24 Mai 2025
"Leão XIV tem mantido uma preocupação de resguardar a unidade, e para tanto, precisa manter as 'rédeas' da igreja, sobretudo no âmbito ad-intra, salvaguardando os valores mais estabelecidos, e evitando ousadias no campo da pastoral"
O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo e colaborador do IHU e do Canal Paz e Bem.
Faustino Teixeira (Foto: Ricardo Assis/UFJF/divulgação)
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
Vivemos um momento novo na igreja católica com a presença do papa Leão XIV. Como mostrou Marco Politi, a sua eleição significou uma clara derrota dos segmentos ultra-conservadores presentes no conclave, e a escolha de um cardeal que igualmente veio do “fim do mundo”, decisivamente orientado para dar prosseguimento à renovação eclesial. Sua eleição foi facultada pela aliança entre os segmentos curiais moderados e o núcleo de cardeais “atentos à tradição mas abertos à necessidade de prosseguir gradualmente com as reformas eclesiais” em curso[1]. A eles soma-se o singular arco dos purpurados do Sul global, indicados por Francisco.
Ainda é cedo para fazer previsões definitivas sobre a sua presença no Vaticano, mas já podemos apontar algumas questões e indídícios do exercício de seu magistério como bispo de roma. Em artigo publicado no dia 19 de maio de 2025 no jornal italiano La Stampa, o teólogo Vito Mancuso apontou três eixos fundamentais que podem ser captados neste momento inicial do pontificado do papa Prevost [2]. São eles a inquietação, a unidade e o amor. Acho bem pertinente essa intuição de Mancuso com base no que estamos vendo até agora.
De fato, também percebo a presença desses três eixos que vão delineando a marca de um pontificado. Na homilia de entronização de Leão XIV, na Praça de São Pedro, esses elementos estiveram claramente presentes. O papa começou sua reflexão falando de inquietação, com base em passagem das Confissões de Agostinho: “Fizeste-nos para ti, e o nosso coração não encontra repouso enquanto não repousa em ti”. Na conclusão de sua homilia, a questão vem retomada: de uma igreja que se deixa inquietar-se pela história.
Essa reflexão sobre a inquietação, me faz lembrar uma passagem muito rica do papa Francisco quando esteve no Brasil e numa de suas homilias, na Basílica do Santuário Nacional de Aparecida (24/07/2013), falou de três simples posturas que se colocam para a igreja: manter acesa a esperança, deixar-se surpreender por Deus e viver na alegria [3]. Acho essa homilia no Brasil um dos pontos altos da reflexão de Francisco. Quando o papa Leão XIV fala em inquietação, eu logo relaciono a questão com o “deixar-se surpreender por Deus” de Francisco. Estar inquieto é estar desperto e atento para ouvir os clamores de Deus na história, e sobretudo o grito dos pobres e da Terra. Uma igreja que vive aberta à inquietação, é uma igreja que se quer aberta ao mundo e à história. Vejo esse desafio como essencial. Isso foi muito bem percebido por Mancuso.
Porém, o desafio da inquietação deve ser, segundo Leão XIV, contrabalançado pela busca da Unidade. E aí vem, então, a tentação de manter regulada a igreja no domínio da tradição. Trata-se da busca de um equilíbrio, mas caso realizado sem perspicácia pode engessar a igreja num caminho difícil. Leão XIV tem mantido uma preocupação de resguardar a unidade, e para tanto, precisa manter as “rédeas” da igreja, sobretudo no âmbito ad-intra, salvaguardando os valores mais estabelecidos, e evitando ousadias no campo da pastoral.
As duas primeiras homilias de Leão XIV foram bem enquadradas, em linha de tradicionalidade: as duas foram celebradas sobretudo em Latim, com exceção das homilias [4]. E estavam igualmente ali todas as insígnias visíveis de ligação com o passado. Na homilia da primeira missa, dirigida aos cardeais eleitores, a visão teológica do papa tanto sobre Jesus como a igreja não revelou nenhuma novidade ou ousadia. O que vimos ali, foi o claro influxo de Leão Magno, e uma preocupação de fidelidade ao Concílio de Calcedônia: a visão de um Jesus divinizado e de uma igreja como arca essencial da salvação.
Como mostrou Mancuso em seu artigo, o “ponto crítico” do papa Prevost vai ser a forma como ele conseguirá solucionar a questão dessas duas dimensões: a inquietações do mundo e a unidade da igreja. Em síntese, “como se abrir às inquietudes do mundo e garantir a unidade da igreja”. Aqui entra a marca agostiniana do novo pontífice. Em semelhante linha de reflexão, o vaticanista Marco Politi, no seu blog, pontua que Leão XIV vai atuar como um “arquiteto”, buscando equilibrar os traços reformadores do pontificado de Bergoglio com o seu estilo particular, fiel à sua cultura teológica agostiniana, voltada a salvaguardar o “depósito da fé” [5].
Todos sabemos da visão tremendamente negativa da teologia da história de Agostinho: de um tecido marcado pelo peso do pecado original. Para Agostinho, quando o ser humano se deixa entregue a si mesmo, não consegue senão pecar. Toda a humanidade vem, assim, entendida como uma “massa damnata”, cujo único remédio é a graça de Deus. O pessimismo de Ratzinger deve-se, também, ao influxo de Agostinho: não nos esqueçamos. Essa visão agostiniana acaba por frear qualquer tentativa de avança pastoral que possa provocar “danos” à unidade da igreja.
Em matéria publicada ontem – 18/05/25 – no O Globo [6], pudemos acompanhar as reflexões de Maria Clara Bingemer e Maria José Rosada, onde falaram sobre essa orientação agostiniana presente no novo papa, e suas possíveis consequências no âmbito da pastoral: com respeito ao tema das mulheres na igreja, a visão tradicional da família, a resistência aos desafios relacionados à comunidade LGBTQIA+ etc.
A esperança está, a meu ver, no imperativo essencial do amor, uma questão também muito presente na reflexão e, sobretudo, no testemunho de Prevost, reforçado por toda uma rica experiência no Peru. O seu carinho com os pobres, os migrantes, os desvalidos, pode ser, em verdade, o polo decisivo de seu compromisso pastoral nos próximos anos. Foi o que pudemos verificar igualmente no momento de abertura do pontificado, quando o papa se apresentou ao povo na sacada da Praça de São Pedro [7]. Ali vimos um bispo sensível, que começou falando da urgência da paz, de uma paz desarmada, humilde e perseverante. E de forma bonita, em espanhol, dedicou palavras singelas à sua comunidade no Peru. Ali ocorreram sinais de profecia, de um olhar atento a questões essenciais como os migrantes, os excluídos, os que sofrem e anseiam por alegria.
Aí está, a meu ver, a possível surpresa de um pontificado atento aos sinais dos tempos. Trata-se do desafio de “deixar-se surpreender” pelos mistérios de Deus e firmar com tenacidade a aliança entre o Amor e a Inquietação com o ritmo do mundo. De forma vibrante, ao final de sua homilia na missa inaugural, bradou Leão XIV: “Irmãos, irmãs, esta é a hora do amor! A caridade de Deus, que faz de nós irmãos, é o coração do Evangelho”.
[1] - Marco Politi. Ecco il programma di Papa Leone XIV: pace, unità e una stoccata agli ultra-conservatori: Leia aqui (acesso em 20/05/2025) - a tradução brasileira pode ser conferida aqui
[2] - Vito Mancuso: Leone XIV e il cuore inquieto della Chiesa aperta al mondo: Leia aqui (acesso em 19/05/2025) - a tradução brasileira pode ser conferida aqui
[3] - PALAVRAS do papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 23-26 (Santa Missa na Basílica do Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida).
[4] - Leia aqui. (acesso em 19/05/2025).
[5] - Marco Politi. Ecco il programma di Papa Leone XIV.
[6] - Yhayz Guimarães. Orientação agostiniana de papa levanta dúvidas entre progressistas. In: O Globo, 18/05/2025 – Mundo, p. 26
[7] - Leia aqui. (acesso em 19/05/2025)