Por: Jonas | 19 Junho 2013
Não chega a acreditar [nesse momento de empolgação com o novo Papa] e pede decisões efetivas e concretas, ou, melhor ainda, a mudança total do sistema eclesiástico. O teólogo basco José Arregi acredita que não basta a simplicidade do Papa e que “falta um programa de reformas profundas”. Para Francisco, ele receita a “transparência como a melhor arma contra as tramas na Cúria” e pede que a Igreja se dedique “mais a dar de comer, do que a defender dogmas”.
Fonte: http://goo.gl/cWyq4 |
A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada no sítio Religión Digital, 16-06-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
A renúncia de Bento XVI é um gesto profético, revolucionário ou forçado pelos escândalos?
E como poderemos saber, se não nos foi dito ou guardamos fundadas suspeitas de que a explicação dada (seu estado de saúde) não era a única razão e, talvez, nem sequer a razão decisiva? O Vaticano é um mundo opaco, amordaçado em sua complexidade e na confusão de seus interesses e relações de poder, assim como todas as grandes instituições, e inclusive mais. Entretanto, a Igreja deveria ser um lugar de transparência, um exemplo de simplicidade, um modelo de fé na verdade, ingênua e crítica ao mesmo tempo. Jesus disse: “Diga sim quando for sim, e diga não quando for não”, com todos os riscos. No entanto, no Vaticano não é assim, e somos obrigados a falar do que não sabemos.
Dito isso, eu diria também que sua renúncia foi mais por seu aborrecimento diante da Cúria do que pelo seu estado de saúde. Talvez, quis que o sucessor adotasse mais livremente as medidas que ele desejava, mas não podia. Seja como for, aqueles que comemoram sua renúncia, como gesto de humildade ou de coragem, indiretamente, censuram a arrogância ou a covardia de João Paulo II, que numa situação pior não renunciou.
De qualquer modo, considero que a renúncia de Bento XVI seria realmente profética se tivesse explicado as verdadeiras razões ou, mais ainda, caso tivesse dito: “No Vaticano são necessárias estas reformas e as demais. Entretanto, eu não posso realizá-las por essa razão e por essa outra. De modo que eu saio para que o sucessor as realize”.
Como é possível que uma instituição que havia atingido o fundo, em menos de um mês, renasça como a Fênix?
Temo que pareça muito cético, mas acredito que ainda está para ser visto se a instituição vaticana será capaz de renascer e, sobretudo, de voar. Não resta dúvida de que o papa Francisco, com alguns gestos e algumas palavras muito simples – e com um enorme aparato midiático, não se esqueça –, conseguiu levantar, não o voo, mas, sim, um vento de entusiasmo e esperança.
A esperança é o mais ativo e transformador, mas os ventos se acalmam ou mudam logo de direção. Também pode acontecer que o entusiasmo deixe, rapidamente, lugar para a desilusão.
A grande fragilidade desta onda de entusiasmo, que ainda continua viva, é que tudo depende de uma pessoa, de seu carisma e de seu poder pessoal absoluto. A instituição católica é uma monarquia absoluta fortemente secularizada, e enquanto não mudar o sistema monárquico ou não for desmontada sua legitimação teológica, sua reabilitação será apenas aparente ou, inclusive, pode ser contraproducente, pois pode contribuir para reforçar o caráter absolutista e personalista do sistema. Eu acredito que seria melhor que essa Fênix eclesiástica, para continuar com a imagem, não renasça. O renascimento de suas cinzas significaria continuar ancorados no Antigo Egito. O que falta é reinventar a instituição ao ar do Espírito que alenta e recria.
O que faz com que o papa Francisco tenha o apoio da opinião pública e, o que é mais difícil, do que é publicado?
Um rosto bondoso, um gesto de simplicidade natural, uma palavra improvisada e fresca... continuam sendo o que mais nos conquista e atrai. É o que mais nos ajuda a recuperar nossa fé em nós mesmos, na humanidade, no futuro mais humano e fraterno. E necessitamos tanto e tanto disto! Precisamos de figuras para enxergar nossa imagem pessoal e coletiva restaurada (para não dizer eclesial ou eclesiástica...), que está tão desfigurada. Necessitamos de espelhos que nos reflitam da maneira mais límpida, com o melhor de nosso ser. Para isto, não há melhor espelho do que a bondade de um rosto, a humildade de um gesto, a autenticidade de uma palavra... Acredito que tudo isso está contemplado no papa Francisco, e explica seu atrativo midiático.
Depois, uma vez mais, surgem as dúvidas: até que ponto é uma figura genuína e até que ponto é uma figura fabricada pelos próprios meios de comunicação? O que a imprensa cria, a imprensa destrói ou simplesmente esquece. É ainda muito cedo para se pronunciar sobre o alcance desta figura e, sobretudo, a respeito de seus projetos de reforma na Igreja.
Seus gestos serão consolidados em decisões e em reformas reais?
Pra mim é difícil falar disto e, de qualquer modo, sou muito sensível ao caráter imprevisível do futuro, mais acentuado ainda em nossos tempos de informação globalizada e de mudanças aceleradas. Ninguém havia previsto a queda do bloco soviético, nem a primavera árabe, como também não se previa a chegada de João XXIII...
Já se passaram três meses, desde sua eleição, e ainda não foi visto nenhum sinal claro no papa Francisco. Não ouvi de sua boca nenhuma mensagem realmente inovadora. O que percebemos é o seu estilo simples, a naturalidade de seu olhar e de sua palavra, sua atitude acolhedora, e isso tudo é o melhor que podemos esperar de uma pessoa, mas para um Papa não basta, falta um projeto de reformas profundas. O que ouvimos de sua boca são palavras de alento, de ternura, de solidariedade com os pobres, e isto é fantástico. Contudo, o que podemos pedir de um Papa, seja qual for? João Paulo II pronunciou discursos e escreveu encíclicas muito boas sobre a justiça, contras as desigualdades, em favor de um modelo diferente do capitalista... Ainda não encontro no papa Francisco novidade alguma, tampouco nesse campo.
O mais inovador e esperançoso na mensagem deste Papa, nesse momento, não é tanto o que disse, mas o que não disse: não falou contra o mundo atual – como faziam frequentemente seus dois predecessores -, acusando-o de relativista, hedonista, materialista, incrédulo...
No entanto, o que mais suscita dúvidas no papa Francisco é, também, o que não disse: em três meses, não disse nada contra a ditadura neoliberal das entidades financeiras e multinacionais (pelo contrário, expressou seus pêsames pela morte de Margaret Thatcher), nem a favor da canonização de dom Romero, da igualdade da mulher na Igreja em todos os campos, da reforma moral sexual ou do Direito Canônico, no que diz respeito aos divorciados, em favor das religiosas dos Estados Unidos ou da reabilitação dos teólogos condenados...
Não disse nada sobre as reformas de fundo, que a meu modo de ver se impõem na Igreja, no mundo de hoje, para além das reformas da Cúria, por mais profundas que estas devam ser e serão. Elas não bastarão.
A reforma de fundo consistiria em reativar o congelado Vaticano II, durante os últimos 35 anos?
Nem sequer isso. Você vai dizer que sou muito maximalista. Concordo. As reformas de fundo não podem ser repentinas, mas acredito que é importante ter claro o horizonte para o qual devemos avançar. Insisto: não bastará “reativar o Vaticano II”. A primeira questão que precisa ser esclarecida é a respeito do estamos falando quando mencionamos o Vaticano II. João Paulo II e Bento XVI repetiram, uma vez e outra, que estavam aplicando o Concílio. O Catecismo da Igreja Católica está cheio de citações do Vaticano II, certamente feitas de forma muito seletiva e enviesada.
Portanto, o problema é sobre qual a leitura que se faz do Concílio. O problema é se ficamos na mera repetição da letra do Vaticano II ou se prolongamos seu espírito. Contudo, o problema também é o próprio Concílio, pois seus documentos são sempre, como não poderia ser diferente naquele momento, formulações de compromisso entre o setor tradicionalista e o setor renovador dos padres conciliares. O problema é que o Vaticano II não formulou, em termos precisos, um novo modelo de Igreja não clerical, nem hierárquica, uma Igreja democrática, nem um novo paradigma teológico pluralista, uma nova maneira de entender os dogmas (em especial, os dogmas cristológicos)... E não disse nada sobre a mulher. E deixou intacto o poder absoluto do Papa e sua infalibilidade...
De tal maneira que a pergunta é: O que ocorre nos documentos do Vaticano II para que, cinquenta anos depois, possam ter desativado, citando o próprio Concílio e em seu nome, os sonhos provocados em muitos? Isso significa que é preciso avançar muito além do lugar em que Vaticano II chegou. Desde então, o mundo mudou muito. Não faz sentido que queiramos reativar o passado. É preciso reinventá-lo e prolongá-lo, seguindo seu impulso, seu espírito.
Em sua avaliação, o que é mais urgente na Igreja?
O mais urgente é que se recupere aquilo que é sua verdadeira entranha: o alento e a compaixão. Que recupere o espírito de Jesus, feito de confiança e de misericórdia. Que volte a escutar da boca de Jesus as palavras que, uma vez e outra, pronuncia nos evangelhos: “Não temais”. Que se volte a ler a parábola do Bom Samaritano e se deixe interpelar e desafiar. Que olhe para as multidões famintas, assim como Jesus, e sinta realmente compaixão, como ele, e se dedique a dar de comer, mais do que a defender dogmas, normas morais e instituições do passado.
Ou seja, o mais urgente é que a própria Igreja se deixe evangelizar em suas pessoas e estruturas e se atreva a transformar profundamente sua teologia e suas instituições, para que possa anunciar, com uma linguagem compreensível, uma palavra de alento ao mundo de hoje, e possa contribuir com todas as suas forças para humanizar, a partir da compaixão com os últimos, de um paradigma ecofeminista, todas as estruturas políticas e econômicas do planeta. Isto também é o mais urgente para o papa Francisco.
Vão deixa-lo fazer as reformas?
Para mim, a pergunta decisiva não é tanto se vão deixá-lo fazê-las, mas se ele próprio desejará fazê-las. Segundo o Direito Canônico e segundo a teologia de todos os que o elegeram, o Papa tem poder absoluto. Que o exerça, então, para fazer as reformas que deseja fazer, caso realmente queira fazê-las. É contraditório ser, como ainda é de fato, um Papa infalível e plenipotenciário, e ceder diante das pressões e poderes exteriores. Pode ser compreendido, mas é uma contradição. É a contradição de todo poder absoluto concentrado numa só pessoa: sendo impossível que o exerça somente uma pessoa - neste caso o Papa -, outros o exercem, mas fora de todo o controle - neste caso a Cúria, mas não somente ela -.
E volto ao que disse antes: não basta um estilo mais simples, uma vida mais austera, uma disposição mais acolhedora e dialogante. A questão é inverter a lógica hierárquica, o modelo vertical e clerical da Igreja e de seus ministérios, o poder absoluto do Papa, o paradigma teológico medieval ainda vigente... Da mesma forma que um Papa impôs, no Vaticano I, os dogmas da infalibilidade e a primazia absoluta do Papa, um Papa pode (e, no meu modo de ver, deve) suprimir esses dogmas e devolver a palavra e o poder ao povo crente. Sem isto, tudo continuará como antes ou, a qualquer momento, poderá voltar a estar, dependendo do Papa que tenhamos.
Em que espaços existirão maiores resistências: no povo, no alto clero...?
Acredito que as maiores resistências, ele encontrará em si mesmo, em seus próprios esquemas teológicos ou em seus medos pessoais. Não digo que a Cúria, o episcopado universal, cuja imensa maioria é muito conservadora, os movimentos eclesiais neoconservadores que possuem imenso poder... não digo que tudo isso não exerça muita pressão para evitar as reformas de fundo, mas o papa Francisco deverá fazer uso de sua sabedoria inaciana e de sua liberdade franciscana para enfrentar as dificuldades com simplicidade e coragem. E com transparência. A transparência seria sua melhor arma contra as tramas na Cúria.
Os movimentos neoconservadores estarão dispostos a dividir espaços na Igreja?
É óbvio que esses movimentos buscam ocupar o máximo espaço de poder na Igreja. Isto, sim, com o argumento do serviço à Igreja e ao mundo atual, tão perdido segundo eles. No entanto, essa não foi a opção de Jesus, nem o seu ensinamento. Os movimentos neoconservadores são inimigos declarados da democracia na Igreja, do pluralismo teológico, da laicidade. Querem abarcar o espaço e o poder. Entretanto, a imposição, o exclusivismo, o privilégio... não são boa notícia, não são sinais do Espírito que habita no coração de todos os seres. Na medida em que esses movimentos continuem se impondo na Igreja institucional, a Igreja irá se tornar um gueto social e cultural. Já está se tornando isto.
Existe ilusão, entre as pessoas e o clero, a respeito do novo Papa?
Acredito que sim. Parece incontestável que sim. E perdão pela insistência, mas isso não me parece decisivo. O decisivo é que o Papa empreenda as reformas de fundo que mencionei antes, sem as quais tudo se resumirá numa questão de estilo e de disposição. E se o Papa seguinte, como este, for eleito por alguns cardeais, e continuar possuindo o poder absoluto, caso seu estilo e sua mentalidade forem diferentes, então, poderá desfazer tudo o que foi feito, recuar o caminho avançado, voltar à Igreja do passado.
Relembremos o papa João XXIII. Ninguém negará seu estilo e seu carisma evangélicos. Abriu portas e janelas secularmente fechadas e deixou que irrompesse adentro um autêntico vendaval; ninguém negará que suscitou na Igreja um imenso movimento renovador... Entretanto, o que se passou, então, para que, sessenta anos depois, estejamos onde estamos? Ou seja, onde estávamos durante sessenta anos, pois, estamos agora celebrando a chegada de um novo Papa, que talvez volte a abrir as portas e janelas? O que ocorreu é que [João XXIII] não adotou as medidas imprescindíveis para que outro Papa não pudesse inverter a situação. Ou seja, enquanto não se implantar na Igreja católica o modelo democrático, enquanto todo o aparato institucional (bispos, sacerdotes...) não se renovar de acordo com este modelo democrático e não clerical, enquanto o Papa não passar a ser uma espécie de Presidente (ou Presidenta) democrático, eleito pelas diversas igrejas por tempo determinado e sem poderes absolutos... a ilusão poderá se transformar em decepção.
E para dizer a verdade, nesse momento, eu não vejo nenhum sinal de que o papa Francisco queira chegar até esse ponto. Ouço-lhe falar de Deus, de Cristo, do pecado e do perdão, dos milagres, da Igreja, da mulher... dentro dos termos tradicionais, mesmo que seja com um tom mais fresco e natural. É uma mudança de clima, mas isto não bastará, pois o clima poderá mudar.
A mudança de clima também chega ou chegará à diocese de São Sebastião e ao seu bispo, dom Munilla?
Parece que sim. A mudança de clima atual pode atingir ou, inclusive, já está atingindo nossa diocese de São Sebastião. De fato – coisa inacreditável, mas certa! -, na tarde do dia 13 de março, quando foi eleito este Papa, a página web oficial da diocese anunciou que havia sido eleito Ángelo Scola e que tinha adotado o nome de Bento XVII..., e assim a versão basca permaneceu, na página web da diocese, até a manhã seguinte. O que ocorreu? Talvez tenha sido alguma informação precipitada, proveniente da Itália. Talvez tenha sido o desejo de que o eleito fosse outro...
A dinâmica do medo na Igreja hierárquica espanhola começa a ser rompida?
Oxalá! Parece que a posição de dom Rouco se fragiliza, por um lado, em razão da sua não distante substituição, mas também pelos novos ares que correm, mesmo que sejam passageiros. Dá a impressão de que vivemos num compasso de espera. Não sei. De qualquer modo, parece que as grandes questões que preocupam o episcopado espanhol, praticamente em todos, são a lei do aborto, o ensino religioso confessional nos centros públicos, o financiamento da Igreja e a isenção do IBI. A batalha do casamento homossexual já deram como perdida, mas, também perderão as outras. É questão de tempo. O Espírito e a Vida são imparáveis.
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“A questão é inverter a lógica hierárquica, o modelo vertical e clerical da Igreja e de seus ministérios”, afirma o teólogo José Arregi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU