os dois foram ganhando maior proximidade, com espaços importantes de conversas sobre os caminhos de cada um. Em determinado momento, ele já se senta junto dela, no banco da frente.
Assim como Kafuku, Misaki tinha também passado por um drama pessoal em sua vida, com a perda da mãe numa avalanche em sua cidade natal. Trazia consigo a culpa de não ter conseguido salvar a mãe da tragédia. Ela era uma excelente motorista, que se destacava entre as anteriores que serviram Kafuku. Tinha aprendido a dirigir em circunstância bem particular.
Depois do acidente, ela saiu de carro em busca de trabalho. Seu aprendizado no volante foi provocado pelas tensões com sua mãe, que não gostava de ser acordado pela movimentação do carro e pelas conversas da filha.
O trajeto do trabalho à casa era de cerca hora e meia. Com isso ela ficou az no volante. Depois que saiu de sua cidadezinha em busca de outra habitação, seu carro enguiçou na cidade de Hiroshima, e então teve que ficar por lá. Encontrou emprego numa empresa de reciclagem de lixo.
Durante o filme, num dos passeios de Kafuku, Misaki levou-o para conhecer a empresa onde ela trabalhou como motorista, uma empresa que estava próxima da região de Hiroshima, onde fizeram uma praça em memória da paz.
O carro será também um personagem importante do filme, na sua viva coloração vermelha. É praticamente nele que cenas chaves do filme acontecem. E ele que guia os dois personagens principais do filme em suas locomoções, e onde ocorrem as cenas chave do filme.
Por exemplo: o processo gradativo de desconstrução do protagonista do filme, Kafuku, em sua tentativa de lidar com o luto; bem como o início de um novo laço de conexão com o real; e também o momento duro em que um dos personagens chaves do elenco da peça, Takatsuki, em conversa tensa com Kafuku, dentro do automóvel, revela a ele que também amava Oto, sua mulher.
Ele era um ator de temperamento forte e agressivo, que detestava ser fotografado por seus fãs, e em razão de uma agressão a um deles, acaba por feri-lo de morte, sendo preso e mudando o rumo da peça. Em verdade, será Kafuku que tomará o seu lugar, assumindo o papel de tio Vânia. Isso ocorreu num processo de discernimento delicado.
A decisão de assumir o papel foi dura. Caso isso não ocorresse, a peça teria que ser cancelada, o que era um problema. Ele tinha dificuldade de fazer o papel em razão do momento difícil por que passava, e a peça exigia dele o que ele existencialmente não podia oferecer no momento, mesmo conhecendo a peça em profundidade.
Dois anos se passaram da morte de Oto e a vida segue. No teatro, a vida como que se bifurca — ela é representação da vida que incide sobre a própria vida. Notamos isso em cada expressão, em cada silêncio de Kafuku. Ele vive ou sobrevive? Sua dificuldade em fazer o Tio Vânia, era a dificuldade ele ir ao fundo de si mesmo.
Kufaku pede dois dias à produção para decidir se assume ou não o personagem do Tio Vânia. É quando solicita a Misuki (a motorista) para sugerir um local bonito para ele poder refletir. Em seguida, porém, ele decide pedir a Misuki para leva-lo à localidade distante onde ela passou sua infância:
E os dois então partem numa longa viagem. Aliás, gostaria aqui de chamar a atenção do tema da viagem nesse filme: na verdade, uma viagem que é também a possibilidade da revelação de segredos duramente camuflados pelos dois personagens ao longo da vida. Segundo Durval Ramos, em sua resenha do filme,
“a verdadeira viagem de Drive My Car é para o processo de aceitação e libertação, de entender as próprias cicatrizes e aprender a conviver com elas — e que nem sempre isso é fácil. E o modo como isso é construído na tela, com toda a calma e paciência do mundo para que a gente participe passo a passo desse processo é recompensador. É possível sentir o peso saindo dos ombros de Yusuke quando ele finalmente entende o peso das falas que passou anos declamando de forma robótica e vazia — quando aceita que está tudo bem sofrer” [6].
Nas cenas longas que envolvem a viagem dos dois passageiros no belo carro vermelho, nos deparamos com as belíssimas fotografias de Hidetoshi Shinomia, e passos da linda trilha sonora a cargo da cantora e compositora Eiko Ishibashi. São passagens que ficam impressas na memória.
Ajudam muito as paisagens escolhidas para as filmagens: estamos diante de uma cinematografia belíssima, uma edição minuciosa, enriquecida por locações mais do que inspiradas, principalmente da região de Hiroshima. Tudo contribui para a narrativa envolvente e marcante: “É em Hiroshima que se passa o essencial da trama, portanto num verdadeiro monumento à destruição e à memória. [7]” (4)
Gostaria de ao final, pontuar três cenas de uma beleza única, que me marcaram de forma muito peculiar. A primeira delas, quando Kafuku e Misaki estão no carro, e ele a autoriza a fumar no veículo. É quando ela abre o teto solar e coloca sua mão para fora do carro, com o cigarro entre os dedos. Ele, faz o mesmo, imitando-a. Vemos a fumaça se dispersar pelo caminho. Num plano tomado do exterior vemos “os dois braços, lado a lado, os cigarros acesos numa espécie de comunhão enquanto a brasa do cigarro, tão visível, se transforma em cinza” [8].
A outra cena, tomada do filme, é quando Kufuku e Misake encontram-se diante dos destroços da casa dela, onde morreu sua mãe, numa paisagem de neve que envolve todo o espaço, mas que deixa à vista os escombros de madeira daquilo que restou da habitação. É quando Misaki vive um momento pessoal de grande tristeza, de retomada da dolorosa memória. Ela tinha descido do lugar onde estavam para ver o entorno, e em seguida retorna com a ajuda de Kufuku. Ele a abraça com delicadeza e diz para ela, numa cena que é única no filme:
“O importante é trabalhar, continuar trabalhando...
Aqueles que sobrevivem
Continuam pensando nos mortos
De uma forma ou de outra
Isso vai continuar
Você e eu
Temos que continuar vivendo
Tudo vai ficar bem
Tenho certeza
Que ficaremos bem” [9].
Finalmente, a terceira cena ocorre já ao final do filme, e retoma uma das importantes cenas da peça teatral, que envolve a delicada conversa entre Tio Vânia e Sônia, cujo personagem falava em linguagem de sãos cenas magistrais de interpretação, quando a atriz, levanta-se de sua cadeira, e envolvendo Tio Vânia pelas costas, envolve o rosto dele com suas mãos, e com elas vai delineando uma conversa que visa aumentar sua temperatura vital. O diálogo assim se processa:
Tio Vânia:
“Sônia,
Eu sou um miserável
Se você soubesse como sou miserável.
O que podemos fazer?”
E Sônia, responde com os sinais da linguagem dos mudos:
“Devemos viver nossas vidas
Sim, viveremos, tio Vânia.
Nós vamos viver os longos, longos dias
E as longas noites.
Vamos suportar pacientemente as
Provações que o destino nos enviar.
Mesmo que não possamos descansar
Vamos continuar a trabalhar para os outros
Agora e quando envelhecermos
E, quando nossa última hora chegar,
Iremos em silêncio
E no grande além, diremos a Ele
Que sofremos,
Que choramos” [10].
Que a vida era dura.
E Deus
Se apiedará de nós
Então você e eu
Veremos aquela vida brilhante, maravilhosa
Onírica diante de nossos olhos
Vamos nos regozijar
E com sorrisos ternos em nossos rostos
Olharemos para trás, para nossa
Tristeza de hoje
E então, finalmente,
Vamos descansar
Eu acredito nisso
Eu acredito nisso do fundo do coração
Quando essa hora chegar
Vamos descansar.
Como singular mensagem ou mantra que o filme deixa impresso em nossa vida é justamente a ideia de nunca desanimar de levar a vida, apesar de todas as dificuldades. Ou seja, o importante é manter acesa a chama da existência e continuar vivendo, com a certeza de que um horizonte mais ameno possa nos acolher com alegria.
[1] Cine Players (de Adriano Silva; acesso em 10/05/2023)
[2] Folha de S.Paulo (acesso em 10/05/2023)
[3] Ibidem.
[4] Haruki Murakami. Norwegian Wood. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008; Id.
[5] Haruki Murakami. Homens sem mulheres. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
[6] Canal Tech (acesso em 10/05/2023)
[7] Folha de S.Paulo (acesso em 10/05/2023)
[8] Ibidem.
[9] Texto que foi retirado das legendas do Bluray do filme, logo após a primeira hora de filmagem.
[10] Ibidem, já ao final do filme.
O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014; Id. Homens sem muralhas. Rio de Janeiro: Objetiva,2015; Id. Ouça a canção do vento. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016; Id. Sul da fronteira, oeste do sol. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2021.
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Drive my Car: o caminho que leva a si mesmo. Artigo de Faustino Teixeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU