11 Novembro 2023
O historiador italiano Enzo Traverso está preocupado com os efeitos devastadores da utilização da memória do Holocausto para justificar a “guerra genocida” travada pelo exército israelense em Gaza. Este uso indevido poderá provocar um “aumento espetacular” do antissemitismo que já começa a aparecer em alguns lugares.
A entrevista é de Joseph Confavreux e Mathieu Dejean, publicada por Mediapart e reproduzida por Correspondencia de Prensa, 07-11-2023. A tradução é do Cepat.
O historiador italiano Enzo Traverso, especialista em totalitarismo e política da memória, ensina história intelectual na Universidade de Cornell (Estados Unidos). De passagem por Paris, o autor de La violencia nazi (ed. La Fabrique, 2002), El fin de la modernidad judía (FCE, 2014), Melancolia de esquerda (Editora Âyiné, 2. ed., 2022) e As novas faces do fascismo (Editora Âyiné, 2. ed., 2023), analisa nesta entrevista os efeitos potencialmente devastadores da utilização da memória do Holocausto para justificar a “guerra genocida” travada pelo exército israelense em Gaza.
Ao mesmo tempo que denuncia o terror de 7 de outubro, apela para não cair na armadilha armada pelo Hamas e pela extrema direita israelense, que levaria à destruição de Gaza e a uma nova Nakba. Ele argumenta que “podemos denunciar o terror de 7 de outubro sem apoiar uma guerra genocida travada sob o pretexto do ‘direito legítimo de Israel de se defender’”.
Em “O Fim da Modernidade Judaica”, você defendia a ideia de que, depois de terem sido uma sementeira de pensamento crítico no mundo ocidental, os judeus se encontravam, numa espécie de inversão paradoxal, do lado da dominação. O que está acontecendo hoje confirma o que você escreveu?
Infelizmente, o que está acontecendo hoje parece-me confirmar as tendências subjacentes que analisei, e essa confirmação não é nada agradável. Nesse livro, demonstrei que a entrada dos judeus na modernidade no final do século XVIII se baseava numa antropologia política específica. Essa minoria dispersa deparou-se com uma modernidade política moldada pelo nacionalismo, que os via como um corpo estranho, sem solução em nações concebidas como comunidades étnicas e territoriais.
No início do século XX, embarcados na secularização do mundo moderno após a emancipação, os judeus encontravam-se numa situação paradoxal: por um lado, distanciaram-se progressivamente da religião, abraçando com entusiasmo as ideias herdadas do Iluminismo; por outro, enfrentaram a hostilidade de um ambiente antissemita. Como resultado, tornaram-se um foco de cosmopolitismo, universalismo e internacionalismo. Eles abraçaram todas as correntes de vanguarda e incorporaram o pensamento crítico. No meu livro, faço de Trotsky, um revolucionário russo que viveu a maior parte da sua vida no exílio, a figura emblemática deste judaísmo disperso, inconformista e contrário ao poder.
O panorama mudou após a Segunda Guerra Mundial, após o Holocausto e o nascimento de Israel. Evidentemente, o cosmopolitismo e o pensamento crítico não desapareceram e permaneceram características do judaísmo. Na segunda metade do século XX, porém, outro paradigma judaico ganhou destaque, cuja figura emblemática é Henry Kissinger: um judeu alemão exilado nos Estados Unidos que se tornou o principal estrategista do imperialismo americano.
Com Israel, o povo por definição cosmopolita, disperso e universalista, tornou-se a fonte do Estado mais etnocêntrico e territorial que se possa imaginar. Um Estado que foi construído com base em guerras contra os seus vizinhos, concebendo-se como um Estado exclusivamente judeu – isto está consagrado numa das suas leis fundamentais desde 2018 – e que se coloca como meta a expansão do seu território à custa dos palestinos. Considero isso uma importante virada histórica, que assinala dois polos antinômicos do judaísmo moderno. A guerra em Gaza confirma que o nacionalismo mais brutal, xenófobo e racista guia agora o governo israelense.
Por outro lado, a ofensiva do Hamas de 7 de outubro funcionou como uma poderosa reativação da memória em Israel, ao ponto de hoje o Holocausto ser utilizado para justificar os massacres de Gaza. Como podemos preservar uma memória judaica que não seja explorada desta forma? É possível reativar o primeiro judaísmo de que você falava?
O que está acontecendo pode obscurecer consideravelmente o nosso panorama cultural, intelectual e de memória. Posso compreender as fortes reações emocionais pelo que aconteceu em 7 de outubro, mas elas não devem sufocar a necessária contextualização e compreensão racional. Hoje não estamos em condições de analisar a situação com a distância crítica necessária; a história é sempre escrita depois dos fatos, mas algumas coisas são bastante claras.
Por um lado, o ataque perpetrado pelo Hamas no dia 7 de outubro foi um massacre atroz que nada pode justificar. Por outro lado, o que ocorre hoje em Gaza tem as características de um genocídio que deve ser detido: uma população de 2,5 milhões de pessoas está presa num território sujeito a intensos bombardeamentos, privada de eletricidade, gás, alimentos, água e medicamentos. As suas infraestruturas têm sido sistematicamente destruídas. Um milhão de civis foram forçados a se deslocar para o sul de Gaza, onde continuam a ser bombardeados. Os hospitais estão paralisados e o desespero reina por toda parte.
Tenho consciência de que o conceito de genocídio não pode ser utilizado levianamente, que pertence ao campo jurídico e está pouco adaptado às ciências sociais, que sempre foi utilizado politicamente para estigmatizar inimigos ou defender causas comemorativas. É verdade, mas o conceito existe, e a única definição normativa que temos, a da Convenção das Nações Unidas de 1948, corresponde à situação atual em Gaza.
Em tal situação, evocar o Holocausto torna-se uma fonte permanente de mal-entendidos. A instrumentalização da memória do Holocausto não é nova. Hoje ela é usada para legitimar a guerra em Gaza. Quando o Holocausto é evocado, é para apresentar o antissemitismo como a chave para explicar o 7 de outubro e para se assombrar, e até mesmo indignar, com a onda de solidariedade com os palestinos que se manifestaram massivamente no Sul global.
É claro que o 7 de outubro foi um massacre horrível, mas descrevê-lo como o maior pogrom da história depois do Holocausto é sugerir que existe uma continuidade entre os dois. Isto leva a uma interpretação bastante simplista: o que aconteceu em 7 de outubro não foi a expressão do ódio gerado por décadas de violência sistemática e pilhagem sofrida pelos palestinos; foi um novo episódio na longa sequência histórica do antissemitismo, que vai do antijudaísmo medieval à Shoah, passando pelos pogroms do Império Czarista. O Hamas seria, portanto, o enésimo avatar do eterno antissemitismo. Esta leitura torna a situação ininteligível, cristaliza antagonismos e serve para legitimar a resposta de Israel. Há alguns anos, Netanyahu declarou que se Hitler executou a Shoah foi porque foi aconselhado a fazê-lo pelo Grão-Mufti de Jerusalém.
Quais poderiam ser as consequências dessa interpretação para a memória do Holocausto? Não existe também o risco de um ressurgimento do antissemitismo?
Sim, esse risco existe: uma guerra genocida travada em nome da memória do Holocausto só pode ofender e desacreditar essa memória, com o resultado de legitimar o antissemitismo. Se não se colocar fim a esta campanha, ninguém poderá falar do Holocausto sem suscitar desconfiança e incredulidade; muitos acabarão por acreditar que o Holocausto é um mito inventado para defender os interesses de Israel e do Ocidente. A memória da Shoah como “religião civil” dos direitos humanos, do antirracismo e da democracia seria reduzida a nada.
Esta memória serviu de paradigma para construir a memória de outras formas de violência em massa, desde as ditaduras militares na América Latina até o Holodomor na Ucrânia e o genocídio dos tutsis em Ruanda... Se esta memória fosse identificada com a estrela de Davi que lidera um exército que comete um genocídio em Gaza, as consequências seriam devastadoras. Todos os nossos pontos de referência se confundiriam, tanto epistemológica como politicamente.
Entraríamos num mundo em que tudo é equivalente e as palavras não teriam mais valor. Toda uma série de referências que constituem a nossa consciência moral e política – a distinção entre o bem e o mal, a defesa e o ataque, o opressor e o oprimido, o carrasco e a vítima – poderia ser seriamente prejudicada. A nossa concepção de democracia, que não é apenas um sistema de leis e arranjos institucionais, mas também uma cultura, uma memória e um conjunto de experiências, ficaria enfraquecida. O antissemitismo, historicamente em declínio, experimentaria um ressurgimento espetacular.
Você mora nos Estados Unidos, mas conhece muito bem a França e a Alemanha, onde existe um grande sentimento de culpa na sociedade pelo que aconteceu aos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Como você interpreta as reações dos governos desses países?
Nos Estados Unidos, o contexto lembra mais a Guerra do Vietnã do que o Holocausto, porque os Estados Unidos estão diretamente envolvidos na guerra de Gaza. Já não se trata de acusar as potências ocidentais de cumplicidade por omissão, porque permaneceram passivas diante do extermínio dos judeus ou, no caso da França, porque olharam para o outro lado durante o genocídio dos tutsis em Ruanda. A situação já não é a mesma: uma guerra genocida está sendo travada em Gaza com a aprovação dos representantes das potências ocidentais, que viajaram para Tel Aviv para dar o seu apoio a Israel.
Os Estados Unidos enviaram dois porta-aviões ao Mediterrâneo oriental para tranquilizar o Tsahal. Todos repetem que Israel tem o direito de se defender respeitando o direito humanitário internacional, quando Israel viola este direito há décadas e é evidente que não está sendo respeitado em Gaza. Israel atua com o apoio militar e financeiro dos Estados Unidos. Assim como na Guerra do Vietnã, as pessoas manifestam-se porque sabem que os Estados Unidos têm o poder de parar esta guerra. Acredito que a magnitude dos protestos americanos também se deve à maior consciência da desigualdade e da discriminação racial que se desenvolveu em todo o país por conta do Black Lives Matter.
Na França, várias manifestações foram proibidas, mas a oposição à guerra também é generalizada. Deve-se notar que o Sul global não está apenas se manifestando diante das embaixadas israelense e americana, mas também diante das embaixadas francesas. As reportagens da Al Jazeera zombam de Macron, que um dia apela a uma coligação internacional contra o Hamas e no outro a uma coligação de ajuda humanitária, sem nunca indicar quem faria parte dessas coligações, como agiriam e com que meios. Tudo parece uma improvisação infeliz e bastante lamentável. Aqueles que esperavam que a França adotasse uma postura mais independente e digna, como a de Chirac em 2003 com a guerra do Iraque, ficaram profundamente decepcionados.
Na França, La France Insoumise (LFI) foi acusada de antissemitismo por quase todas as forças políticas. As suas palavras tornaram-se inaudíveis quando se recusou a chamar o Hamas de terrorista. Que leitura você faz desse episódio?
É uma grande cortina de fumaça, uma operação midiática. É bastante lamentável usar esta tragédia para acertar contas políticas. Pode-se criticar uma ou outra posição dos deputados da LFI, a única força política representada na Assembleia Nacional que se opõe claramente a esta guerra, mas acusá-los de antissemitismo é simplesmente grotesco.
Quando se trata de terrorismo, algumas coisas bastante simples precisam ser ditas. Em primeiro lugar, existe uma hipocrisia extraordinária por parte dos países ocidentais que se recusam a negociar com o Hamas porque é uma organização terrorista, ao mesmo tempo que exigem a libertação dos reféns. Mas com quem estamos negociando a libertação dos reféns, senão com o Hamas? Para não sujarmos as mãos, delegamos essa tarefa ao Catar.
O Hamas matou 1.400 pessoas no dia 7 de outubro, incluindo mais de mil civis. Foi um massacre de civis, planejado e reivindicado. Portanto, está claro que foi um ato terrorista. Mas descrever o Hamas como uma organização terrorista não resolve o problema, porque o Hamas não pode ser reduzido às suas práticas terroristas. O “terrorismo” do Hamas é comparável ao da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) antes dos Acordos de Oslo, ao do Irgun (pai do atual Likud, ed.) antes do nascimento do Estado de Israel, ao da Libertação Nacional (FLN) durante a guerra da Argélia… A utilização de meios de ação que podem ser classificados como terroristas não é incompatível com os objetivos políticos de um movimento de libertação nacional.
Historicamente, o terrorismo tem sido a arma dos pobres e das guerras assimétricas. O Hamas enquadra-se muito bem na definição clássica de “partisano”: um combatente irregular, com uma forte motivação ideológica, enraizado num território com uma população que o protege. O Hamas faz reféns; o exército israelense faz prisioneiros e causa “danos colaterais” durante as suas operações militares. O terrorismo do Hamas nada mais é do que um substituto para o terrorismo do Estado de Israel. O Hamas quer destruir Israel, sem ter meios para fazê-lo; Israel quer destruir o Hamas, depois de o ter favorecido durante anos contra a OLP, devastando toda Gaza. O terrorismo é sempre inaceitável, mas o terrorismo do opressor é muito pior do que o dos oprimidos.
Hoje, os palestinos veem o Hamas como uma força armada que resiste à ocupação. Não nos compete dizer quem faz parte da resistência palestina, com base nas nossas simpatias ou inclinações ideológicas. Não tenho nenhuma simpatia pelo Hamas, mas a sua adesão à resistência palestina é um fato indiscutível. E só reconhecendo este fato poderemos encontrar uma solução.
Antes do 7 de outubro, você dizia que uma esquerda que não critica o sionismo não é uma esquerda autêntica. O que quer dizer com isso?
Se quisermos fazer a história do sionismo, temos que levar em conta a heterogeneidade e a diversidade das suas correntes, porque não se reduziu a Theodor Herzl e ao sionismo político. Na Europa Central, por exemplo, o sionismo cultural não defendia a criação de um Estado, mas de um lar nacional judaico que coexistisse com os árabes da Palestina numa base extraterritorial; outros defenderam a criação de um Estado binacional. Essa foi a posição de Yehuda Magnes, fundador da Universidade Hebraica de Jerusalém, e inicialmente de Gershom Scholem e outros. Havia também o sionismo marxista, representado por Ber Borochov, e o sionismo fascista, que admirava Mussolini.
No entanto, o sionismo que se enraizou em Israel e se tornou a espinha dorsal do Estado é o sionismo político. Desde o seu nascimento, este Estado que se autodenomina sionista tem levado a cabo, com todos os seus governos, uma política de expansão territorial e de colonização à custa dos palestinos, que foram expulsos ou segregados. Acredito que uma verdadeira esquerda deve opor-se a esta política. Isso é o que entendo por antissionismo.
Muitos judeus são antissionistas. Não tem nada a ver com o antissemitismo, com a destruição do Estado de Israel ou com a expulsão dos judeus da Palestina. Existe uma nação israelense, que é muito viva e dinâmica e que tem o direito de existir, mas também acredito que esta nação não tem futuro com a entidade política que hoje a representa. No mundo global do século XXI, um Estado fundado em bases étnicas e religiosas exclusivas é uma aberração, na Palestina e em outros lugares. Noto que estas posições – o antissionismo é uma forma de antissemitismo, o Hamas quer destruir Israel – são levantadas não quando a existência de Israel está ameaçada, mas quando Israel está em processo de destruição dos palestinos.
Historicamente, a colonização terminou com a erradicação dos povos indígenas ou com a expulsão dos colonos. Israel foi criado num momento pós-colonial. É possível, então, que o resultado seja diferente?
Não posso prever, mas temo o pior. A situação vem piorando há décadas. Os modelos transmitidos pela história não são necessariamente válidos, porque já não vivemos no mundo do século XX. O sionismo é um colonialismo sui generis, muito diferente do modelo britânico na Índia ou do modelo francês na Argélia. Ninguém mais acredita numa solução de dois Estados e, dada a intensidade dos conflitos, não vejo como poderia emergir um Estado binacional israelo-palestino. Mas se olharmos para além da contingência e vermos as coisas numa perspectiva histórica, não há alternativa à coexistência de judeus e árabes na Palestina, numa base de igualdade.
Na Europa, enfrentamos o legado de um século e meio de racismo e colonialismo, que deixaram a sua marca nas mentalidades, nas representações, nas percepções e nas relações sociais. Isso não se vê apenas nas eleições, mas todos os dias, com os controles faciais no metrô, as leis islamofóbicas, o debate sobre a imigração, etc. Tenho a impressão de que em Israel o racismo também se tornou parte da ordem natural das coisas. Habituamo-nos à segregação de Gaza, aos colonos da Cisjordânia que confiscam terras e têm rodovias privadas, aos postos de controle palestinos, às operações militares arbitrárias e ao assédio diário. Do outro lado do muro, habituar-se a isso só pode produzir sentimentos de abandono, desespero, humilhação e ódio. Acredito que devemos lutar contra esta tolerância, que é um obstáculo intransponível a qualquer perspectiva de paz.
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“A guerra de Gaza mancha a memória do Holocausto”. Entrevista com Enzo Traverso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU