30 Novembro 2022
O “século XXI africano” era um mito. O boom das commodities passou e os lucros estão no exterior. Juros internacionais em alta elevam o peso da dívida e a inflação de alimentos. Há saídas. Exigem coragem para desafiar a ortodoxia econômica.
O artigo é de Ndongo Samba Sylla, publicado por Montly Review e reproduzido por Outras Palavras, 25-11-2022. A tradução é de Antonio Martins.
Ndongo Samba Sylla é um economista de desenvolvimento senegalês que trabalha na Fundação Rosa Luxemburgo, em Dakar. Ele é autor de The Fair Trade Scandal (“O Escândalo do Comércio Justo, em tradução livre”). Marketing Poverty to Benefit the Rich e foi co-autor de A última moeda colonial da África: A História do Franco CFA. Também editou Soberania Econômica e Monetária para a África do século XXI, Movimentos Revolucionários na África e Imperialismo e a Economia Política da Dívida do Sul Global.
A contínua pilhagem dos recursos naturais da África, drenados pela fuga de capitais, está começando outra vez. Mais nações africanas enfrentam recessões prolongadas em meio à crescente pressão da dívida, como se alguém esfregasse sal em feridas profundas do passado. Agora com muito menos divisas, receitas fiscais e espaço político para enfrentar choques externos, muitos governos africanos acreditam que têm pouca escolha a não ser gastar menos, ou fazer novos empréstimos em moedas estrangeiras.
A maioria dos países africanos está lutando para lidar com crises alimentares e energéticas, inflação, taxas de juros mais altas, eventos climáticos adversos, menos sistemas de proteção social e de saúde. Os protestos estão aumentando, devido à deterioração das condições, apesar de alguns aumentos nos preços das commodities africanas.
Após “décadas perdidas” do final dos anos 1970, a África tornou-se uma das regiões de crescimento mais rápido do mundo no início do século XXI. O alívio da dívida, um boom no preço das matérias-primas e outros fatores pareciam apoiar a narrativa enganosa da “ascensão da África”.
Mas ao invés da transformação econômica há muito esperada, o continente tem visto crescimento sem emprego, o avanço das desigualdades econômicas e mais transferências de recursos para o exterior. A fuga de capitais – recursos saqueados através de bancos estrangeiros – tem sangrado a África.
De acordo com o Painel de Alto Nível sobre Fluxos Financeiros Ilícitos da África, o continente está perdendo mais de 50 bilhões de dólares anualmente. Isto se deve principalmente ao que é chamado eufemisticamente de “erro de faturamento comercial”. As exportações são subfaturamento; e as importações, superfaturadas, o que permite transferir moedas fortes ao exterior sem que haja entrada correspondente de produtos.
As empresas transnacionais (TNCs) e as redes criminosas são responsáveis por grande parte deste dreno de excedentes econômicos africanos. Os países ricos em recursos são mais vulneráveis à pilhagem, especialmente onde a entrada e saída de capitais foram liberalizadas.
Programas de ajuste estrutural (SAPs, em inglês) impostos externamente, após as crises de dívida soberana do início dos anos 1980, forçaram as economias africanas a se abrirem ainda mais – o que teve enorme custo econômico. Os SAPs tornaram os países ainda mais dependentes das importações (em especial de alimentos) e ao mesmo tempo aumentaram sua vulnerabilidade aos choques de preços das commodities e aos fluxos de liquidez global.
O economista Leonce Ndikumana, do Burundi, e seus colegas estimam que mais de 55% da fuga de capitais – definida como aquisição ou transferência ilegal de ativos – da África provêm de nações ricas em petróleo, sendo que só a Nigéria perdeu US$ 467 bilhões entre 1970 e 2018. Ndikumana é atualmente membro do Comitê de Políticas de Desenvolvimento das Nações Unidas e autor de diversos livros sobre a sangria de recursos na África.
Durante o mesmo período, ele estima, Angola perdeu 103 bilhões de dólares. Sua taxa de pobreza aumentou de 34% para 52% na última década, já que o número de pobres mais do que dobrou – de 7,5 para 16 milhões.
Os lucros do petróleo foram desviados pelas corporações transnacionais e pela elite angolana. Abusando de sua influência, a filha do ex-presidente, Isabel dos Santos, adquiriu uma enorme riqueza. Um relatório encontrou mais de 400 empresas em seu império comercial, incluindo muitas em paraísos fiscais.
De 1970 a 2018, a Costa do Marfim perdeu 55 bilhões de dólares devido à fuga de capitais. Embora produza 40% do cacau mundial, recebe apenas 5 a 7% dos lucros, o que achata as remunerações dos agricultores. A maior parte da renda do cacau vai para as multinacionais, políticos e seus assessores.
O gigante da mineração África do Sul (SA) perdeu 329 bilhões de dólares para a fuga de capitais nas últimas cinco décadas. Super e sufaturamento, além de outras formas de desvio de recursos públicos e evasão fiscal engordaram a riqueza privada escondida em centros financeiros offshore e paraísos fiscais.
A “austeridade” fiscal retardou o crescimento do emprego e a redução da pobreza no “país mais desigual do mundo”. Na África do Sul, os 10% mais ricos possuem mais da metade da riqueza do país, enquanto os 10% mais pobres possuem menos de 1%.
Com este padrão de pilhagem, países africanos ricos em recursos – que poderiam ter acelerado o desenvolvimento durante o boom das commodities – agora enfrentam o problema da dívida, desvalorização das moedas e a inflação importada, à medida em que os bancos centrais elevam as taxas de juros internacionais.
O default de Zâmbia, que deixou de pagar as prestações de sua dívida externa no final de 2020, fez manchetes. Mas a captura estrangeira da maioria das receitas de exportação de cobre do país não é reconhecida. Entre 2000 e 2020, a remessa ao exterior das rendas sobre o investimento estrangeiro direto em Zâmbia foi o dobro dos juros da dívida pública ou garantida pelo Estado. Em 2021, o déficit na conta de capitais da balança de pagamentos do Zâmbia era de 12,5% do PIB.
Como os pagamentos de juros da dívida externa pública chegaram a “apenas” 3,5% do PIB, a maior parte deste déficit (9% do PIB) foi devida a remessas de lucros e dividendos, bem como pagamentos de juros da dívida externa privada.
Para o FMI, Banco Mundial e as “nações credoras”, a “reestruturação” da dívida está condicionada à continuidade de tal pilhagem. O agravamento do endividamento externo dos países africanos deve-se em parte à falta de controle sobre as receitas de exportação controladas pelas transnacionais, com o apoio da elite africana.
A pilhagem de recursos por meio de fuga de capitais leva ao desespero da dívida externa. Invariavelmente, o FMI exige “austeridade” governamental e abertura das economias africanas aos interesses das transnacionais. Assim, completa-se um círculo – e, de fato, é vicioso…
A pilhagem da riqueza da África remonta aos tempos coloniais, e mesmo antes, com o comércio atlântico de africanos escravizados. Agora, o processo é viabilizado pela ação de interesses transnacionais que criam as regras e respectivas brechas. O trabalho envolve banqueiros, contadores, advogados, gerentes de investimentos, auditores e outros atravessadores. Assim, as origens da riqueza dos “indivíduos muito bem relacionados”, das corporações e dos políticos são disfarçadas, e sua transferência para o exterior “lavada”.
A fuga de capitais não se deve principalmente a escolhas “normais” de portfólio de investimentos por parte de especuladores africanos. Por isso, é improvável que taxas de juros mais altas, oferecidas pelos Estados, revertam o processo. Pior ainda: tais medidas políticas desestimulam os investimentos domésticos necessários.
Além de aplicar controles de capital eficientes, é importante fortalecer as capacidades dos órgãos nacionais especializados — como alfândegas e órgãos de supervisão financeira e anticorrupção.
Os governos africanos precisam de regras, estruturas legais e instituições mais fortes para conter a corrupção e garantir uma gestão mais eficaz dos recursos naturais. Por exemplo, os tratados bilaterais de investimento e códigos de investimento precisam ser revistas; e os contratos de petróleo, gás, mineração e infra-estrutura, renegociados
Os registros de todos os investimentos em indústrias extrativas, o pagamento de impostos por todos os envolvidos e o processo público devem ser abertos, transparentes e responsáveis. A punição de crimes econômicos deve ser rigorosamente aplicada, com penas dissuasivas.
O público em geral – especialmente organizações da sociedade civil, autoridades locais e comunidades impactadas – também deve saber quem e o que está envolvido nas indústrias extrativas.
Somente um público informado, capaz de saber o quanto é extraído e exportado; por quem; que receita os governos obtêm e seus efeitos sociais e ambientais, pode manter as corporações e os governos sob controle.
Melhorar a transparência do comércio internacional e das finanças é essencial. Isto requer o fim do sigilo bancário e uma melhor regulamentação das corporações transnacionais, para refrear as fraudes no faturamento comercial e os preços de transferência, que abrem as portas para o roubo e pilhagem de recursos.
A retórica da OCDE culpa há muito tempo a fuga de capitais para paraísos fiscais offshore em ilhas tropicais remotas. Mas os paraísos fiscais em países ricos – como Reino Unido, EUA, Suíça, Holanda, Cingapura e outros – são os maiores e mais movimentados.
Parar a a pilhagem de recursos africanos negando cobertura para transferências ilícitas deveria ser uma obrigação dos países ricos. O intercâmbio automático de informações relacionadas a impostos deve se tornar verdadeiramente universal, para acabar com a cobrança indevida do comércio, abusos nos preços de transferência e ocultação de riqueza roubada no exterior.
A tributação unitária das empresas transnacionais pode ajudar a acabar com os abusos fiscais, incluindo a evasão e a fraude. Mas as propostas da Estrutura Inclusiva da OCDE favorecem seus próprios governos e interesses corporativos.
A África não é inerentemente “pobre”. Ao contrário, tem sido empobrecida por fraudes e pilhagens que levam à transferência de recursos para o exterior. Um esforço sério para acabar com isso exige o reconhecimento de todas as responsabilidades e culpabilidades, nacionais e internacionais.
As veias da África estão abertas. O sangramento dos séculos precisa parar.
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As veias da África, abertas de novo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU