07 Mai 2020
Ele é um dos intelectuais mais importantes do continente africano. Desde o início da pandemia de Coronavírus, o economista e escritor Felwine Sarr coloca a sua experiência a serviço do plano de resiliência econômica e social ativado pelo governo senegalês. Em entrevista à TV5 Monde, o autor do ensaio Afrotopia (2016) e coautor do relatório sobre a restituição das obras do patrimônio cultural africano (2018), oferece uma análise sem concessões da crise em curso.
A entrevista com Felwine Sarr foi editada por Oumy Diallo, apresentada pela TV5 Monde em 02-05-2020, e publicada por Settimana News, 05-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Você está em Dakar, Senegal, desde o início da pandemia. Qual é a situação?
No geral, as medidas de segurança são respeitadas. Na rua, a maioria das pessoas usa máscara. Mesmo nos transportes públicos, segue-se nessa direção. Infelizmente, em locais públicos que não foram fechados, como alguns mercados, pequenos restaurantes ou salões de chá, é difícil respeitar o distanciamento social. Nos supermercados, apesar da sinalização, alguns encontram maneiras de não respeitar as regras. Realmente há trabalho a ser feito para que as pessoas concordem em colocar espaço entre os corpos. Porque a proximidade é cultural.
A África continua sendo o continente menos afetado em termos de mortes e casos de Covid-19. No entanto, as previsões dos órgãos internacionais são alarmistas ...
Isso mostra a persistência do afro-pessimismo. Temos pouco mais de 200 mil mortes por coronavírus em todo o mundo. A África chora entre 935, de acordo com a OMS, e 1.598, de acordo com o Centro de Prevenção e Controle de Doenças da União Africana [em 30 de abril passado - Ndr]. Então, estamos bem atrás. É interessante comparar o Senegal com os EUA, dois países que experimentaram o primeiro caso mais ou menos na mesma época. A diferença na propagação do vírus e na resposta política é forte.
Agimos imediatamente, enquanto nos EUA tergiversaram. A Europa viu a crise vir da Ásia sem se preparar para enfrentá-la, exceto os países do norte, Alemanha e Portugal. Mas as representações negativas sobre a África são tão arraigadas que ninguém mais se preocupa em olhar para a realidade. E quando a realidade contradiz as representações, estas são movidas para o futuro. Mesmo que o continente esteja se saindo bastante bem, é preciso prever uma catástrofe. É difícil admitir que a África diante do Covid-19 esteja trabalhando bem. A narrativa mais recente afirma que talvez na África não tenhamos uma catástrofe, mas que no final iremos morrer de fome por causa da crise econômica. A mesma imagem pessimista sempre retorna.
Existe uma dificuldade em reconhecer que alguns países africanos podem gerir melhor a emergência atual do que as grandes potências mundiais?
Sim, é um racismo estrutural que é ignorado. Há algo reconfortante em ter sempre a sensação de que estamos melhor organizados, mais preparados que os outros. Os europeus se preocupam conosco, enquanto neste momento somos nós que nos preocupamos com eles. Se a OMS chama a África para "acordar", enquanto em outros lugares está ocorrendo uma hecatombe (Tedros Adhanom Ghebreyesus, Diretor Geral da OMS em 18 de março - Ndr), eu me pergunto quem é que deveria acordar! Porque nós não estamos dormindo, muito pelo contrário. A melhor resposta que a África pode dar é enfrentar seus próprios desafios, sem perder tempo respondendo àqueles que não querem ver as evidências.
Você é signatário de um texto publicado na revista Jeune Afrique, em que a atual crise sanitária é descrita como "uma oportunidade histórica para os africanos, colocar em movimento suas inteligências (...), reunir seus recursos endógenos, tradicionais, da diáspora, científicos, novos, digitais, sua criatividade ...”. Trata-se de um belo desejo ou de uma realidade concreta?
A África é vasta, por isso me limito a falar sobre o Senegal. Desde o início da crise, os estudantes universitários criaram grupos de trabalho de acordo com as diferentes competências. Criamos um em economia para antecipar o impacto da crise no mundo dos transportes, dos turismos, do comércio, da cultura e do setor informal, que está muito exposto neste momento. Pensamos em algumas medidas que o Estado poderia adotar para garantir às pessoas uma renda mais duradoura e estável. Nos reunimos com o Ministro da Economia para lhe oferecer nossa ajuda.
Agora estamos trabalhando no plano de resiliência econômica e social lançado pelo presidente da República, Macky Sall, em 3 de abril. Essa sinergia também ocorreu nas áreas de direito, da gestão, da ciência e da medicina. Parece-me uma excelente demonstração do impacto que a sociedade civil pode ter. Enquanto o mundo previu o pior para nós, estávamos trabalhando para dar uma resposta adequada às especificidades das nossas sociedades.
A crise modificou o olhar dos africanos sobre o Ocidente?
Muitos entenderam que o Eldorado europeu não existe. Vários senegaleses imigrantes na Itália retornaram ao auge da crise. Aqueles que não tinham documentação se arriscaram, sem garantia de poder voltar. Consideraram que era melhor para eles estar no Senegal. Como membros da classe social menos protegida, na Europa pertencem aos grupos mais vulneráveis. Certamente as sociedades ocidentais têm seus pontos fortes e seu progresso. Mas hoje também seus limites apareceram com toda a evidência.
Para um grande número de países, surge a questão da forte dependência da China. Isso também é verdade na África, onde a China é o primeiro parceiro comercial?
A China é um importante parceiro comercial, mas não somos dependentes dela. Como não deslocalizamos em massa, portanto o problema da realocação não aparece. No âmbito dos economistas, o debate gira em torno das novas orientações de nossas economias. Como reestruturá-las e torná-las menos dependentes das matérias-primas? Como criar no local indústrias que permitam alcançar a autossuficiência alimentar? Do ponto de vista estratégico, o setor da saúde deve absolutamente ser independente. Porque quando não há mais comércio internacional, os países fecham suas fronteiras e administram seus estoques. Após essa crise, teremos que trabalhar nesse aspecto.
O G20 concordou em suspender a dívida de 76 países de baixa renda por um ano, entre os quais 40 países africanos. O que você acha disso?
Eu tenho uma opinião diferenciada. Ao analisar as coisas do ponto de vista da renda monetária, fala-se que essa opção possa oferecer algum fôlego. Havia aproximadamente US $ 44 bilhões a serem pagos neste ano e os países interessados poderão reinvesti-los nos fundos para combater o Covid-19. Mas do ponto de vista estrutural, a África não é excessivamente endividada. O continente, de fato, possui uma dívida de 60% do PIB, totalmente sustentável. Entre os 15 países mais endividados do mundo, existem algumas grandes potências econômicas como o Japão (em primeiro lugar com uma dívida igual a 238% do seu PIB), os EUA (105%) ou a França (100,4%) … No volume total, a dívida africana representa aproximadamente 500 bilhões de dólares, ou seja, 0,2% da dívida global. O problema é que a "dívida africana" se tornou uma espécie de totem. Uma ideia nunca questionada e que se perpetua.
De fato, as palavras não correspondem à realidade. Após a Ação internacional em favor dos países pobres endividados (Heavily Indebted Poor Countries Iniatiative, HIPC), do final dos anos 1990, e da Iniciativa de Alívio da Dívida Multilateral (MDRI), de 2005, os países africanos se depararam com índices muito baixos de dívida/PIB (o Senegal atingiu 20%). Nos anos seguintes, os mesmos países voltaram a endividar-se rapidamente: nos últimos 10 anos, a relação dívida/PIB dobrou ou, em alguns casos, até triplicou, sem exceder os limites da sustentabilidade. No entanto, esse crescimento criou no imaginário coletivo o mito da África que "afunda" sob a sua dívida. Mas a realidade não é absolutamente essa.
Como você explica a persistência desse mito?
Boa pergunta ... Basta fazer uma pesquisa no Google sobre índices de dívida/PIB para obter uma confirmação. A dívida é uma das minhas áreas de pesquisa e escrevi vários artigos científicos sobre o tema. Para entender, é preciso procurar no lugar certo. Nossos países têm dificuldade em mobilizar imposições fiscais consideráveis e investimentos adequados. Quando na Europa vocês se endividam, fazem isso para tornar sua economia mais produtiva, gerando recursos que depois permitirão o reembolso. Economicamente, a dívida não é um problema se permanecer sob controle, ou seja, se for bem investida.
Infelizmente, alguns estados africanos estão aproveitando a crise para jogar com o que chamo de "política da compaixão", pedindo o cancelamento de sua dívida. Mas a África não deveria estender a mão. Precisamos mudar de perspectiva. Vamos assumir nossas dívidas, pagá-las, geri-las adequadamente e parar de pedir um cancelamento a cada 20 anos.
Qual é a principal lição a ser tirada da atual crise?
Vivemos no mesmo mundo e compartilhamos um destino comum. Essa crise é a do antropoceno. Sabemos que é uma consequência dos nossos estilos de vida, que vem disso, da devastação da biodiversidade e da redução do habitat das espécies não humanas. Nenhum de nós será poupado de uma crise climática de grandes proporções. A pandemia está mostrando a necessidade radical de mudar nossa relação com ecologia, consumismo, excessos econômicos e industriais. Por outro lado, após a parada dessa corrida insana, as cidades respiram melhor e alguns animais estão reaparecendo.
No nível social, a crise revelou fraturas sociais de maneira impressionante. Mas não devemos ser idealistas. Para alguns, existe a tentação de retomar com decisão a mesma vida. Para compensar o tempo perdido, os pontos de crescimento, manter de pé um determinado sistema social e econômico ... Se um desejo de mudança está realmente presente, precisará ser expresso de maneira concreta, por meio da ação social e com a força coletiva.
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A crise desmente o afro-pessimismo. Entrevista com Felwine Sarr - Instituto Humanitas Unisinos - IHU