24 Junho 2025
"Leão XIV, em seu primeiro discurso em São Pedro, apelou à humanidade para buscar uma paz ‘desarmada e desarmante’, expressando o desejo de trabalhar pela justiça e pela coexistência entre os povos. Não poderia ser mais claro! Essa é a marca da geopolítica vaticana”, afirma o Padre Giulio Albanese, missionário comboniano, conselheiro da Secretaria de Estado, responsável pelas Missões e Comunicações do Vicariato.
A entrevista é de Giacomo Galeazzi, publicada por La Stampa, 22-06-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Que vento sopra no Sul?
Não podemos ignorar o contexto global. A crise ucraniana aprofundou as divisões em nível planetário. O dramático quebra-cabeça da ‘terceira guerra mundial em pedaços’, evocado por anos por Francisco, está se completando hoje na Europa Oriental, no Oriente Médio, em Gaza, e entre Israel e o Irã, com as tensões entre a China e Taiwan no Indo-Pacífico. Não se trata de blocos porque as partes não são coesas, mas de algo pior, mais desfiado e imprevisível. De um lado, as convergências oportunistas, se as tarifas o permitirem, em torno dos EUA e do Ocidente. De outro, os alinhamentos igualmente oportunistas e ambíguos em torno da China e da Rússia do resto do mundo. Em termos numéricos: um oitavo da humanidade contra os outros sete oitavos.
Quais os efeitos geopolíticos?
A minoria dominante se agarra ao seu poder, desafiado pelos outros. A África Subsaariana está pagando o preço mais alto, onde estão crescendo a pressão da pobreza, a falta de inclusão social e de oportunidades de trabalho, a governança fraca e o rápido aumento do custo de vida. O ajuste macroeconômico, as tensões políticas e a frustração social tornam a atmosfera pesada.
No livro Áfricas, Inferno e Paraíso (Editora Lev), que contrastes compila a partir de suas viagens?
O FMI expressou preocupação pela África Subsaariana quanto ao aumento das ‘desordens sociais’. Devemos ser realistas. Em uma macrorregião onde os gastos sociais estão sendo cortados para pagar uma dívida cada vez mais onerosa e onde a alta dos preços está pulverizando o poder de compra, as condições de vida das pessoas comuns serão cada vez mais precárias. A situação tem sido incontrolável desde que os governos africanos substituíram a dívida multilateral de baixo custo e longo prazo por dívidas muito mais onerosas e de curto prazo com credores privados (seguradoras, bancos, fundos de investimento, fundos de private equity). Assim, a dívida foi financeirizada e o pagamento de juros está vinculado a atividades especulativas nos mercados internacionais. As finanças especulativas, no entanto, consideram um país altamente endividado como pouco confiável e, consequentemente, o obrigam a pagar mais pelo dinheiro. Pelo menos quatro vezes mais do que os países economicamente avançados pagam. Para os países africanos, isso se traduz não apenas na ausência de assistência social, mas também de infraestrutura (estradas, escolas, hospitais), necessária para combater a pobreza e iniciar o desenvolvimento que garantiria a restituição do empréstimo recebido.”
Por que isso não acontece?
Hoje, os custos das mudanças climáticas absorvem mais de 5% do PIB da África, aumentando a dívida. A Cop29 em Baku não nos torna otimistas. A África é associada pela grande mídia a males mais ou menos obscuros: guerras, carestias, epidemias esquecidas. Mas a África é muito mais. Além de suas belezas naturais, um pôr do sol de tirar o fôlego e infinitas riquezas naturais, é um recipiente poliédrico de sabedorias ancestrais, um lugar de paixões, riquezas culturais e artísticas, uma galáxia de etnias composta de rostos com suas histórias. É necessária uma descentralização narrativa. Agonia, deriva, beco sem saída da globalização, lastro geopolítico? A África sabe como otimizar as situações extremas. Vamos superar os estereótipos que a tornam a trágica metáfora da pobreza e distinguir entre problemas econômicos e sociais e o drama da pobreza.
O senhor fundou a principal agência missionária de informação (Misna). Como isso muda a história sobre a África?
A África não é pobre, mas empobrecida; não implora por beneficência ou por caridade hipócritas e interesseiras, mas por justiça. Mergulhei nas profundezas do continente: nas culturas, nas aldeias, nas favelas, conhecendo pessoas que inventam o seu cotidiano. São as Áfricas: o plural é melhor para um continente três vezes maior que a Europa. Terras submersas, invisíveis não só aos olhos dos estrangeiros, mas também às elites locais, funcionais aos mecanismos camuflados de uma globalização invasiva e de especulações inescrupulosas.
O Ocidente é cúmplice?
O desafio é reparar o fosso entre as vítimas da marginalização social e econômica e aqueles que atuam como agentes locais de interesses ‘extra-africanos’. Essa é a mensagem que tento transmitir ao descrever um continente com um crescimento demográfico exponencial. A população africana está aumentando exponencialmente. Em 1950, era de 221 milhões de pessoas. Agora é de 1,5 bilhões. Portanto, em apenas sete décadas, aumentou 640%. Mas o crescimento não termina aí. Segundo as previsões da ONU, os africanos serão dois bilhões e meio em 2050: um quarto da população mundial. A idade média na África hoje é de vinte anos. Em menos de trinta anos, os europeus representarão apenas 5%. Portanto, a demografia africana desempenha um papel fundamental.
Por que afeta o mundo?
O boom demográfico africano assumirá proporções tais que forçará as populações urbanas a mudarem sua forma de sobrevivência. A cooperação entre o Norte e o Sul do mundo será indispensável. Para se manter competitiva na economia real, precisará de recursos humanos africanos. É necessário um pacto migratório euro-africano que restitua a dignidade à mobilidade humana, prevenindo todas as formas de tráfico de pessoas, governando os fluxos, respeitando o valor da vida. Não podemos mais pensar apenas em preservar o espaço de nossos interesses pessoais ou nacionais. Primeiro Francisco e agora Leão apelam ao bem comum, ao senso de comunidade, a um ‘nós’ aberto à fraternidade universal.
O que sabemos sobre a África?
A narrativa pública do continente se baseia em uma narrativa esporádica, parcial e preconceituosa. O foco na Europa está na imigração por mar da costa africana e no controle de fronteiras. Mas as verdadeiras razões da mobilidade humana não são explicadas, com particular referência aos eventos que se sucedem nos países de origem dos migrantes, frequentemente palco de tragédias indizíveis. Nas relações Norte-Sul, devemos construir pontes. Leão XIV apela à assunção de responsabilidades e a solidariedade vai além da lógica paternalista da filantropia. Devemos reconhecer que nós e eles temos um destino comum.
Qual é o papel da China?
A China conseguiu conquistar a simpatia da África, ao contrário de muitos Estados europeus, implementando uma política empresarial que a torna presente hoje em todos os países do continente. Mas isso não significa que não seja uma forma invasiva de fazer negócios.
E o plano Mattei?
Como missionário, se a Itália quiser ajudar a África, só posso ficar feliz. O ativismo das empresas italianas também é positivo, desde que aconteça em conformidade com as regras. O governo italiano e a Europa devem adotar uma atitude diferente em abordar e resolver os problemas sistemáticos e estruturais do continente. Caso contrário, os problemas apenas serão procrastinados. Devemos ser corresponsáveis e não olhar para as nações africanas com superioridade ou desejo de supremacia. A ajuda é útil, mas o desafio é a informação, a primeira forma de solidariedade.