30 Junho 2021
A Santa Sé faz uma tentativa fracassada de última hora para alterar a proposta de lei anti-homofobia apoiada pela maioria das pessoas na Itália democrática.
O comentário é de Robert Mickens, publicado por La Croix International, 25-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Pode-se chamar de Vaticano ou de Santa Sé. Já pouco importa, porque a diferença e as nuances entre os dois termos (ou entidades) se perderam para a maioria das pessoas. Isso inclui a maioria dos católicos.
Cada vez mais, ao que parece, as pessoas não se importam se existe uma distinção.
A Santa Sé e o Vaticano significam apenas uma coisa para a maioria das pessoas – a sede da Igreja Católica ou o centro burocrático de um colosso religioso de dois milênios de idade.
E esse colosso, como eu argumentei na semana passada, continua experimentando uma implosão que remonta pelo menos à Reforma. Certamente na época do Iluminismo no século XVII, essa implosão se tornou um processo contínuo.
Enquanto o arranjo entre “trono e altar” do Antigo Regime na Velha Europa dava lugar à democracia, a Igreja – especialmente a parte ligada a Roma – tentava poderosamente e com todas as armas do seu arsenal espiritual e mundano barricar a si mesma e aos seus súditos contra a tendência modernizadora.
De vez em quando, os cristãos “iluminados” levantavam a sua voz para alertar os hierarcas da Igreja de que isso era inútil. Então, finalmente, o Concílio Vaticano II (1962-1965) procurou fazer as pazes com a “modernidade”, incluindo a democracia.
Agora é óbvio que o Concílio não teve sucesso, pelo menos não completamente. Basta observar as contínuas tentativas dos bispos católicos em várias partes do mundo de ditar aos governos democraticamente eleitos e aos chefes de Estados soberanos o curso da ação política que eles deveriam seguir.
Os bispos dos Estados Unidos, por exemplo, têm feito isso nos últimos 40 anos em relação à questão do aborto. No total fracasso deles de convencer as pessoas a pararem de abortar fetos, eles financiaram movimentos politicamente conservadores e contaram com os tribunais civis para simplesmente proibir a prática.
É uma estratégia política e jurídica em que os prelados católicos simplesmente dobraram a aposta ao verem sua própria autoridade moral se esvaindo, especialmente depois da sua resposta desastrosa e incerta ao abuso sexual clerical de crianças e de adolescentes.
Por toda a parte, os bispos são cada vez mais incapazes de persuadir os membros da sua própria Igreja a responderem às questões morais e sociais de hoje.
Com efeito, os bispos e a Igreja institucional que eles acham que estão “liderando” perderam quase toda a credibilidade e influência.
Tomemos o caso dos bispos da Itália. Nesse país, que geograficamente é o lar do papado, 74,6% da população ainda se identificam como católicos, de acordo com as estatísticas mais recentes.
Essa é uma queda significativa em comparação com algumas décadas atrás, quando mais de 90% dos italianos eram membros batizados da Igreja. Mas ainda é uma maioria significativa.
Os bispos nos EUA, no entanto, também estão se tornando cada vez menos relevantes na vida das pessoas.
O mais recente exemplo disso foi a incapacidade deles de convencerem os legisladores italianos a modificarem um projeto de lei anti-homofobia que foi ratificado em novembro passado na Câmara dos Deputados da Itália e atualmente está sendo debatido no Senado.
Os bispos, os católicos tradicionalistas e os políticos de direita temem que padres ou catequistas possam ser multados ou presos por pregarem a doutrina da Igreja sobre a sexualidade humana se o projeto se tornar lei.
E uma das suas preocupações mais absurdas é que as escolas católicas sejam obrigadas a celebrar um novo Dia Nacional Contra a Homofobia, como se isso fosse uma violação de algum princípio religioso.
Mas a maioria dos italianos – 60% deles – são a favor da legislação proposta.
Os bispos fracassaram completamente em convencer seus concidadãos ou seus representantes democraticamente eleitos de que há razões para se opor.
Por quê? Obviamente, porque as pessoas veem os bispos e os argumentos que eles empregam como deslocados, irrelevantes e simplesmente errados.
Em uma ação legal sem precedentes, no dia 17 de junho, a Santa Sé quase admitiu que os bispos fracassaram e perderam o contato com seu povo quando entregou uma “nota verbal” – uma comunicação oficial entre Estados soberanos – à embaixada da Itália junto à Santa Sé, exigindo que a proposta de lei seja revisada.
A nota invocava o Tratado de Latrão, um acordo jurídico entre a Santa Sé e o Estado italiano que garante certos direitos para a Igreja Católica na Itália. Ela dizia que o projeto de lei em análise violava algumas cláusulas desse tratado.
Juristas, políticos e pessoas comuns argumentaram se isso representava ou não uma interferência do Vaticano nos assuntos de um Estado independente.
Pelo menos um editorialista de jornal lembrou aos leitores que a Itália não é mais uma “colônia” do papado ou do Vaticano, enquanto outros argumentaram que os hierarcas católicos deveriam se preocupar em fazer as suas orações e deixar as questões da democracia para os legisladores e para aqueles que os elegeram.
De fato, a Santa Sé tem o direito de intervir do modo como fez. Ela expressou preocupação de que o “contrato” que havia feito com a Itália seria violado se o projeto se tornasse lei. Isso é algo que um juiz pode ter que decidir, caso o projeto seja ratificado e assinado como lei, e a Santa Sé decida contestá-lo.
Mas esse foi o desdobramento mais prudente?
Provavelmente não. Mesmo que seja decidido que a legislação viola o Tratado de Latrão, a autoridade moral da Igreja institucional e de seus bispos ficará ainda mais desacreditada.
A maioria dos italianos já percebe que o Vaticano tem bloqueado a vontade do povo. Se um juiz decidisse em favor da Santa Sé, isso apenas reforçaria na mente das pessoas que a Igreja continua exercendo um poder, o que não deveria ser permitido em um país democrático soberano.
E também poderia levar a um novo impulso por parte de várias forças na Itália – tanto conservadoras quanto progressistas – para dissolver o Tratado de Latrão, um movimento que já tem um apoio significativo em alguns setores.
Aconteça o que acontecer, o recurso da Santa Sé aos meios legais para tentar impor a sua vontade sobre a Itália não terá um final feliz.
Esta semana provavelmente entrará na história como o início do colapso do status quo entre a Igreja e os Estados no “Bel Paese” – o último baluarte do antigo paradigma anacrônico que não serve mais ao Corpo de Cristo ou ao restante da humanidade.
De 04 de junho a 10 de dezembro de 2021, o IHU realiza o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.
XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição
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Vaticano confessa: a Igreja hierárquica perdeu contato com o povo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU