10 Outubro 2023
No seu livro reeditado A questão judaica, o professor Enzo Traverso aborda um debate marxista que considera necessário para nos compreendermos hoje diante da xenofobia ou da questão da migração.
A entrevista é de Luis Miguel Barcenilla, publicada por El Salto, 09-10-2023. A tradução é do Cepat.
O professor, historiador e intelectual da Universidade de Cornell, Enzo Traverso, nasceu em Gavi, Piemonte, em 1957. Ele é provavelmente o pensador europeu vivo do século XX mais relevante e prolífico. Sua obra inclui títulos que estudam a relação entre marxismo e judaísmo, nazismo, antissemitismo e processos revolucionários. Destacam-se, entre outros livros, El final de la modernidad judía. Historia de un giro conservador (FCE, 2014), As novas faces do fascismo. Populismo e a extrema direita (Âyiné, 2021) e Melancolía de izquierda. Marxismo, historia y memoria (FCE, 2018).
A Editora Verso republicou La cuestión judía. Historia de un debate marxista (2023), publicado em francês em 1990. Uma segunda edição reescrita e atualizada baseada em Zur Judenfrage (1843), do jovem Marx, e La conception matérialiste de la question juive (1946) de Abraham Léon. Com isto, sugere, com a análise da questão judaica a partir da perspectiva marxista, podemos nos compreender hoje. Os neofascismos xenófobos, a questão da migração e as tensões territoriais assim o exigem.
Esta entrevista acontece horas depois de Traverso, em diálogo com Jordi Amat, ter encerrado o ciclo CCCB sobre a Europa com uma crítica tão aguda quanto elegante à União Europeia perante uma sala cheia e um ministro da Cultura, Miquel Iceta, bem atento.
Comecemos pelo fim: a história do debate marxista sobre a questão judaica é uma história de falta de compreensão. O que precisamos entender?
O marxismo tentou interpretar a questão judaica, isto é, o papel dos judeus e do judaísmo na história moderna. Era um mundo secularizado onde o mundo, através do marxismo, queria a emancipação. Esta confusão é, antes de mais, a falta de compreensão por parte dos intelectuais judeus da sua própria história, a falta de compreensão da natureza do antissemitismo. Por quê? Porque os marxistas tinham a tendência de considerar o antissemitismo como um legado do passado, uma forma de obscurantismo, que inevitavelmente desapareceria.
Os marxistas ortodoxos procuraram o desaparecimento de qualquer religião?
Bem, isso foi formulado de forma contundente por aquele que foi chamado de ‘o Papa da Segunda Internacional’ [Karl Kautsky] quando disse algo como: “Os judeus são os mais progressistas dos intelectuais e o judaísmo é reacionário”. Portanto, o progresso significa o desaparecimento do judaísmo como religião, porque como religião é uma forma de alienação, e os marxistas, claro, são críticos das religiões. A partir dessa tradição do Iluminismo radical, criticam o cristianismo, o judaísmo, o islamismo, assim como todas as religiões. O progresso é o desaparecimento do judaísmo. O mundo emancipado e o progresso são também o desaparecimento dos judeus num mundo em que não haverá mais religião. Com essa visão em mente, é difícil armar-se para lutar contra um projeto de extermínio dos judeus. É difícil lutar de forma eficaz. Essa visão do antissemitismo desarmou o movimento operário e esse erro fez parte do marxismo.
Você reflete que a ideia atual de Europa gira em torno de um símbolo, de uma memória, mas de forma negativa: o memorial do Holocausto. Isto exemplifica, como você explica, que a região, como ator político, é incapaz de se projetar. Foi formada, acrescenta, a partir do conflito, da catástrofe. Na verdade, os seus piores momentos – as guerras, o Holocausto, as crises econômicas, a pandemia – precedem os seus melhores momentos. Você propõe um federalismo europeu dotado de uma agenda política profunda que, por exemplo, aborde a questão da migração. Será que tal expressão política, que considera não existir atualmente, impediria o achatamento da alteridade?
Eu deveria começar por constatar a realidade. É isso que a União Europeia não faz. Todos os debates giram em torno de como impedir a imigração, como agir para que a Turquia, a Líbia e outros Estados detenham a chegada de migrantes. Uma forma exitosa de responder à questão da migração é compreender que a migração é uma característica do mundo global que não pode ser cancelada. Deve ser levada em consideração. Você tem que reconhecer isso. É o primeiro passo. Não se pode devastar uma área do mundo, por exemplo o mundo árabe, e depois decidir não aceitar a sua população, que chega da Síria, da Líbia ou do Afeganistão.
É não entender nada ou entender e ter uma atitude perversa.
Se existe uma comunidade chinesa estabelecida em muitos países, isso parece perigoso, e a reação é impor a língua, os costumes e assim por diante. No mundo de hoje, para uma minoria chinesa num lugar onde se fala chinês e catalão, ou chinês e italiano é... digamos... É preciso ser totalmente cego para entender isso como uma fraqueza!
Falando em fim das fronteiras, a obra que a Editora Verso agora resgata sob o título A Questão Judaica nasceu na verdade em 1990, e você a colocou nas mãos do editor antes da queda do Muro de Berlim. Quão válida é esta obra?
A queda do Muro de Berlim é importante porque encerrou o século XX. O Holocausto também acontece no século XX. Ao falar sobre o marxismo judaico, deve se destacar o papel na história do mundo e da Europa, particularmente durante as guerras, a Revolução Russa e a Guerra Fria. O final do século permite-nos olhar para trás e para todos estes problemas. Quando eu estava escrevendo, era um processo que ainda não havia sido concluído. É isso que tento explicar no prefácio.
Embora o seu ponto de partida seja o ensaio do jovem Marx, Zur Judenfrage (1843) [A questão judaica], chega até o Holocausto e, posteriormente, propôs que o memorial do horror nazista formou o que chama de “religião civil”.
Uma religião civil é a sacralização de um conjunto de valores que aparecem como constitutivos das democracias modernas; sacralização que se expressa através de rituais. Neste caso é a comemoração, a liturgia. No caso do Holocausto, a liturgia recupera características das religiões tradicionais, porém, esta não é uma prática pertencente ao mundo secularizado.
Desconsiderar o horror nos salvaria.
A memória do Holocausto desempenhou um papel fundamental na construção de uma consciência antirracista nos países do mundo ocidental. Na Alemanha, a institucionalização da memória do Holocausto produz mudanças visíveis, como a modificação da lei de cidadania que era do Terceiro Reich. Os “turcos” que nasceram na Alemanha permaneciam turcos, mas os ucranianos e os russos com ancestrais alemães vinham para a República Federal e obtinham a cidadania. A memória do Holocausto permitiu-nos pensar na Alemanha não como uma comunidade étnica, mas como uma comunidade política capaz de incluir a todos como cidadãos. Esta é uma grande mudança na consciência nacional.
Mas, ao mesmo tempo, a memória do Holocausto é um argumento de muitos partidos políticos com vícios nazistas, ou pelo menos abertamente xenófobos e racistas.
A memória do Holocausto como religião civil é utilizada pela direita radical como vetor da sua própria legitimação. Ou seja, na Itália, Fratelli d'Italia é um movimento que nunca escondeu a sua matriz fascista. O presidente do Senado, Ignazio La Russa, coleciona bustos de Mussolini. São fascistas e organizam conferências sobre o Holocausto, convidando o embaixador de Israel, e assim podem dizer que ninguém pode acusá-los de serem racistas. Ao mesmo tempo, implementam uma política xenófoba contra os migrantes, contra os muçulmanos, etc.
Em A questão judaica podemos ver uma grande obra bibliográfica que inclui Deutscher, Löwy, Scholem, Medem, Hobsbawm... e, claro, Lukács, Benjamin ou Mandel. Sobre Benjamin, você diz que ele não podia ser compreendido (nem pelos sionistas que acreditavam no judaísmo como um “empreendimento para a colonização da Palestina”, nem pelos marxistas ortodoxos que viam no judaísmo um resquício da Idade Média), que foi um precursor teólogo da libertação, que era o ideal típico da intelligentsia desenraizada e que, como diria Brecht, foi o primeiro grande golpe de Hitler contra a cultura (embora a princípio apenas poucos tenham tomado conhecimento do seu suicídio). Qual é a contribuição de Walter Benjamin para a sua análise e como você pensa que seu projeto de estética marxista sobrevive no presente?
A figura de Benjamin é fascinante porque é um pensador que tenta obter uma síntese do marxismo como teoria crítica da sociedade e como projeto de transformação do mundo. Uma teoria, um projeto, que é eminentemente secular. Embora venha de uma tradição messiânica judaica, nas suas características dominantes é um projeto antirreligioso. Ou seja, com a dimensão utópica vemos a tradição religiosa e teológica. Mas Benjamin elaborou a sua própria visão tanto do marxismo como do messianismo; ele tem um profundo conhecimento do marxismo e da teologia. Falar, no caso de Benjamin, de uma teologia política seria problemático: ele leu O capital, leu Lukács, seu amigo Scholem...
A sua perspectiva é messiânica?
Benjamin pensa que a utopia comunista se centra na ideia de revolução como um ato de libertação e superação. Esta ideia corresponde a uma visão messiânica do mundo.
Mas Benjamin não teoriza o como.
O marxismo de Benjamin não pode ser transformado em um programa, em um projeto. Benjamin não oferece diretrizes para a construção de um movimento de luta contra o fascismo. Ou para desenvolver uma estratégia, uma alternativa socialista. Se procuramos isso em Walter Benjamin, nos equivocamos. Ele é, lembremo-nos, aquele que considera se deve entrar no Partido Comunista e não o faz por medo. Ele não é um militante, não pensa estrategicamente; não propõe, como os marxistas clássicos, se reforma ou revolução. Não é Trotsky ou Rosa Luxemburgo. Benjamin é um paradoxo e tem um contorno impossível de evitar. É difícil falar hoje de pensamento crítico sem incluir Benjamin. Mas também não é Max Weber, não é Pierre Bourdieu, não oferece uma linguagem, um arsenal teórico, uma série de categorias. É uma sensibilidade, uma visão da história.
Retrocedo um pouco no tempo para voltar aos dias atuais. O Holocausto foi precedido por pogroms. [1] Foi durante o czarismo russo que foram sistematizados. Enquanto os pogroms continuavam, a literatura (cultura em geral) iídiche brilhava. Isto gerava tensões entre classes (e em diferentes países) e, segundo você, levou a um erro: a luta pela emancipação judaica transformou-se no seguimento da formação de uma nação judaica. O movimento operário judaico e marxista acreditava que era possível identificar-se como um povo-nação e tentar tecer um internacionalismo de tradição socialista. No Estado espanhol coexistem diferentes soberanistas e nacionalismos periféricos, se me permite fazer a comparação, uma tensão semelhante: autonomia política, reconhecimento, emancipação versus formação de uma nação. Como podemos abordá-los a partir da história marxista das ideias? É possível extrapolar esta questão para outras realidades?
No momento em que pesquiso existe um conflito entre o iídiche, por um lado, como uma das línguas do mundo judaico na Europa Central e Oriental, e as grandes línguas nacionais. E há um conflito que também atravessa o mundo marxista: não é uma língua, é um dialeto. E essa é a posição dos filósofos judeus do Iluminismo. Se os judeus quiserem se integrar no mundo moderno, terão de abandonar essa língua, que é a língua do gueto, que é a língua obscurantista do passado.
Na Polônia nasce um partido socialista judeu, considerando que o iídiche é uma língua de uma cultura nacional extraterritorial moderna. Ou seja, a cultura de uma minoria que coexiste com outras nações. Este partido reivindica a separação entre a língua e a religião. Como acontece hoje em muitos países com a separação entre Igreja e Estado [risos]. Essa ideia de uma nação moderna fundada na língua é uma linha interessante. É uma forma de pensar sobre a diversidade do mundo global. Sem entrar num debate que não domino na Espanha... penso que seria interessante pensar a crise catalã nestes termos. Os budistas não seriam independentistas, mas catalanistas. Catalinastas vigorosos, mas não independentistas.
Para finalizar, você escreveu sobre utopia e revolução. Como elas se conectam? O que a utopia tem a ensinar à teoria do socialismo e, especificamente, à práxis das classes trabalhadoras mobilizadas?
O problema é que não existem utopias. Não vejo utopias. Os movimentos sociais, com todo o seu potencial de crítica ao presente, são incapazes de projetar uma utopia. Revolução e utopia guardam uma relação simbiótica. O socialismo era uma utopia. Um socialismo que podia ser pensado de muitas maneiras diferentes. Era a alternativa, e milhões de seres humanos pensavam nela, acreditavam nela. A consciência da necessidade de uma alternativa é grande, mas ninguém é capaz de traçar o perfil desta alternativa.
É um problema de imaginação ou de viabilidade?
Temos um problema de imaginação coletiva. Não é o problema dos limites da minha imaginação, da sua imaginação. É o problema do imaginário coletivo destes movimentos sociais atuais. E creio que esta incapacidade de imaginar ou projetar o futuro é consequência da derrota, que é profunda, que tem efeitos cumulativos, e que advém de um projeto de transformação social que ocorreu no século passado, o século da s revoluções. As novas formas de dominação paralisam o pensamento e impedem a construção de um novo imaginário.
[1] Ataques violentos, geralmente organizados, contra uma comunidade, em especial uma comunidade judaica. (Nota do IHU)
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“Os movimentos sociais, com todo o seu potencial, são incapazes de projetar uma utopia”. Entrevista com Enzo Traverso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU