10 Janeiro 2024
"Todos aqui repetem que o que Israel está fazendo é como um procedimento médico doloroso, mas necessário para salvar a vida do 'paciente', isto é, libertar Gaza do Hamas para sempre, erradicar os terroristas e destruir de uma vez por todas as suas infraestruturas, os túneis e os arsenais", escreve Miriam Camerini, diretora de teatro e estudiosa do judaísmo, em artigo publicado por Jesus, janeiro de 2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Caminhar pelas ruas de Jerusalém poucos dias antes da festa judaica de Chanuká, que celebra a reconsagração do Templo na época dos Macabeus no século II a.C., causa tristeza e saudade do clima alegre, das hordas de peregrinos, dos concertos e dos eventos natalícios que caracterizavam essas ruelas somente um ano atrás.
É impossível hoje mergulhar no clima festivo e não sentir uma pontada no estômago ao tentar imaginar os sentimentos e as condições psicofísicas dos mais de 130 reféns sequestrados em 7 de outubro e desde então prisioneiros em Gaza, sabe-se lá onde, como e por quanto tempo ainda, assim como é impossível não pensar nos milhares de palestinos mortos todos os dias sob os bombardeios.
A frase que mais ouço repetida nestes dias, por exemplo da mãe de Ben Sussman, sargento major do exército israelense que morreu em Gaza aos 22 anos, é: “Nós venceremos esta guerra, nós que santificamos a vida, nós que não somos aqueles covardes canalhas nazistas que santificam a morte". E eu, que não sinto que posso julgar os pensamentos e as palavras de uma mãe que está enterrando um filho, não consigo ignorar o fato de que a retórica da guerra é um bálsamo que permite suportar uma vida na qual quem saiu de do seu ventre agora está sob a terra enquanto você ainda está em cima, e assim fazendo permite continuar um jogo em que sempre eternamente se morre e se dá a morte.
Todos aqui repetem que o que Israel está fazendo é como um procedimento médico doloroso, mas necessário para salvar a vida do "paciente", isto é, libertar Gaza do Hamas para sempre, erradicar os terroristas e destruir de uma vez por todas as suas infraestruturas, os túneis e os arsenais. "Nós amamos a vida e a protegemos: um salmo que cantamos nas festas judaicas mais importantes diz: "Não são os mortos que louvam a Deus, nem aqueles que descem no silêncio", enquanto uma cultura que vê este mundo como um inútil preâmbulo para aquele que virá depois, uma religião para a qual a verdadeira vida é a vida eterna e "Aqueles que morrem por Alá vivem para sempre" tira do ser humano responsabilidade e esperança, jogando-o num fatalismo desesperado onde morrer é doce e o martírio homicida é a máximo aspiração." Assim me repetem todos os amigos aqui, mesmo aqueles mais à esquerda politicamente, e até mesmo aqueles que até dois meses atrás trabalhavam diariamente pela paz e pela coexistência mudaram de ideia.
O trauma do 7 de outubro é tão forte e o medo tão onipresente que impede qualquer outro raciocínio ou questionamento sobre a adequação da ação militar, sua eficácia estratégica ou admissibilidade moral. O rádio - que sintonizei em uma das emissoras do estado - há dias repete histórias do horror, como a entrevista com uma das garotas que escapou do massacre perpetrado pelo Hamas no Festival de música de Reim fingindo-se de morta por horas, deitada ao lado dos cadáveres dos amigos depois de ter assistido ao assassinato do seu companheiro, que teve a garganta cortada com um canivete por um terrorista a meio metro de distância dela.
Desligo o rádio e, na esperança de me distrair por algumas horas, vou para o meu cabeleireiro na cidade velha, um gentil jovem armênio de olhos azuis, cujo salão, logo ao lado da Porta Nova, sempre foi um lugar acolhedor. São 16h, mas Rany me cumprimenta acendendo as luzes: sou a primeira cliente do dia e meus 75 shekels (menos de 19 euros) provavelmente serão o seu único ganho hoje: “A temporada está perdida”, diz-me com tristeza enquanto lava meu cabelo. “Aqui na cidade velha vivemos de turismo e este ano não teve turistas e não haverá nenhum."
A cidade que um ano atrás fervilhava de mercadinhos de Natal, chocolate quente e sachlab (bebida quente densa feita de coco, leite, pistache, água de rosas e outras delícias, o equivalente local do quentão das nossas ruas natalinas) está agora deserta como nas Lamentações de Jeremias: uma cidade escura, desprovida de filhos e visitantes, tão desconsolada quanto uma viúva.
Enquanto Rany seca meu cabelo, tenho tempo para pensar em como, durante os dois milênios e meio de diáspora judaica, a expectativa da redenção - para o povo de Israel - foi fundada na esperança e no sonho do retorno a Sião: “Oh, minha pátria, tão bela e perdida!” cantam os escravos judeus deportados para a Babilônia no Va' pensiero, o famoso coro do Nabucco de Verdi, cujo texto é modelado conforme o Salmo 137, aquele que descreve os filhos de Israel sentados chorando "acima dos rios de Babilônia".
Se na teologia judaica o exílio e a perda da Terra são sempre um castigo determinado pelo divindade para punir o povo por seus pecados, ainda assim existem diferenças importantes entre culpas e culpas: a destruição do Primeiro Templo de Jerusalém em 586 a.C. pelos babilônios e o exílio são a consequência da idolatria representada nos textos proféticos com a imagem do adultério e da infidelidade conjugal: a “esposa” ingrata Israel “prostituiu-se” a outros, traindo o Deus único que a escolheu, criou e amou quando ainda "não era ninguém". A culpa é, portanto, do povo para com a divindade e a ruptura da relação entre este e aquela é sua consequência. A destruição do Segundo Templo em 70 d.C. pelos romanos tem como causa, por sua vez, o ódio fratricida dentro do povo: não mais - portanto - uma defecção de Israel para com o único Deus, mas um ódio injustificado e arbitrário entre os indivíduos, a falta de solidariedade fraterna que é uma culpa gravíssima e cuja consequência – em toda a Bíblia - é a perda da terra: é o caso de Caim, Jacó, José e seus irmãos: quase todos os personagens do Gênesis acabam exilados de sua terra por causa do ódio “interno” às famílias , o mais grave.
Posto que a diáspora é um fato histórico com uma causa “teológica” e, portanto, com um significado religioso e por uma razão moral bem específica, a atitude do judeu piedoso tem sido por quase vinte séculos a espera paciente que chegue o fim dos tempos, que a divindade estabeleça o fim da sentença declarada e da expiação ocorrida, a culpa absolvida ou talvez perdoada "antecipadamente" em virtude de atos de arrependimento e penitência. Os judeus, ao longo dos séculos, viram no seu comportamento cotidiano, na observância meticulosa dos preceitos e no rigor da dedicação ao estudo dos textos bíblicos e rabínicos o único meio ao seu alcance para apressar a redenção e o retorno a Sião, “organizado pelo Messias”: não uma ação humana e política, portanto, mas o empenho íntimo e cotidiano para com o bem no seu próprio coração, nas casas e comunidade.
Um conto rabínico no qual penso enquanto estou sentada aqui numa das portas da cidade, contido no Talmud babilônico, fala sobre um mestre da Galilea que se teletransporta para Roma (estamos no século I d.C.) para perguntar ao Messias, que está sentado às portas da capital do Império, entre os mendigos leprosos, quando pretende vir. “Hoje”, responde o redentor e o mestre regressa confiante à Galileia para o esperar. O “hoje” porém passa e a redenção não chega: o mestre encontra o profeta Elias, que o havia enviado a Roma e se queixa: “O Messias mentiu”, relata: “Ele disse que viria hoje mas não apareceu”. Elias então explica ao mestre que ele não ouviu até o fim a resposta: "Hoje, se vocês ouvirem a sua voz " (citação do Salmo 95), o Messias disse de fato: a salvação chega apenas e somente quando os humanos a merecem, desde que se comportem de forma a permiti-la.
Para os judeus haredim – literalmente “aqueles que tremem”, diante de Deus (e o conceito é o mesmo dos cristãos reformados chamados de “Quakers”, porque tremem – “to quake” – diante do Senhor), ou seja, os judeus de origem da Europa Central e Oriental, geralmente vestidos com ternos pretos, com chapéu e cachinhos, as franjas rituais que ficam penduradas por fora das roupas, que de forma genérica chamamos de "ultraortodoxos", habitar a Terra de Israel - independentemente de quem a governa - é uma preceito bíblico, que muitos ao longo dos séculos honraram à custa de grandes sacrifícios, mas não somos nós, seres humanos, que podemos nos livrar do jugo do exílio, tornando-nos artífices do nosso próprio destino nacional e político. Por essa razão, ainda hoje, muitos dos Judeus Haredim que vivem em Israel — normalmente nos bairros históricos de Jerusalém, como Mea Shearim, mas também em áreas mais novas como Geulla (onde se passa a série de TV Shtisel) ou no grande subúrbio Bnè-Berak de Telavive - não se consideram cidadãos israelenses: em alguns casos não possuem carteira de identidade, passaporte ou registo Serviço Nacional de Saúde...; frequentam escolas fora do sistema escolar estatal e não se alistam no exército. Nos casos mais extremos, têm os seus próprios geradores de eletricidade independentes do Estado, não utilizam a internet e seguem regras muito restritivas quanto ao uso do telefone, da televisão e dos meios de comunicação em geral. O uso do iídiche contribui ainda mais para manter a sua diversidade e separação do resto da população israelense, que fala e escreve em hebraico.
Rany me chama de volta dessas reflexões, enquanto me mostra o penteado no espelho e depois me pergunta, com o ar esperançoso de uma criança, se quero que acenda e me mostre a árvore e o presépio que diligentemente preparou para os clientes que não virão: obviamente lhe respondo que sim, com todo o entusiasmo de que sou capaz; à luz da árvore bebemos chá de açafrão e comemos figos secos. Despeço-me com muitos votos de felicidades e com a promessa de lhe enviar logo alguns clientes.
Saindo da cidade velha passeio pelas ruazinhas de Geulla ladeadas pelas habituais placas em iídiche e hebraico que "convidam" à modéstia no vestir e intimidam qualquer um - as mulheres em particular - a atravessar o bairro com roupas modernas e pouco pudicas, e penso em um episódio de Shtisel em que os jovens alunos do Mestre Akiva pedem para assistir ao desfile aéreo de comemoração do dia da Independência de Israel, mas o diretor da escola, o Rabino Shtisel, não permite: tomar parte dos festejos representaria uma adesão ao sionismo contrária à ortodoxia não sionista dos haredim. Nessas ruas a vida – quase dois meses depois do 7 de outubro – flui como se nada tivesse acontecido, ninguém fala de guerra, os únicos preparativos em andamento são aqueles para o Chanuká e a minha sensação é que esses velhos portões protegem uma história bimilenar de diáspora e exílio, Torá e separação do resto do mundo.
Para um observador não entendido, é fácil confundir os haredim que vivem dentro desses muros, físicos ou imaginários, com os sionistas religiosos, que vivem nas colônias, mas também em muitos bairros de Jerusalém e outras cidades, eles também rigorosos observantes dos preceitos, eles também usando cachinhos e franjas rituais nos cantos das roupas, bem como os quipás (as boinas redondas, que no entanto, neste caso, são de crochê), mas cuja posição em relação ao sionismo político é quase oposta: para eles o Estado de Israel fundado em 1948 é literalmente “o início da germinação da nossa redenção", ou seja, o equivalente histórico-político daquele "escutar a voz divina" da história talmúdica: o “comporte-se bem” que apressará a vinda do Messias.
Por outro lado, como sabemos, cada um representa o Messias da melhor maneira que pode. Se para os primeiros sionistas leigos, ou seja, para os socialistas de Ben Gurion e dos kibutzim, a fundação de Israel e o retorno à Terra promessa era de fato a realização humana da promessa messiânica, que como tal aliviava de maneira mais ou menos consciente os seus realizadores do jugo da observância dos preceitos da Torá, para os sionistas religiosos - pelo contrário - o retorno à Terra de Israel e a fundação do Estado representam a contribuição humana e necessária à realização da promessa divina.
A Torá, com todas as suas leis relativas ao cultivo da terra e à organização de uma sociedade justa, é dada para ser estudada e sobretudo posta em prática na terra de Israel: que depois venha a ser aquela “grande” e bíblica, ou aquela definida internacionalmente pelas linhas de “cessar fogo" de 1949, isso varia dependendo da época, das pessoas e das escolas de pensamento, uma vez que os sionistas religiosos são extremamente fragmentados internamente. Naftali Bennet, por exemplo, um jovem político filho de emigrantes dos Estados Unidos, herói das start-ups israelenses, entrou na história recentemente ao se tornar o primeiro Primeiro-ministro israelense vindo das fileiras do sionismo religioso. Seu breve governo (junho de 2021 a junho de 2022) incluía elementos de todo o panorama político e demográfico: da extrema direita à extrema esquerda, desde judeus sionistas religiosos até muçulmanos devotos.
No entanto, as experiências inclusivas de Bennet fracassaram no espaço de um ano, derrubadas pelo Likud de Benjamin Netanyahu, auxiliado pelos elementos mais nacionalistas do partido Yamina ("de direita") do próprio Bennet. Após a queda do governo de “direita moderada”, apresentaram-se dois expoentes da extrema direita religiosa e messiânica: Itamar Ben Gvir e o jovem Bezalel Smotrich, seguidíssimo nos assentamentos da Cisjordânia, cuja esposa – nas suas próprias palavras – “não é racista, Deus nos livre, mas quando dá à luz (ou seja, cerca de uma vez por ano, porque é preciso fazer muitos filhos porque os árabes fazem ainda mais), depois quer descansar e, portanto, quer ficar num quarto com uma tranquila e bem-educada puérpera judia e não com uma árabe de família barulhenta." Essa foi a sua “justificativa” — em 2016 — após a polêmica suscitada por um tuite do próprio Smotrich, na época jovem expoente do partido nacional-religioso, no qual promovia e aplaudia a separação já de fato em ato em alguns setores da maternidade dos hospitais do país entre mães árabes e judias.
Na época, eu havia retornado há pouco para Israel. Em Jerusalém ainda era uma tarde muito quente no final de outubro, sexta-feira. A cidade sagrada estava se preparando para o Shabat. Logo depois do portão de Jaffa, além daqueles muros já rosados pelo pôr-do-sol, um cartaz eleitoral tirou-me bruscamente das minhas pacíficas reflexões: o rosto carrancudo e obstinado de Itamar Ben Gvir com os braços cruzados, de terno cinza e quipá, se perguntava retoricamente: “Quem são os donos de casa aqui?”. Parei horrorizada, profundamente perturbada pelo fato de tal pensamento poder ser expresso publicamente e sem acreditar que pudesse realmente angariar votos.
Poucos meses depois, Smotrich era Ministro das Finanças e Ben Gvir tinha levado a sua cara carrancuda ao Parlamento como Ministro do Interior: uma escalada de fanatismo político-religioso que nos meses seguintes levou a tensões fortíssimas no país e às inúmeras manifestações antigovernamentais que incendiaram as ruas e as praças de Telavive e Jerusalém, mas também cidades menores como Haifa e Beer Sheva e até - parece um paradoxo – o assentamento de Gush Etzion, na Cisjordânia, onde em fevereiro passado, após o assassinato, por terroristas palestinos, de dois colonos judeus de vinte anos na West Bank, dezenas dos seus companheiros incendiaram carros e destruíram casas, perpetrando um verdadeiro pogrom contra a população do vilarejo árabe de Hawara. Nessa ocasião, os cartazes das manifestações antigovernamentais explodiram com citações da mais pungente canção iídiche do poeta Mordechai Gebirtig, morto no gueto de Cracóvia, que creio que nunca teria imaginado tal contexto para a sua Undzer shtetl brennt: a nossa cidade queima. Depois de dois mil anos das nossas cidades sendo queimadas por outros, a ideia de que fossemos nós, judeus, a queimar as cidades alheias era um pesadelo que se tornava realidade.
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A ideia de Messias que pressiona Israel para a direita. Artigo de Miriam Camerini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU