17 Outubro 2022
"Documentário assustador mostra a cruzada neopentecostal, muitas vezes articulada ao tráfico, para expulsar religiões afro-brasileiras da periferia. Uma guerra assimétrica em que Deus torna-se moeda de troca e esfacela a cultura popular".
O artigo é de José Geraldo Couto, publicado por Blog do Instituto Moreira Salles, 13-10-2022.
Entra em cartaz discretamente nesta quinta-feira um dos filmes mais assustadores do ano, o documentário Fé e fúria, de Marcos Pimentel. Seu tema, abordado de modo sereno, incisivo e competente, é a guerra religiosa verificada nos últimos anos nas favelas e periferias brasileiras. No filme, o foco se concentra no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte.
Assim como na tão falada “polarização política”, trata-se de uma guerra assimétrica, onde um lado bate e o outro apanha. O lado que bate, no caso, são as igrejas neopentecostais; o que apanha são as religiões de matriz africana, notadamente o candomblé e a umbanda.
Com uma fartura de depoimentos, dados estatísticos, material jornalístico e registros in loco (terreiros, templos, barracões, igrejas e ruas), o documentário expõe as várias faces de um movimento profundo: a progressiva expulsão das religiões afro-brasileiras dos bairros periféricos ao longo das duas últimas décadas, ao lado da notável expansão das igrejas neopentecostais nas mesmas comunidades.
É, em certa medida, um documentário convencional, sem grandes invenções de linguagem, mas com uma diretriz firme, a de compor o quadro geral a partir não de uma explicação externa, sabichona, mas da vivência e da elaboração dos próprios participantes do processo. Com exceção do depoimento breve de uma socióloga dedicada à questão (Chris Vital), quem fala no filme são mães e pais de santo, pastores evangélicos e fiéis de ambos os lados, além de traficantes e moradores colhidos no fogo cruzado.
A referência a traficantes no parágrafo acima pode causar algum estranhamento, mas um dos méritos do filme, talvez o principal, é mostrar como se dá a articulação entre facções criminosas e certas igrejas neopentecostais, num conluio de interesses econômicos e políticos, em que a fé entra como arma e moeda de troca.
Como narra com lucidez um pastor evangélico que se opõe à intolerância de igrejas como a Universal e a Assembleia de Deus, há inúmeros casos de chefes do tráfico que se convertem na cadeia, voltam para a favela e passam a atuar em prol de uma determinada corrente evangélica, impondo-a sobre sua facção e sobre toda a comunidade. A igreja cresce, a violência (visível) cai, diminui a presença da polícia.
O resultado é o fim da liberdade de culto, e suas principais vítimas são as religiões de matriz africana, expulsas das comunidades por força de intimidações, atentados e agressões físicas. São inúmeros os relatos apresentados e documentados no filme.
Um dos líderes religiosos ouvidos é o pastor Paulomar Silva, que criou uma igreja chamada Exército de Deus, cujo lema é “Jesus é o general”. Na fachada de seu templo lê-se a inscrição “Prepare-se para a guerra santa”, que segundo ele é um versículo do profeta Joel.
O contraponto é dado pelo pastor Marcelo, crítico da intolerância neopentecostal. Segundo ele, essa linguagem bélica vem do Antigo Testamento e é instrumentalizada no contexto social atual para impor uma crença à força. Outro pastor de mente aberta, Cosme, diz que nas igrejas neopentecostais prevalece a teologia da prosperidade, braço religioso da ideologia neoliberal, que traz consigo “o preconceito, o racismo, a homofobia”, e em que “só o que importa é o dinheiro”.
Surgem assim o Exército de Deus, os Guerreiros de Jesus, os Gladiadores do Altar, verdadeiras milícias religiosas contra os infiéis. Nessa suposta guerra santa vale tudo, até vestir crianças com uniformes militares de camuflagem para cantar um gospel pop num templo, batendo continência. Há também o funk gospel, como o Facção Jesus Cristo, explicado por seu autor o MC Praga. Outro funkeiro, Tonzão Chagas, explica a origem do funk “Jesus/Jeová”, que leva multidões ao delírio em shows ao ar livre.
Uma mãe de santo detecta a origem da situação atual na crise da Igreja Católica nos últimos vinte anos. Segundo ela, muitos dos fiéis que abandonaram o catolicismo se dirigiram inicialmente aos terreiros ou ao espiritismo, enquanto outros abraçaram as igrejas neopentecostais. Estas últimas adotaram uma política agressiva de conversões e de demonização das outras crenças, numa disputa feroz de território.
Com isso, era uma vez o sincretismo religioso, força viva da cultura popular brasileira. Esfacelou-se o que Darcy Ribeiro caracterizava como “nosso catolicismo santeiro, festeiro e macumbeiro”, substituído por uma cruzada de intolerância e ódio.
A corda estoura do lado mais fraco, e as religiões de matriz africana são hoje discriminadas e perseguidas por pastores, traficantes, milicianos e policiais como eram até meados do século passado pela Igreja Católica. O componente de racismo desse processo não deixou de ser notado por vários dos depoentes. Diz o babalaô Iwanir: “Se um dos nossos criar os ‘guerreiros de Ogum’, vai todo mundo preso na hora”.
Em meio a esse quadro geral de conflitos sociais e políticos, um caso singular exemplifica o tal mistério da fé. Na periferia de Belo Horizonte, Fabrício, um jovem cheio de tatuagens e piercings com símbolos cristãos, pendura-se numa árvore por ganchos que perfuram suas costas. Em casa, faz isso de cabeça para baixo, com os ganchos nos joelhos. É visível em seu rosto o prazer (masoquista?) e até a beatitude com que realiza essa autoflagelação que o conecta com os místicos de todos os tempos. Seu discurso é de genuíno amor a seu Deus e a seus semelhantes. Fabrício repudia toda forma de intolerância e discriminação. É a encarnação da fé como convicção íntima com a qual ninguém tem que se meter.
Seria interessante rever, à luz desta nova situação, o magnífico Santo forte (1999), de Eduardo Coutinho, que abordava as múltiplas faces da fé popular numa favela carioca, para termos a dimensão da perda, do empobrecimento humano e simbólico ocorrido no período.
Fé e fúria foi filmado entre agosto de 2016 e julho de 2018, portanto antes da eleição presidencial de 2018, mas talvez ajude a explicar o seu resultado. A última imagem, já nos créditos, é a do atual presidente fazendo armas imaginárias com os dedos e apontando-as contra o espectador. Não poderia haver final mais eloquente.
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Cinema: Demônios imaginários, violência real - Instituto Humanitas Unisinos - IHU