22 Janeiro 2024
"O processo, ainda mais que uma eventual condenação, fala-se, pode constituir um instrumento eficaz de pressão sobre Israel para que interrompa o massacre de civis que está realizando em Gaza", escreve Roberto Della Seta, jornalista, historiador e político italiano, em artigo publicado por Il Manifesto, 20-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
É justo processar Israel por genocídio perante a Corte Internacional de Justiça de Haia, como pediu e conseguiu o governo sul-africano? As respostas, na discussão destas últimas semanas, se movem em vários níveis.
Um primeiro nível é o da ética, escreveu sobre isso Roberta De Monticelli nestas páginas. Em Haia, escreve De Monticelli, a humanidade “está numa encruzilhada entre o abismo e a esperança, entre a brecha dessa simbólica reafirmação da prevalência do direito internacional sobre o poder dos Estados e a espiral de uma política de poder que já quebrou em todo o mundo, onde teve oportunidade, os vínculos legais transformando-se em guerra". Compartilho a esperança e observo que, com esse critério, a Corte de Haia deveria submeter a processo algumas dezenas de países (incluídos vários daqueles que apoiam a iniciativa da África do Sul).
Um segundo nível é aquele do direito. Acredito que a guerra travada por Israel em Gaza se insira certamente, em muitos dos seus aspectos, na categoria de crimes de guerra, e acredito também que “genocidas” sejam as intenções manifestadas publicamente pelos ministros mais “extremistas” do governo Netanyahu; mais incerto, parece-me, é estabelecer que a ação de Israel em Gaza pertença à tipologia jurídica do genocídio, para a qual - na definição dada pelo seu criador oitenta anos atrás, Raphael Lemkin, referindo-se ao Holocausto, e ainda adotada no direito internacional – o que caracteriza um ato de extermínio como genocídio é em primeiro lugar a intencionalidade do objetivo de aniquilar completamente ou em parte grupos nacionais, matando sistematicamente os seus componentes pela única razão deles fazerem parte.
Um terceiro nível é o do resultado político concreto. O processo, ainda mais que uma eventual condenação, fala-se, pode constituir um instrumento eficaz de pressão sobre Israel para que interrompa o massacre de civis que está realizando em Gaza. Também aqui compartilho a esperança, mas me pergunto se o efeito não será o oposto no caso, não impossível, de uma absolvição.
Depois há ainda um quarto nível, menos mencionado que os outros, mas que considero importante: diz respeito à linguagem. Nesse âmbito, a palavra genocídio lembra outra também usada no debate público sobre o que está acontecendo em Israel/Palestina: a palavra holocausto evocada para qualificar o ataque terrorista perpetrado pelo Hamas em 7 de outubro. É fundamentado, é benéfico, esse uso tendencialmente extensivo - certamente extensivo em relação ao significado original - de conceitos “exigentes” como genocídio e holocausto? Acredito que não. A escolha de recorrer a expressões "fortes" para adjetivar eventos de extraordinária tragicidade, como o ataque do Hamas de 7 de outubro, com seu terrível seguimento de vítimas civis e outros civis tomados como reféns, e como são os bombardeios arrasadores israelenses num território - a Faixa de Gaza - entre os mais áreas densamente povoados do mundo, responde a uma exigência que é legítima em si: fazer com que a percepção desses fatos, no debate público e mediático, seja moralmente inaceitável.
E, no entanto, esse alargamento semântico do perímetro conceitual de genocídio e de holocausto contém, tipicamente, um risco de heterogeneidade dos fins. A linguagem contribui muito para moldar a opinião das pessoas: dar nomes tão "definitivos" a acontecimentos trágicos, a práticas de guerra e de terrorismo certamente a serem estigmatizadas, mas que se colocam abaixo do “conteúdo de sentido” que deu origem a esses nomes, corre o risco de gerar um efeito oposto ao da "dramatização". Corre-se o risco de diluir a percepção dos dois conceitos num “caldo” de situações corriqueiras.
Quis deixar de fora destas breves considerações, tentando “objetivá-las”, toda referência às tantas intersecções que ligam os juízos de cada um sobre o que acontece em Israel/Palestina com a "questão judaica" nas suas várias explicitações: antissemitismo, sionismo e antissionismo... Mas também acabo propondo uma intersecção semântica que liga as duas esferas de avaliação: vejo o risco, como pelo exterminador nazista Eichmann retratado por Hannah Arendt que, cada vez mais desgastados, genocídio e holocausto acabem por se assemelhar a uma cinzenta e indistinta “banalidade do mal”.
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Genocídio e holocausto não podem se tornar uma indistinta “banalidade do mal”. Artigo de Roberto Della Seta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU