21 Mai 2024
O ataque do Hamas contra Israel em 07-10-2023 e a subsequente guerra de Gaza abalaram o mundo judaico, no qual se manifestaram posições muito diferentes em relação ao Médio Oriente e outros temas. Discutimos isso com os autores de dois importantes livros: o demógrafo Sergio Della Pergola, da Universidade Hebraica de Jerusalém, que acaba de publicar Essere ebrei, oggi, e Gad Lerner, cujo livro Gaza: odio e amore per Israele será lançado em 21 de maio.
A entrevista com Sergio Della Pergola e Gad Lerner é de Antonio Carioti, publicada por em La Lettura em 19-05-2024 A tradução é de Luisa Rabolini.
Sergio Della Pergola — Vou começar com uma metáfora futebolística: Lerner é um fino analista de uma partida que ele assiste das arquibancadas; eu sou um modesto jogador no gramado.
De fato, moro em Israel, enquanto Gad, apesar de frequentar o estado judaico, não está na condição de quem tem parentes envolvidos na campanha militar em Gaza e de vez em quando tem que correr para o abrigo porque chovem mísseis. Além disso o livro de Lerner é uma pesquisa qualitativa que relata vozes selecionadas por ele, enquanto o meu discurso é quantitativo, baseia-se nas opiniões de um público anônimo. Coletamos tendências análogas, mas as conclusões não são necessariamente as mesmas.
Gad Lerner — Para ficar na metáfora esportiva, devo expressar minha admiração pelo meia Della Pergola que atua no campo como protagonista em Israel, onde assumiu posições muito críticas em relação ao governo de Benjamin Netanyahu. Mas ele sabe bem que agora a distinção entre judeus israelenses e judeus da diáspora tornou-se muito confusa. Meus pais nasceram lá, meus filhos moraram lá, tenho parentes no exército e outros que recusam o alistamento.
Sentimos as mesmas ansiedades e as mesmas angústias. Lembro-me da hesitação de Primo Levi, em 1984, prestes a publicar as suas severas críticas a Israel. “De lá vão me escrever: é muito cômodo nos dar uma lição, judeu italiano sentado numa poltrona! Mas depois, com calma, Primo Levi não recuou. Até a argumentar que, para o bem de Israel, o centro de gravidade do judaísmo devia retornar para a diáspora, guardiã da linha da tolerância. Hoje, diante do perigo de uma desnaturação do sionismo, cabe a nós, que amamos Israel, discordar publicamente.
Chegamos ao tema da relação entre a diáspora judaica no mundo e o Estado de Israel.
Sergio Della Pergola — Há um distanciamento mútuo entre Israel e os judeus estadunidenses, os mais numerosos da diáspora: o fenômeno se acentua bastante nas gerações mais jovens, como demonstram os protestos a favor da Palestina nas universidades nos Estados Unidos. Quanto ao judaísmo italiano, vejo um quadro muito diferenciado: não faltam críticas razoáveis e motivadas contra a operação em Gaza, mas também há figuras que assumem posições inaceitáveis, negando toda legitimidade a Israel. Em suma, a diáspora parece-me profundamente dividida, assim como a sociedade no estado judaico.
Gad Lerner — O judaísmo estadunidense e italianos são difíceis de comparar: mais de seis milhões de pessoas nos Estados Unidos; pouco mais de 20 mil na Itália. Recentemente estive em Nova York, onde meu filho Davide obteve seu mestrado em jornalismo na Universidade de Columbia, uma instituição com forte presença judaica, depois de ter trabalhado durante três anos no jornal “Haaretz” de Telavive.
Impressionou-me viver a divisão descrita por Della Pergola. Israel deveria perguntar-se por que sua reputação é tão controversa no país que é seu amigo mais próximo. E se a Casa Branca vive com crescente constrangimento a relação com Netanyahu, chama a atenção a crescente rejeição entre os jovens, incluindo muitos judeus estadunidenses. Basta dizer que no acampamento de protesto na Universidade de Columbia, depois desmontado pela polícia, não poucos estudantes e professores comemoraram a ceia da Páscoa judaica em meio a bandeiras palestinas.
E na Itália?
Gad Lerner — O judaísmo italiano tem tradições antigas, mas é numericamente pequeno. Pelo menos em aparência, não vive a dialética interna que a guerra em Gaza exacerbou noutros lugares. A sua representação institucional tem como titular exclusivo a União das Comunidades Judaicas - Ucei, cujos porta-vozes são eleitos pelos inscritos, muitas vezes após disputas acaloradas que, no entanto, permanecem apenas internas.
Além disso parece vigorar uma regra férrea que eu não compartilho: estamos com quem governa Israel, seja quem for e faça o que fizer. Nos boletins da Ucei posições judaicas de crítica à condução da guerra em Gaza nem sequer são relatados. Em relação aos dissidentes chovem acusações de traição, é proibido denunciar os erros de Israel.
Como julgar hoje a política do Estado judaico?
Sergio Della Pergola — Em primeiro lugar, é preciso distinguir entre a sociedade de Israel e o governo em exercício, enquanto o discurso que prevalece sobre esses temas, muito decepcionante, tende a achatar tudo. Quando se generaliza dizendo “vocês israelenses”, cai-se num abismo de preconceito.
O governo de Netanyahu emergiu de uma longa crise política em que os eleitores foram chamados às urnas cinco vezes. Nisso pesou também o sistema eleitoral proporcional, que é um pouco a mãe de todas as desgraças. Estamos diante de uma hegemonia da direita que, embora com importantes interrupções, já dura há quase trinta anos. E temos assistido a uma involução gravíssima da política, também devido à mistura entre os interesses públicos e aqueles privados do primeiro-ministro.
Mas parte de Israel rebelou-se.
Sergio Della Pergola — Durante 2023, até 7 de outubro, surgiu um movimento que demonstrou surpreendente maturidade e consciência civil ao se opor a famigeradas reformas governamentais que colocavam em perigo o Estado de direito. Isso demonstra que generalizar é errado.
É correto acusar Israel de ter removido a questão palestina?
Sergio Della Pergola — Houve atrasos e erros, atribuíveis não só a Netanyahu, mas também a muitos de seus antecessores. Tudo começou com a Guerra dos Seis Dias de 1967. Na época eu estava em Jerusalém, onde havia começado os estudos para meu doutorado. Ainda me lembro do estrondo dos tiros de canhão perto do campus e a corrida para os abrigos subterrâneos. Aquele conflito criou problemas geopolíticos ainda hoje não resolvidos. Mas lembro-me que em 1967 a opinião mais difundida era que Israel deveria devolver os territórios conquistados em troca do reconhecimento dos
Países árabes. Mas não foi assim: a paz foi alcançada com o Egito e a Jordânia, mas os acordos de Oslo com Yasser Arafat foram uma grande decepção.
O Estado judaico não tem responsabilidade?
Sergio Della Pergola — A posição de Israel mudou significativamente ao longo do tempo em sentido nacionalista. A esquerda quase desapareceu, o centro tomou o seu lugar e se fortaleceu muito a direita, aliás, cresceram forças ultranacionalistas e messiânicas que hoje fazem parte do governo. Netanyahu, por sua vez, tem convicções ideológicas, mas fundamentalmente é um pragmático: criado nos Estados Unidos, gosta do luxo e tem pouco em comum com seus concidadãos. Em certo sentido representa um anacronismo. A ele se deve a escolha de não ter uma contraparte séria: para não tratar com a Autoridade Nacional Palestina, favoreceu o Hamas, ferrenho inimigo da Anp, com o resultado que vimos em 7 de outubro. Foi um grave erro estratégico, de consequências desastrosas.
Gad Lerner — Quando os historiadores olharão de longe para a longa história do conflito árabe-israelense, acredito que deixarão de usar a expressão Guerra dos Seis Dias. É preciso falar de guerra dos 57 anos. Em 1967 eu era criança e me lembro das emoções daqueles dias, quando o presidente egípcio Nasser ameaçava jogar no mar todos os israelenses. Isso voltou à memória recentemente enquanto conversava com o palestino Bassam Aramin da associação Parents Circle, da qual fazem parte pais árabes e israelenses que perderam filhos no conflito. Ele teve sua filha morta na frente da escola por um soldado. Bassam lembrou os seus sete anos de prisão no Estado judaico e disse: “Na minha cela me interessei pelo Holocausto, para entender melhor os meus inimigos. Entendi que estamos destinados a conviver; que não faz sentido jogar no mar os judeus...até porque sabem nadar e certamente voltariam."
Não é um caso isolado?
Gad Lerner — Na realidade, as pessoas que pensam assim, dos dois lados, são muito mais do que parece. Mitificar a capacidade tecnológica e militar, coisa que Israel fez, revelou-se um erro. Prolongar a ocupação dos territórios palestinos por mais de meio século, uma desgraça além de uma desonra. Netanyahu até pode ser uma personalidade anacrônica, como diz Della Pergola, mas se ele se tornou o primeiro-ministro mais longevo da história de Israel é precisamente porque encarna a convicção, enraizada mas equivocada, de que a paz nunca poderia ser feita com os palestinos: se lhes der um dedo, eles pegam a mão; se conceder um pedaço de terra para criar um estado, o transformarão num posto avançado terrorista. Então negamos que eles sejam uma nação, o mundo árabe é grande, eles que se mudem para outro lugar. Aqui estão as raízes do fanatismo de ambos os lados.
É uma lógica baseada na força.
Gad Lerner — Numa entrevista concedida antes de 7 de outubro, Netanyahu teorizava que a história não favorece os virtuosos e que a superioridade moral não garante a sobrevivência. Analisando agora, essa visão cínica da história explica o inaceitável massacre de civis e os crimes perpetrados em Gaza para responder ao massacre e à humilhação de 7 de outubro. Tenho a crença oposta: se o judaísmo soube perpetuar-se ao longo dos séculos, apesar da dispersão e das perseguições, isso se deve justamente à capacidade de não se desviar dos seus códigos morais. É preciso manter um pensamento crítico e a visão universalista da Bíblia, que são exatamente o oposto do exclusivismo e do tribalismo. Confiando apenas na força, Netanyahu conduziu Israel a um beco sem saída.
Sergio Della Pergola — Acredito que Netanyahu herdou o pessimismo do pai, um historiador muito frustrado, estudioso do judaísmo espanhol e português na época das expulsões em massa daqueles países. Certamente a ideia de que apenas a força conta na história está errada: todos os impérios mais poderosos, mais cedo ou mais tarde, desapareceram. Israel não pode isolar-se no culto da eficiência militar.
Deve cultivar alianças, encontrar apoios, olhar em primeiro lugar para os Estados Unidos, que com Joe Biden imediatamente se alinharam ao seu lado depois de 7 de outubro.
Gad Lerner — Aliás, naquela época o presidente estadunidense advertiu os israelenses: não repitam os erros que nós cometemos depois do 11 de setembro.
Sergio Della Pergola — Ele tinha razão. Israel não deve perder a capacidade autocrítica, que falta neste governo, mas não na sociedade civil. As pesquisas mostram que a grande maioria dos cidadãos considera que Netanyahu deveria renunciar.
Mas teria sido possível a Israel reagir de outra forma ao 7 de outubro?
Sergio Della Pergola — O Estado Judeu é censurado por não ter respondido de modo proporcional. Mas a reação dos anglo-americanos às agressões sofridas na Segunda guerra mundial, com os bombardeios de Dresden e Hiroshima, acaso respeitou tal critério? É preciso entender se em certas condições históricas é possível chegar a um compromisso com o inimigo ou se é necessário derrotá-lo para que nunca mais possa ressurgir.
Gad Lerner — A comparação com o nazismo refere-se aos palestinos?
Sergio Della Pergola — Não aos palestinos, mas ao Hamas, cujo estatuto evoca os Protocolos dos sábios de Sião, famigerado texto antissemita, e exorta à matança dos judeus citando um ditado islâmico clássico. Aquele documento, portanto, não visa apenas cancelar Israel, mas é dirigido contra os judeus como tais.
Gad Lerner — Pelas pesquisas realizadas em todo o mundo árabe resulta que mais de 80% dos entrevistados negam que Israel tenha o direito de existir. Que consequência queremos tirar disso?
Prepararmo-nos para um inevitável choque de civilizações, como defende uma específica direita que vê em Israel o posto avançado do Ocidente?
Sergio Della Pergola — Rejeito a ideia de Israel como posto avançado de qualquer coisa. Mas existe um radicalismo islâmico que não só considera o Estado judaico provisório, mas aspira a reconquistar todas as terras que já foram muçulmanas, incluindo Espanha e Sicília. Além disso, resulta de outra pesquisa, realizada em Gaza e na Cisjordânia, que cerca de 90 por cento da população aplaude o ataque de 7 de outubro, enquanto uma maioria mais limitada, mais de 60 por cento na Cisjordânia e mais de 50 em Gaza, querem uma Palestina governada pelo Hamas. Em suma, os fundamentalistas islâmicos desfrutam de forte apoio.
Voltemos ao ponto da proporcionalidade.
Sergio Della Pergola — Literalmente não é um princípio viável. Que retaliação poderia ser proporcional às atrocidades cometidas pelo Hamas? Em vez disso, trata-se de pôr um fim à corrente político-militar que produziu aquelas atrocidades e que demonstrou também riqueza e eficiência: as fortificações subterrâneas de Gaza são uma obra-prima que custou bilhões de dólares, que poderiam ter sido usados para aliviar as dificuldades da população palestina.
Gad Lerner — Enquanto o Hamas construía os túneis, os governantes israelenses sabiam que o estava fazendo.
Sergio Della Pergola — Certamente não quero diminuir as responsabilidades de Netanyahu. Mas ele não foi o único que falhou: deveriam sair todos os ministros, junto com os líderes militares e dos serviços segredos. Ou sabiam e são irresponsáveis. Ou não sabiam e são incapazes. Mas não aceito que os judeus sejam acusados de serem vingativos e cruéis. O objetivo deve ser evitar que o 7 de outubro se repita: infelizmente, isso causa dolorosos danos colaterais aos civis, mesmo que Israel tenha tentado limitá-los. Mas há esconderijos do Hamas nos telhados de casas e das escolas, há armas nas gavetas e nos freezers dos apartamentos. Nessas condições, parece-me que o exército israelense esteja se comportando melhor do que fazem os russos na Ucrânia ou fizeram os estadunidenses no Vietnã. E, em qualquer caso, nunca acreditar nas estatísticas sobre as vítimas fabricadas pelo Hamas: eu as examinei como demógrafo e não se sustentam. As perdas civis - crianças, mulheres, idosos - existem e entristecem.
Mas fica a necessidade de derrotar uma organização terrorista que ainda está de pé.
Gad Lerner — Mas então a operação em Gaza deveria se prolongar e intensificar, produzindo, portanto, ainda mais vítimas civis?
Sergio Della Pergola — Não é necessariamente assim. É preciso pensar de cabeça fria e definir uma estratégia eficaz. Hoje Israel enfrenta um dilema: libertar os reféns e destruir o Hamas são objetivos incompatíveis, porque obter o segundo significa comprometer o primeiro. Eu seria a favor da suspensão das operações militares em troca da libertação de todos os prisioneiros.
Gad Lerner — Se essa é a conclusão, com a qual concordo, pergunto-me se para chegar nisso se deveria esperar tantos meses e tantos horrores, que mancharam a reputação de Israel e provocaram seu isolamento internacional. Hoje, o Estado judaico corre o risco de ser visto pelos seus próprios aliados como um obstáculo, pela forma como caiu na armadilha armada pelo Hamas, que antes levou a cabo o massacre de 7 de outubro, depois exortou a população de Gaza a submeter-se ao sacrifício. Na primeira Intifada, de 1987 a 1993, morreram aproximadamente mil palestinos em seis anos: na época foram suficientes para chegar a uma abertura em relação a Arafat e aos acordos de Oslo. Agora os mortos são dezenas de milhares em poucos meses. E a solidariedade com Israel evaporou rapidamente.
Mas que alternativa havia depois do 7 de outubro?
Gad Lerner — Israel poderia e deveria ter respondido de forma diferente ao ataque terrorista, em vez de se abandonar ao reflexo pavloviano da retaliação maciça que não é suficiente para extirpar o Hamas. Poderia ter sido aberta uma negociação para a libertação dos reféns envolvendo os países árabes, poderiam ter sido tomadas ações pontuais, evitando reduzir Gaza a escombros.
Mas os Acordos de Abraão mantêm-se.
Gad Lerner — O escritor israelense David Grossman definiu-os, com razão, como “a paz dos ricos". Era míope pensar que um acordo entre o Estado judaico e os potentados árabes do Golfo fosse suficiente para segurar o caldeirão fervente de sofrimento vivido por milhões de deserdados. Assim se prolonga a guerra, enquanto seria necessário reconhecer imediatamente o direito à autodeterminação dos palestinos. A solução “dois povos, dois estados” será muito complicada para implementar, exigirá soluções territoriais e jurídicas específicas. Mas é mais realista do que a Palestina sem sionistas pregada pelo Hamas e do Grande Israel perseguido pelos colonos sionistas religiosos. Caso contrário, voltaremos a repetir o famoso episódio bíblico que teve como palco justamente Gaza: onde Sansão cometeu suicídio, arrastando consigo para a morte todos os filisteus, isto é, os ancestrais dos palestinos.
Sergio Della Pergola — Eu concordaria se houvesse uma contrapartida confiável. Tempo atrás com alguns intelectuais israelenses e palestinos nos fechamos numa sala durante dois dias e preparamos um tratado de paz: um documento no qual colocávamos as premissas para a conclusão do conflito. Um acordo é, portanto, possível. Exceto que entre os palestinos as vozes razoáveis são poucas e marginalizados: todas as pessoas que envolvi acabaram em desgraça.
O extremismo prevalece?
Sergio Della Pergola — Especialmente o mundo palestino está profundamente dividido. Na Cisjordânia está o presidente idoso e em declínio, Abu Mazen, e após a sua morte existe o risco de um banho de sangue pela sucessão. Marwan Barghouti é muito popular, mas cumpre várias penas de prisão perpétua numa prisão israelense. Gaza, por sua vez, é uma realidade à parte, muito distante da Cisjordânia em vários aspectos. Neste momento, eu veria positivamente uma solução de três Estados, que faça de Gaza e da Cisjordânia duas entidades soberanas separadas com Israel no meio. Mas é claro que é necessário que no acordo participem as potências regionais, em primeiro lugar a Arábia Saudita e, naturalmente, os Estados Unidos. A Europa poderia desempenhar um papel se existisse, mas não é assim. A premissa necessária é uma radical mudança política em Israel, com a definitiva saída de cena de Netanyahu e o advento de uma liderança que enfrente os problemas com espírito realista.
Vamos concluir sobre o problema do antissemitismo.
Gad Lerner — No livro Della Pergola aponta que a memória do Holocausto se tornou a primeira motivação com a qual os judeus definem hoje a sua identidade. Não era assim na geração anterior. Meus pais não falavam sobre o Holocausto em casa, embora a família tivesse sido terrivelmente marcada. Eu tive que descobrir por mim mesmo, como adulto, o que havia acontecido e não tinham me contado. Portanto, estou bem consciente da propensão de combinar o Holocausto e os acontecimentos de Israel.
Mas considero contraproducente, além de injusto, ligar ao antissemitismo novecentista, ou até mesmo a um eterno antijudaísmo, a hostilidade que Israel está atraindo. Claro que é uma bobagem dizer que o antissemitismo é causado por Netanyahu, visto que sempre existiu, mas o primeiro-ministro israelense parece fazer de tudo para alimentá-lo. É indigesto, eu sei, mas deveríamos ter a coragem para dizer que hoje o antissemitismo não é o problema principal. Não podemos nos preocupar apenas com nós mesmos. É justo manter alta a vigilância contra o ódio antijudaico, perpetuar a memória do Holocausto. Mas o nosso desafio é encontrar uma posição diferente nos conflitos contemporâneos, propor um equilíbrio, um sentido de justiça, a partir do Médio Oriente, na linha judaica da tolerância de que falava Primo Levi.
Sergio Della Pergola — A memória do Holocausto foi reprimida por muito tempo, para reaparecer mais tarde por volta dos anos 1970. E hoje está muito presente também entre os jovens. Para os judeus a questão do extermínio e aquela de Israel estão estreitamente ligadas: você toca uma e desperta a outra, como num reflexo condicionado.
Gad Lerner — Aconteceu também em 7 de outubro.
Sergio Della Pergola — Nos momentos de crise se chega à exasperação. E devo dizer que a crise atual desencadeou uma onda de intolerância para com os judeus. Falam-se e escrevem-se impunemente coisas que anos atrás seriam impensáveis: houve um enorme declínio no discurso público.
A hostilidade para com os judeus preocupa você?
Sergio Della Pergola — O antissemitismo tem três componentes. Em primeiro lugar, se direciona contra o judeu como pessoa, considerado um elemento poluente da sociedade.
Em segundo lugar, tende a diminuir o Holocausto, acusando os judeus de tê-lo inflado para usá-lo em seu próprio benefício. Finalmente nega a legitimidade do Estado de Israel, argumentando que os judeus não são uma nação e não têm direito à soberania política.
Esses três elementos são indivisíveis, não podem ser separados uns dos outros, como se tenta fazer. Afinal, basta ver as diferentes reações que despertam os comportamentos de Israel em Gaza em comparação com aqueles da Rússia na Ucrânia. Lembram se houve manifestações nas universidades ocidentais contra Vladimir Putin? O critério não é o mesmo e isso levanta grandes questionamentos.
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Israel e a diáspora. Uma identidade rasgada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU