02 Fevereiro 2023
"O conteúdo da obra envolve uma pequena biografia do autor, sua reflexão sobre o período em que esteve na frente da CdF, sua compreensão do momento atual vivido pela igreja católica e o pontificado de Francisco, bem como sua avaliação da renúncia do papa Ratzinger (Bento XVI). Reflete também sobre alguns pontos que diferenciam sua visão da de Francisco, como a questão da sinodalidade e o futuro da igreja e outras relativas à doutrina da igreja e suas relações internacionais. O meu objetivo aqui não é abordar todos os temas desenvolvidos no livro, mas alguns que me pareceram mais singulares segundo o meu ponto de vista", escreve Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU e do canal Paz Bem.
Terminei de ler hoje cedo o novo livro do ex-presidente da Congregação para a Doutrina da Fé - CdF (ex-Santo Ofício), que acompanhou o papa Ratzinger a partir do período de sua renúncia, em 2013.
Trata-se de um livro volumoso, com 223 páginas, e nove capítulos, com o prefácio de Franca Giansoldati. O conteúdo da obra envolve uma pequena biografia do autor, sua reflexão sobre o período em que esteve na frente da CdF, sua compreensão do momento atual vivido pela igreja católica e o pontificado de Francisco, bem como sua avaliação da renúncia do papa Ratzinger (Bento XVI). Reflete também sobre alguns pontos que diferenciam sua visão da de Francisco, como a questão da sinodalidade e o futuro da igreja e outras relativas à doutrina da igreja e suas relações internacionais. O meu objetivo aqui não é abordar todos os temas desenvolvidos no livro, mas alguns que me pareceram mais singulares segundo o meu ponto de vista. O meu objetivo aqui não é abordar todos os temas desenvolvidos no livro, mas alguns que me pareceram mais singulares segundo o meu ponto de vista.
Livro "In buona fede". (Foto: divulgação)
No início do livro, o cardeal Gerhard Müller fala de sua trajetória de vida, desde o tempo de sua primeira formação em Mainz, no sudoeste da Alemanha, numa região de predominância católica. Veio de uma família católica, de pais trabalhadores, sendo o irmão mais nove de outros três que já faleceram. Sua família teve sempre uma postura crítica com respeito ao Terceiro Reich, e seu pai, em particular, atribuía a Hitler a responsabilidade pela “tragédia coletiva” que significou o nazismo (BF, 21-23)
Fala também sobre as influências que sofreu no curso de sua formação, e sublinha em particular as presenças de Santo Agostinho e da Bíblia. Menciona ainda os teólogos que marcaram sua reflexão, como os Padres da Igreja, Ratzinger (e cita particularmente o livro: Introdução ao cristianismo), Von Balthasar, Y. Congar e Karl Rahner (BF, 35).
Fundamental na sua vida foi o influxo de Ratzinger, desde os tempos de sua atuação como teólogo. Müller vem se dedicando agora à curadoria da obra completa de Ratzinger, prevista para ser publicada em 16 volumes. Em sua visão, Ratzinger “representa um símbolo, encarnando a parte da Igreja alemã mais fiel ao magistério e menos inclinada a ceder face aos golpes da reforma levada adiante pelos promotores do percurso sinodal” (BF, 67).
Esteve ao lado de Ratzinger, depois de sua renúncia como papa. Foi uma convivência de vinte anos com o bispo emérito de Roma. A renúncia de Bento XVI surpreendeu Müller, que não espera tal gesto. Nenhum indício do ato pretendido foi anunciado a qualquer membro da CdF (BF, 135). Sublinha que talvez o gesto do papa se deu em razão de seu estado doentio e da percepção da proximidade da morte. Müller acrescenta ainda o influxo de toda uma campanha midiática contra o papa, que corroía suas forças (BF, 133 e 140). Só agora ficamos sabendo, pela divulgação de uma carta de Ratzinger ao seu biógrafo, Peter Seewald, qual foi o motivo real de sua renúncia: uma difícil insônia que o acometeu desde 2005, meses depois de sua eleição.
Em seu livro, o cardeal Müller deixa clara sua posição crítica com respeito à renúncia papal. Firma sua posição contrária, sublinhando que o caso da renúncia de Bento XVI deve permanecer como um “caso pessoal e excepcional” sem, absolutamente, tornar-se uma regra comum a partir de agora, com riscos danosos para o futuro da igreja (BF, 137-138). Na visão de Müller, o mandato de um papa não é resultado de um conclave, mas de um dom concedido por Deus (BF, 142).
O trabalho de Müller na CdF ocorreu em razão de um convite expresso de Bento XVI. Assumiu o cargo com a firme convicção de estar a serviço da defesa da fé e da doutrina. Aliás, a seu ver, todo teólogo deve ter como missão “esclarecer e defender a fé” (BF, 90-91). Trata-se de tarefa que não pode ficar restrita a um dicastério específico. Reage com firmeza contra a posição irradiada na mídia de que ele se posicionava contra Francisco. A seu ver, não era essa a verdade. Lendo, porém, o livro com calma, verificamos que há uma série de discordâncias que são aventadas.
O cardeal Müller não esperava sair assim abruptamente do dicastério romano, e reage duramente contra o sucedido. Reconhece que havia vozes críticas à sua atuação na CdF, mas pontua que o seu trabalho simplesmente refletia o traço definido para qualquer prefeito do dicastério: colaborar com o pontífice e zelar pela doutrina da fé (BF, 39). Sua saída ocorreu em 2016, com uma decisão firme de Francisco, acolhida pelo então prefeito da CdF como algo “arbitrário”. Os lamentos do cardeal Müller são retomados em outras partes do livro, quando reage contra a progressiva perda de influência da CdF no pontificado de Francisco, sobretudo depois da publicação da constituição apostólica Praedicate Evangelium, de março de 2022, com o redesenho do mapa de poder na cúria romana (BF, 52).
Em alguns momentos do livro, o cardeal Müller deixa escapar suas diferenças a respeito de certos teólogos da América Latina, que a seu ver padecem de “complexo de inferioridade” com respeito aos teólogos europeus. Teólogos que junto a outros personagens da pastoral, como o cardeal Óscar Maradiaga, não viam com benevolência a atuação curial de Müller (BF, 41-42). Em sua crítica resguarda, porém, o teólogo Gustavo Gutiérrez, a quem dedica elogios em diversos momentos do livro (BF, 41; 192-193). Numa de suas críticas mais contundentes ao trabalho de Francisco e de sua equipe, o cardeal Müller denuncia o que chamou de “espécie de círculo mágico” em torno da casa de Santa Marta, com pessoas despreparadas teologicamente (BF, 46).
Em vários pontos de seu livro, o cardeal Müller expressa seu descontentamento com o momento atual da igreja católica, que em sua visão corrobora com a fragmentação tomada pelo cristianismo no curso do século XXI (BF, 96; 155). Expressa sua preocupação com o influxo de certo nihilismo, bem como de um acento exagerado na dimensão horizontal da fé. Sua intenção é alertar a igreja contra o risco da “dispersão do patrimônio da fé” em reflexões doutrinais marcadas por imprecisão e confusão. No prefácio da obra, Franca Giansoldati busca resumir algumas das dificuldades que ocorrem na reflexão teológica ou pastoral corrente, que, a seu ver, acabam por diminuir a figura de Jesus Cristo ou do papel salvífico universal da igreja católica. Exemplifica com a tendência em curso de ver Jesus como um irmão, um amigo ou exemplo de vida moral, mas não como o salvador do mundo.
Com respeito ao papa Francisco, o cardeal Müller partilha uma visão que é comum entre outros curiais de que sua perspectiva é mais pastoral do que teológica. Considera também que entre seus auxiliares há uma carência de teólogos, o que, na sua visão, tende a enfraquecer “o caráter teológico e eclesiológico do Colégio cardinalício” (BF, 54).
As divergências com Francisco emergem em vários momentos da obra, quando detalha passos específicos dados pelo papa em favor de transformações na igreja. Dentre os contrastes, a visão distinta da evangelização. Para Müller, Francisco vislumbra a dinâmica evangelizadora no compasso do compromisso social em favor dos migrantes, pobres e excluídos, evitando uma compreensão de evangelização que se concentra no anúncio explícito de Jesus Cristo. Para Müller, ao contrário, torna-se essencial uma concentração no mandato da evangelização, com ênfase no anúncio (BF, 87, 93, 111, 190).
O processo em curso de redesenho da cúria romana, enfraquecendo o poder da Congregação para a Doutrina da Fé, não agrada ao cardeal Müller. Daí sua contestação da constituição apostólica Predicate Evangelium, de março de 2022. Trata-se de um documento que segundo o cardeal “já nasceu com um defeito de fábrica”, em razão de sua carência eclesiológica (BF, 52). Expressa também dificuldades com a exortação apostólica pós-sinodal, a Amoris Laetitia, de março de 2016, que abria concessões problemáticas no campo da acolhida dos gays (BF, 60, 150). Em todos os seus posicionamentos públicos, o cardeal Müller defende rigidamente o matrimônio tradicional, excluindo qualquer outra possibilidade de acolhida fora dos parâmetros tradicionais, o que para ele seria um verdadeiro “sacrilégio” (BF, 113-115).
Em sua obra, o cardeal alemão manifesta também resistências contra o caminho da sinodalidade adotado por Francisco, que segundo ele promove uma descentralização delicada na vida da igreja, conferindo um poder excessivo às conferências episcopais. Uma descentralização que faz parte do projeto de Francisco, ao promover a internacionalização do Colégio cardinalício (BF, 55, 62, 85). Coloca também em cheque a perspectiva litúrgica de Francisco, ao abolir a missa em latim, contrariando a postura anteriormente vigente, com a carta apostólica de Ratzinger, Summorum Pontificum, publicada como um motu proprio em julho de 2007 (BF, 81-82; 84).
Em linha de rígida continuidade com a perspectiva ratzingeriana, o cardeal Müller mantém vinculante a declaração Dominus Iesus, publicada pela CdF em agosto de 2000, durante o pontificado de João Paulo II. Na visão do cardeal, esse documento assinado por Ratzinger expressa a “verdade absoluta” para os cristãos, sem possibilidade de alternativa. Com a acolhida da declaração, a confirmação absoluta de que só pode haver esperança salvífica em Jesus Cristo, e que só a igreja católica é sacramento universal da salvação (BF, 94-97).
Com a acolhida da Dominus Iesus, a manutenção de um posicionamento restritivo no campo do diálogo das religiões. Um diálogo que vem reconhecido em seu valor, mas como um dado retórico, pois na verdade, o caminho salvífico de fato só se dá na acolhida da perspectiva católica. O cardeal Müller, defendendo tal posição, coloca em xeque o diálogo efetivo para evitar o risco de uma equivalência entre as religiões (BF, 95).
Temos assim, mais uma das obras publicadas durante o pontificado de Francisco, que expressam uma visão distinta de evangelização e que propõem a defesa de uma continuidade de perspectiva que vigorou durante os quarenta anos que antecederam a entrada do novo papa.
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Em boa fé – A religião no século XXI. Artigo de Faustino Teixeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU