12 Mai 2022
“Tínhamos nos iludido de que a globalização apagaria as feridas do passado. Não é assim. Num mundo que volta a ser bipolar - Ocidente e Oriente - as potências hegemônicas aspiram a expandir a sua esfera de influência na África, arrebatando-a aos seus adversários, para apropriar-se de recursos e territórios: hoje como ontem, as guerras são travadas através de interpostas nações, geralmente fora do radar da grande mídia. Os conflitos no continente escondem enormes interesses envolvendo atores internacionais. Mas a guerra na Ucrânia nos lembra mais uma vez que não podemos nos dar ao luxo de ignorar crises que nos parecem distantes. O mundo está todo interligado”, escreve Marco Trovato, editor da Revista Africa, em artigo publicado por Africa, 11-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Se a guerra na Ucrânia mergulhou o mundo em um novo clima de Guerra Fria, a África corre o risco de voltar a ser um grande teatro de conflitos. Não há mais ideologias contrapostas, permanecem os objetivos expansionistas de quem quer colocar as mãos no continente: petróleo, gás, minerais preciosos, terras férteis. Tínhamos nos iludido de que a globalização apagaria as feridas do passado. Não é assim.
Divisão política da África (Fonte Wikimedia Commons)
“O que fazemos ou deixamos de fazer na África no próximo ano ou dois terá grandes consequências para os anos vindouros. Acreditamos que a África talvez seja o maior campo de manobra na competição em escala mundial entre o bloco comunista e o mundo não comunista”.
Assim, em março de 1962, no início da década da independência, Kennedy esclareceu o lugar que este continente ocuparia no tabuleiro de xadrez internacional. Desde então, por três décadas, os Estados Unidos e a União Soviética marcaram sua contraposição política e militar no território africano, favorecendo e alimentando conflitos que semearam morte, destruição e instabilidade. As duas superpotências usaram grupos rebeldes e exércitos de libertação como peões em um jogo mortal onde as vítimas eram as populações civis. Hoje - sessenta anos depois das palavras de Kennedy - a história parece se repetir. Se a guerra na Ucrânia mergulhou o mundo em um novo clima de Guerra Fria, a África corre o risco de se tornar novamente um grande teatro de conflito. Não há mais ideologias contrapostas, permanecem os objetivos expansionistas de quem quer colocar as mãos no continente: petróleo, gás, minerais preciosos, terras férteis.
Os efeitos já são evidentes: a Líbia está em pedaços, fora do controle do governo de Trípoli, à mercê de milícias apoiadas por forças estrangeiras; no Sahel refém da ameaça jihadista, os soldados de Moscou ocuparam o espaço libertado pela retirada dos militares franceses, acusados pelas populações locais de terem defendido os interesses de Paris nos últimos anos em detrimento da estabilidade e segurança. Não é por acaso que um terço dos países africanos se absteve na votação com que a Assembleia da ONU condenou a invasão da Ucrânia. E nos levam a refletir as manifestações de apoio aos soldados russos (vistos como libertadores do jugo neocolonial) de Bamako a Bangui.
Região que divide o continente africano e que abrange vários países desde a costa do Oceano Atlântico até o Mar Vermelho. (Foto: wikimedia | creative commons)
Tínhamos nos iludido de que a globalização apagaria as feridas do passado. Não é assim. Num mundo que volta a ser bipolar - Ocidente e Oriente - as potências hegemônicas aspiram a expandir a sua esfera de influência na África, arrebatando-a aos seus adversários, para apropriar-se de recursos e territórios: hoje como ontem, as guerras são travadas através de interpostas nações, geralmente fora do radar da grande mídia. Os conflitos no continente - África Central, Mali, Burkina Faso, Sudão do Sul, Somália, Etiópia (Tigray), Rd Congo (Kivu e Ituri), Moçambique (Cabo Delgado) - escondem enormes interesses envolvendo atores internacionais: EUA, China, União Europeia, Rússia, Turquia, países do Golfo. Mas a guerra na Ucrânia nos lembra mais uma vez que não podemos nos dar ao luxo de ignorar crises que nos parecem distantes. O mundo está todo interligado.
África subsaariana (Fonte: Wikimedia Commons)
A própria África está sofrendo as repercussões da crise no coração da Europa: em 2021, os países subsaarianos importaram cereais e alimentos da Rússia por 4 bilhões de dólares e da Ucrânia por 3 bilhões de dólares.
O boom dos preços das commodities favorece os exportadores de hidrocarbonetos (como Nigéria, Argélia, Angola), mas ao mesmo tempo inflama a inflação de bens de primeira necessidade em todos os lugares, agravando as tensões sociais e fomentando revoltas. É no continente africano, longe dos holofotes, que serão desencadeados os efeitos mais nocivos do cabo-de-guerra dos “grandes” da Terra.
A geopolítica mundial será redesenhada a partir do desfecho desse embate, mas já sabemos que as vítimas serão civis sem culpa e sem defesas.
No dia 20 de julho (quarta-feira), às 10h, o Prof. Dr. Felwine Sarr ministrará a conferência Afrotopia, Ética e Economia. “Habitar o mundo” no Antropoceno. A atividade integra o Ciclo de Estudos Decálogo sobre o fim do mundo.
Afrotopia, Ética e Economia. “Habitar o mundo” no Antropoceno
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EUA-Rússia: a África redesenhada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU