11 Junho 2019
Nem sequer a dor pelo sofrimento de seu país consegue acabar completamente com o seu bom humor. Haifa Zangana (Bagdá, 1950) é uma mulher pequena, com traços serenos e trejeitos lentos, por trás dos quais se esconde uma trajetória espetacular: romancista, artista, incansável ativista política.
É conhecida por ser autora de títulos como A cidade das janelas: a perspectiva de uma mulher iraquiana sobre a guerra e a resistência, Sonhando com Bagdá e O torturador no espelho, este juntamente com Ramsey Clark e Thomas Ehrlich Reifer. Também editou em árabe Uma festa para Thaera: as mulheres palestinas escrevem sobre a vida, uma coletânea de relatos cujas autoras foram prisioneiras palestinas.
No último mês de abril, esteve nas Trobades [encontros] Albert Camus, realizadas em Sant Lluís, Menorca, juntamente com destacadas personalidades da cultura mediterrânea. Em uma conversa com o jornal El Diario, reflete sobre a situação do Iraque 16 anos após a invasão, a guerra na vizinha Síria e os direitos das mulheres.
A entrevista é de Alejandro Luque, publicada por El Diario, 09-06-2019. A tradução é do Cepat.
Se alguém, agora, chegasse com uma máquina do tempo e pudesse escolher viver no Iraque sob Saddam Hussein ou na atualidade, o que você aconselharia?
Recomendaria não ter que fazer essa escolha em absoluto. Nossa luta contra a ditadura era autêntica, enfrentamos um regime opressor que metia as pessoas na prisão. Havia abusos de direitos humanos. É certo que não era tão ruim como se tornou depois. Muitos iraquianos dizem: antes tínhamos um ditador, e agora não sabemos o que temos, porque há muitos e não sabemos como enfrentá-los. Contudo, os iraquianos merecem algo melhor que o regime anterior ou este, que nos meteu em um poço ainda mais profundo.
Na Espanha, às vezes, se escuta a opinião: “Não se deve intervir contra ditadores árabes, porque esses povos não estão preparados para a democracia, ou não necessitam dela”. O que responderia?
É claro que querem democracia! São os países ocidentais que não a querem. Quantos países invadiram a favor de uma democracia de verdade? Em quais derrubaram governos democráticos? Faça a lista, verá que não possuem nenhum interesse nisso. O povo [no Iraque], sim, desejava muito uma democracia.
À margem dos defeitos deste sistema, que existem, pensavam que iria trazer estabilidade. O que mais as pessoas desejam é essa estabilidade. Querem se assegurar de que seus filhos possam ir ao colégio pela manhã. Querem estar seguros de que podem ir ao médico, quando estão doentes, em vez de morrer, e de ter um trabalho para viver com dignidade.
É certo que na Primavera Árabe todos os lemas nas ruas de Cairo, Tunísia, parte do Iraque e agora na Argélia, todos falavam de liberdade e de dignidade, de trabalho, não de democracia. Porque sabemos muito bem que se você tem liberdade, se tem sua dignidade, se tem trabalho, se a economia caminha, essa é a verdadeira democracia, não ir votar em vai saber em quem e em quais eleições.
Com a chegada de refugiados sírios à Turquia, uma das perguntas que se fazia aos jornalistas europeus era: “Por que a Europa permite que Assad nos massacre e não intervém?”. Após a experiência no Iraque, aconselharia uma intervenção militar estrangeira contra Assad?
Não, em absoluto. Estamos é claro do lado da rebelião, mesmo que algumas rebeliões tenham sido sequestradas. Contudo, isso não quer dizer que se peça para que ocupem seu país. Em absoluto. Durante as sanções no Iraque, pedíamos todos os tipos de medidas, exceto a invasão. Não é uma opção.
O que se pode fazer então, de fora, diante de uma cruel guerra como a da Síria?
Deixar de apoiá-lo. Basta isso. A Arábia Saudita mata as pessoas. Ontem, executou 37 pessoas. Junto com Irã e Iraque, está na liderança da lista de execuções no mundo. Não os apoie. Não apoie ditadores. Não lhes envie armas para matar a seu povo, se é que quer ajudar.
E aqueles que se opõem a esses governos, o que podem fazer? Com quais espaços contam?
Há os espaços que a humanidade criou: Nações Unidas, o Conselho de Segurança, o Tribunal de Haia... que deveriam se ocupar destes problemas. Por que não os ativar quando há crimes de guerra? Aí está Tony Blair e ninguém o interroga, ao passo que, sim, interroga-se as pessoas na África. Que estas instituições façam o seu trabalho. Contudo, continuamos apoiando ditadores e criminosos de guerra. No Iraque, estávamos lutando contra a ditadura, eles a apoiavam. Depois, de repente, decidiram, vale, vamos mudá-la para outra coisa. Ninguém perguntou aos iraquianos o que queriam. Nem naquele momento e nem agora.
Assim como na Líbia.
Exatamente. Entra outro exército, as milícias. Há ali quatro países, uma potência apoiando a tal bando, outra a outro. Diria que é uma decisão do povo líbio?
Em sua opinião, José María Aznar também deveria ser julgado?
Acredito que isso deveria ser decidido pelo próprio povo. Podem dizer: este homem nos governava e mentiu. Devemos julgá-lo porque tinha um cargo de responsabilidade para o qual o elegemos e não fez bem o seu trabalho, enganou-nos. Caso trabalhe em uma pequena loja e desaparecem dez euros do caixa, se pode chamar a polícia e você será investigado. Por que não se pode fazer o mesmo com os políticos? Roubam, mentem, falsificam notícias, invadem, fazem tudo, e estamos na democracia...
Parece que Assad já venceu militarmente. O que o restante dos países precisa fazer agora? Reconhecê-lo ou não?
Acredito que o mundo está mais uma vez dividido. Rússia, Estados Unidos e França estão fornecendo armas para um bando ou outro. Em um mundo ideal, isto não aconteceria. Não podemos lutar contra os ditadores, com nosso povo encarcerado, bombardeado, enquanto os povos no Ocidente não fazem praticamente nada.
Tudo bem organizar conferências, ir à rua para se manifestar em um sábado, quando não se trabalha... mas, se você se preocupa de verdade e pensa que há uma injustiça, é preciso dar mais passos. Se não se faz isso, estamos prejudicados de verdade. A Europa estará prejudicada de verdade, quero dizer. Porque o que foi durante muitos, muitos anos nosso problema, agora é parte da Europa. Seja por chegar os refugiados, sejam por outras coisas. As pessoas ficam loucas em nossos países. Se você perde tudo, fica louco, já não se importa com o que acontece. E isso causa muito medo para o futuro, o nosso e o da Europa. Temos que nos mexer, e fazer isso rápido.
Em 2007, 4 anos após a invasão do Iraque, você descreveu a vida ali como “uma continuação da miséria, mas pior” e “sem final à vista”. Passaram outros 12 anos. Há um final à vista?
Se algo está ocorrendo, é que irá piorar. Especialmente, a corrupção, que se infiltrou em quase todos os âmbitos do Governo, de cada instituição, dos mais altos cargos aos mais baixos. Antes, nós a calculávamos em milhares de libras [esterlinas]. E agora – os próprios corruptos admitem isso, graças ao conflito entre eles próprios, revelados em todos esses documentos, arquivos, números – se converteu em uma questão de milhões de libras, ou de dólares. Por exemplo, segundo o ex-primeiro-ministro Haider al-Abadi, a corrupção dentro do Exército faz com que haja cerca de 6.000 pessoas que não estão no Exército, mas que recebem seus salários: são chamados de soldados fantasmas. E o mesmo ocorre com os hospitais...
Nos quais alguns chamam os felizes anos 1970, o Iraque era o berço das artes, literatura e cultura de todo o mundo árabe. Contudo, deixou de ser muito antes da invasão. O que significa dizer agora “artes, literatura e cultura” no mundo árabe?
Há mais romancistas, mais mulheres escritoras, o que é muito bom. Há mais mulheres em posições de altas decisões, isso é uma evolução positiva. No caso do Iraque, há exposições, escrevi sobre algumas. Claro que há medo do extremismo religioso. São destruídas estátuas em lugares públicos. Há tendência a uma arte abstrata, que é uma espécie de salvadora, não no figurativo, pela qual os iraquianos eram famosos, sobretudo no ensino acadêmico. É uma evolução, os artistas buscam maneiras de expressar sua situação. Muitos abandonaram o país.
Você tem trabalhado sobre a situação das mulheres para vários organismos internacionais. À margem da pobreza, por que nas estatísticas a situação da mulher nos países árabes costuma aparecer no final das listas, pior que em outros países mais pobres?
Boa pergunta. Acredito que a causa é a pobreza em algumas partes, a falta de educação em outros países..., mas tentam. Curiosamente, a maior porcentagem de mulheres com estudos está na região do Golfo. Você imagina que as mulheres ali vivem em casa, não podem sair... mas, possuem os melhores resultados em nível universitário. Por isso, acredito que é mais a pobreza, a falta de educação. E não se pode esquecer que 40% das guerras do mundo, agora mesmo, ocorrem no mundo árabe. Isso afeta todo mundo, não só as mulheres, também os homens.
O nível educacional está se reduzindo. Nota-se. Nota-se nos estudantes da Faculdade de Medicina em Bagdá: veem seu professor duas vezes por semana, quando vem de Amã, porque não é seguro para ele ficar em Bagdá. Que tipo de educação podem receber? Que médico sairá daí, seja homem ou mulher? Este declínio é geral em países como o Iraque. A Palestina sempre foi considerada um dos países com melhor educação, graças à UNRWA [Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina], e agora Donald Trump disse que cortará o financiamento. O que podemos esperar?
Um desastre.
Um desastre total. Felizmente, alguns países árabes reduziram a brecha de fundos para financiá-la durante alguns poucos anos. Não sabemos o que acontecerá depois.
Sonha com uma revolução geral das mulheres no mundo árabe? Por onde seria necessário começar?
Acredito que é necessário trabalhar todos os níveis. Não é possível produzir uma mulher educada, com a mente aberta, emancipada, revolucionária, tudo, sem tocar todos os fatores. Começa em casa. Felizmente, no Iraque, ainda temos os pais que têm uma educação muito melhor que o restante. Ainda há alguns e cuidam de seus filhos, mesmo que cuidem deles no sentido de lhes ajudarem a abandonar o país. Mas, temos visto as mulheres na Argélia, no Sudão, realmente dão esperança. E antes no Iêmen, quando estavam na rua. Os regimes opressivos não lhes dão espaço, mas trabalham, não se rendem.
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“Os países árabes querem democracia, mas o Ocidente não tem interesse algum nisso”. Entrevista com Haifa Zangana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU