10 Novembro 2023
“O processo contínuo e estrutural de desumanização do ‘outro’ é a pedra angular sobre a qual se baseiam os piores crimes contra a humanidade. Num mundo extremamente polarizado, quando a dialética da alteridade se rompe, surge a barbárie”. A reflexão e de Xavi Sanz, em artigo publicado por El Salto, 07-11-2023. A tradução é do Cepat.
“L’enfer, c’est les autres” (Jean-Paul Sartre)
Quando o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, chama os habitantes de Gaza de “animais”, quando o seu ex-ministro da Justiça declara que as mães palestinas deveriam ser mortas para que não dessem à luz mais cobras, quando a mídia ocidental encobre o genocídio, tornando a linguagem mais técnica ou enchendo-a de eufemismos (“posições do Hamas” em vez de escolas e hospitais, “direito à defesa” em vez de bombardeamentos indiscriminados, “mudanças demográficas” em vez de ocupação), não pensem que isso é feito de forma exaltada, descuidada ou trivial. O processo contínuo e estrutural de desumanização do “outro” é a pedra angular sobre a qual se baseiam os piores crimes contra a humanidade. Num mundo extremamente polarizado, quando a dialética da “alteridade” se rompe, surge a barbárie.
Desde os primórdios da nossa espécie, a existência do “outro” suscitou terror e fascínio, embora não em porções iguais. É difícil imaginar como os nossos antepassados Homo sapiens viam os Neandertais, aqueles “outros” que compartilharam a Eurásia com a nossa espécie durante milhares de anos até o seu desaparecimento. Sabemos pelos estudos do genoma humano que as duas espécies se cruzaram, ainda que de forma excepcional, dada a pouca carga genética neandertal encontrada no genoma sapiens e vice-versa. Talvez um reflexo dessa mistura de terror e fascínio?
O que está claro é que, dada a grande semelhança entre as duas espécies, a visão em relação a estes “outros” não poderia ser a mesma que eles tinham em relação a qualquer outro concorrente do mesmo nicho ecológico, como os grandes carnívoros. Há algo na alteridade, no reconhecimento da existência do outro, que diz algo sobre nós mesmos, nos desafia, nos define, nos dá sentido... A alteridade e a identidade são, de certa forma, faces da mesma moeda.
Ferdinand de Saussure, pai da linguística estrutural, entende a língua como um sistema de valores que possui um aspecto diferencial; ou seja, não entendemos uma palavra ou um sinal pelo que significa, mas pelo que não significa, transmitimos o significado a partir das relações negativas que mantém com outros termos. Assim, entendemos o que significa bom, não porque exista uma essência da “bondade”, mas por causa de sua oposição à “maldade”. Entendemos que o vermelho num semáforo significa parar devido à sua distinção do verde, que significa seguir. Sabemos o que é, por exemplo, ser argentino, não só por certas características, mas também pelas suas diferenças em relação aos seus “outros” (não espanhóis, não chilenos, não italianos...). O mesmo poderia ser dito dos negros em relação aos brancos, da escuridão em relação à luz, do feminino em relação ao masculino, etc. Assim, o significado depende da diferença entre os opostos.
Retomando esta ideia de Saussure, Lévi-Strauss descreve a peculiar tendência humana de impor significado ao seu mundo e definir fenômenos sociais a partir de esquemas binários. No primeiro volume das suas Mitologias, explica-nos que a única forma de saber o que significa “cru” é saber o que significa “cozido”. Onde não existe a palavra “cozido”, a palavra “cru” não pode existir, pois esse conceito só pode ser obtido por oposição ao outro.
O filósofo Jacques Derrida, numa outra reviravolta pós-estruturalista, observou que quase sempre há uma relação de poder numa oposição binária, que não é neutra, que sempre há um polo que é dominante: homem/mulher, luz/escuridão, nacional/estrangeiro.
O problema de definir a compreensão do mundo com base em oposições binárias é óbvio: então, o que está no meio? Não há espaço para nuances? Em que momento o branco se transforma em preto? Quando a luz dá lugar às trevas? Uma concepção de mundo que nos lança num binarismo do tipo “nós somos os bons, eles são os maus” ou “nós somos morais, eles são imorais” não oferece perspectivas muito promissoras… Mas e se não fosse exatamente assim? E se o mundo normalmente funcionasse de maneira mais sutil?
O antropólogo Gerd Baumann propõe três dialéticas ou gramáticas que fundamentam os processos de construção da identidade/alteridade. A primeira delas é chamada de “orientalismo”. Baumann, inspirado no estudo de Edward Said sobre a visão que os ocidentais tinham do Oriente, sustenta que esta não é uma simples oposição binária “nós = bons” e “eles = maus”, que os ocidentais não só desacreditaram “o oriental”, mas que também o desejaram. É antes uma inversão especular com uma certa autocrítica do tipo: “o que há de bom em nós é inclusive mau neles; mas eles ainda conservam algo do que nós já perdemos”.
A segunda gramática é a da “segmentação”, na qual o “outro” pode ser considerado como rival ou como aliado; não tem uma identidade definida, mas é o contexto que condiciona o olhar.
Por fim, Baumann nos fala de uma terceira gramática que chama de “englobamento”, desenvolvida por Louis Dumont. O “englobamento” significaria um ato de construção identitária através da apropriação ou da subsunção do “outro”. É algo como “mesmo que você tente afirmar sua identidade e seus valores como diferentes, no fundo você faz parte de mim”.
Se analisarmos a nossa percepção do “outro” podemos perceber como as três gramáticas se entrelaçam em nossas vidas na hora de dar sentido. As três gramáticas denotam um certo tipo de violência na forma de desprezo, superioridade, competitividade ou condescendência, não vamos negar, mas não impossibilitam a convivência com o outro.
Contudo, há momentos na história em que esta dialética fracassa, desmorona e a “alteridade” começa a ser concebida com extrema polaridade. Surgem então o genocídio, o etnocídio, a escravidão, o apartheid... Mas o que é necessário para que um Estado ou um povo exerça tal violência sobre outros seres humanos? Não falo apenas de violência física, mas também de violência estrutural e contínua (porque as coisas não surgem do nada), que engloba a aceitação e a cumplicidade (ou pelo menos o silêncio cúmplice) de milhares ou milhões de pessoas. Para que isso aconteça sem que a moralidade destrua as consciências, é necessário um processo prévio de desumanização; é necessário rebaixar a condição da humanidade à de um animal ou coisa (embora este seja outro debate porque somos todos animais). Não estamos diante de um fenômeno apenas contemporâneo, mas podemos rastreá-lo até à Antiguidade.
Esparta desenvolveu um dos regimes mais abomináveis da história, no qual apenas cerca de dez mil “hómoioi” (iguais) escravizaram duzentos mil messênios conhecidos como “hilotas” durante séculos. Como é que não se revoltaram quando eram vinte vezes mais numerosos? Os espartanos submeteram os “hilotas” a uma tal dose de humilhação e tortura psicológica que os impediu de conceber qualquer tipo de rebelião. Nesse processo estrutural de desumanização e terror, eram obrigados a raspar a cabeça (o que contrastava com os longos cabelos dos espartanos), a usar um gorro de pele de cachorro cuja punição para retirá-lo era a morte, e havia até um rito de passagem entre os jovens espartanos chamado “krypteia”, através do qual se organizava a perseguição e o extermínio de “hilotas” (que, paradoxalmente, eram seus próprios escravos).
Um exemplo de como as práticas desumanizantes precederam um colapso moral foi-nos dado por Victor Klemperer, filólogo alemão de origem judaica. Klemperer observou como o uso cotidiano e institucionalizado de uma linguagem perversa precedeu a aniquilação de milhões de judeus, ciganos, comunistas e homossexuais pela Alemanha nazista (sim, também existiram ciganos, comunistas e homossexuais, embora nunca se fale deles).
Três meses depois de um dos principais perpetradores do Holocausto ter sido julgado e condenado à morte em Jerusalém (Adolf Eichmann), realizou-se na Universidade Yale o chamado “experimento de Milgram”. O psicólogo Stanley Milgram idealizou este experimento para descobrir se os horrores da Alemanha nazista foram cometidos por terríveis monstros teutônicos que carregavam dentro de si a semente do mal, ou se, pelo contrário, poderia ter acontecido em qualquer lugar. 65% dos participantes do experimento (e apenas porque um suposto cientista de jaleco branco ordenou) mataram uma pessoa que estava em outra sala aplicando sucessivos choques elétricos até atingirem 450 volts.
Claro que ninguém morreu, foi tudo uma armação, mas os participantes não sabiam disso. A experiência foi replicada em diferentes países com resultados semelhantes, mostrando que a obediência cega à autoridade prevalece mesmo quando entra em conflito com a consciência pessoal. Curiosamente, a obediência diminuiu nas variações do experimento em que o participante estava em maior proximidade física com a vítima (mantendo o braço sobre a placa de choque). É um bom exemplo que mostra que num contexto de maior desumanização é mais fácil matar o “outro” do que se sentirmos o seu sopro vital extinguir-se, se o seu sangue respingar em nós…
O experimento de Milgram tem muitos paralelos com a tese que Hannah Arendt desenvolveu após testemunhar o julgamento de Adolf Eichmann e que ela cunhou em sua famosa frase “A banalidade do mal”. Arendt ficou surpresa ao descobrir em Eichmann não o monstro que ela esperava, mas apenas um funcionário cinzento, um burocrata que seguia ordens. Eichmann admitiu ter deportado milhares de judeus para campos de extermínio, mas chegou ao ponto de afirmar que nunca matou ninguém (fisicamente). O assassinato em massa de seres humanos, como se fosse um processo técnico, é o paradigma da desumanização; é muito mais fácil do que estrangular alguém com as próprias mãos.
Vemos, então, como o processo de desumanização pela linguagem, pelo distanciamento, pelo olhar para o outro lado, pela evasão de responsabilidades, pela modernização das armas, etc., nada mais é do que uma forma de autoproteção, uma redenção por antecipação para continuar consumando a aniquilação do “outro”. Tudo isso não faz apenas parte do passado; estamos testemunhando isso ao vivo todos os dias. Basta ligar a televisão, ler a imprensa ou ouvir a maioria dos líderes ocidentais.
Começamos este artigo falando sobre os Neandertais, daqueles “outros” com quem convivemos durante milhares de anos. Existem muitas teorias sobre a causa do seu desaparecimento, mas não podemos deixar de pensar que talvez tenha sido o primeiro genocídio que ocorreu pelas mãos da nossa espécie. Hoje, um pedaço de céu cai sobre Gaza, enchendo-a de escombros. Parecemos não compreender que se a identidade e a alteridade são faces da mesma moeda, quando aniquilamos o outro, de certa forma, aniquilamo-nos a nós mesmos. A dialética da empatia é a única forma de acordar deste pesadelo, de não ter que admitir, citando Sartre, que “o inferno são os outros”.
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A dialética da alteridade e a desumanização dos povos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU