22 Janeiro 2015
"Temos falado demasiado e não sabíamos o que dizíamos: palavras como armas, palavras de guerra, desprezo lançado para o Islã... Temos desfigurado uma religião, o Islã, deixamo-la confundida com extremismos que fazem referência a ela, mas que não são muito diversos daqueles presentes ainda hoje em diversas religiões e em ideologias não religiosas", escreve Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado pelo jornal La Stampa, 18-01-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
A estima e amizade que há décadas nutro por Giuseppe Laras, ex=rabino-chefe de Milão, me levam a fazer uma interlocução com suas reflexões no Corriere della Sera em reação aos eventos de Paris e dirigidas como apelo a todo o Ocidente. Gostaria de precisar melhor o que faz parte como necessidade e tarefa para nós cristãos e para os judeus, no diálogo compartilhado. Na verdade, o que são hoje judeus e cristãos? São irmãos gêmeos nascidos de um único tronco, o da Bíblia hebraica, por nós cristãos definida como Antigo Testamento.
No I século a.C. eram diversos os hebraísmos presentes (saduceus, fariseus, essênios) e judeus eram também Jesus e seus discípulos. No I século d.C., respectivamente após a histórica parábola de Jesus e após a destruição do templo por obra dos romanos em 70 d.C., eis afirmarem-se os dois grupos dos fariseus (o judaísmo rabínico) e dos cristãos (definidos também como nazarenos galileus, minim): os primeiros puseram no centro de sua fé a Tora; os outros, ao invés, mediante uma leitura do cumprimento das profecias, puseram no centro o Messias prometido, isto é, Jesus de Nazaré, reconhecido como Mestre, Profeta, Justo e, em virtude de sua ressurreição, Senhor e Messias.
É este o grande, originário cisma, uma divisão que – como afirmou Joseph Ratzinger – era legítima a partir das próprias Escrituras interpretadas de modo diverso. Os judeus não são “irmãos mais velhos” (expressão carregada de afeto e simpatia, mas teologicamente não correta), são irmãos que compartilham conosco o único Pai, Deus, e os pais na fé: Abraão, Isaque, Jacó, Moisés e Davi. Entre judeus e cristãos há certamente uma assimetria: nós não podemos viver como cristãos sem o Antigo Testamento, enquanto os judeus podem viver sem o Novo Testamento. No nosso diálogo, que o apóstolo Paulo corajosamente define também como “zelo” (Ro 11,11.14), as relações são de emulação, e por isso não fáceis, mas nós somos chamados à reconciliação sabendo, como escreve o mesmo Paulo, que “sua readmissão no final dos tempos será uma ressurreição dos mortos” (Ro 11,15).
Mas, nesta nossa relação há um tema candente sobre o qual não parece haver compreensão: o tema da terra e do Estado de Israel. Segundo as Escrituras do Novo Testamento existe um Israel de Deus que são os judeus em aliança com Deus, mas nem todo Israel é o Israel de Deus, é descendência de Abraão. Assim como nem todos os nascidos em contexto de cristandade são cristãos. É certo que espontaneamente a Igreja se sente ligada aos judeus que creem, os quais estão com Deus numa aliança jamais revogada e vivem segundo suas exigências, mas não identifica esta aliança, que pertence ao âmbito da fé, com uma dimensão étnica, cultural ou política. Nós cristãos, que já não temos mais terra nem pátria, porque toda terra estrangeira é para nós pátria – como se lê no A Diogneto, um esplêndido texto das origens cristãs -, sendo cidadãos do mundo em condições de fazer escolhas políticas, podemos querer ou não querer o Estado de Israel, mas, teologicamente não temos palavras em mérito. Isso não significa deixar os judeus na metade do vau. Pessoalmente auguro o mais rápido possível a presença de um estado de Israel e de um palestinense, em paz entre eles e reconhecidos pelo mundo, mas, teologicamente minha fé não me autoriza a levantar a hipótese de um estado de Israel.
E é complementar a esta reflexão pronunciar uma palavra sobre os eventos da última semana. Temos falado demasiado e não sabíamos o que dizíamos: palavras como armas, palavras de guerra, desprezo lançado para o Islã... Temos desfigurado uma religião, o Islã, deixamo-la confundida com extremismos que fazem referência a ela, mas que não são muito diversos daqueles presentes ainda hoje em diversas religiões e em ideologias não religiosas. Sem dúvida, temos a consciência da natureza manipuladora do fundamentalismo, sabemos que não custa nada apropriar-se de Deus como de uma bandeira (e que Deus será aquele na mente dos terroristas?), sabemos que não é verdade que todos os muçulmanos são inclinados à violência. Sabemos também que por ora há um choque de civilizações, isto é, não se combatem Islã e o cristianismo, não há uma guerra em curso e declará-la tal é irresponsável. Há, ao invés, um terrorismo que se diz inspirado pelo Islã, que individua como inimigos alguns lugares ou sujeitos precisos do Ocidente e que ceifa também muitíssimas vítimas muçulmanas no Oriente Médio.
Hoje, mais do que nunca, ocorre que haja responsabilidade, ocorre racionalizar os temores que nos invadem e não deixar que sejam cavalgados, com o efeito de aumenta-los e torná-los ingovernáveis, da parte de forças políticas bárbaras e prontas a declarar guerra porque só se têm diante de si um inimigo, ao custo de criá-lo, encontram uma forte identidade que não têm em si mesmas, desprovidas como são de humanismo. O recente discurso do presidente egípcio Al Sisi na universidade al-Azhar do Cairo traçou para os muçulmanos uma via que contém muitas deixas e perguntas. Queremos ajudar estes fermentos, queremos fazer algo para que se abra um caminho diverso, na insígnia da escuta e do respeito recíproco? Porque não começar pelo preceito universal da regra de ouro: “Não faças aos outros o que não queres que seja feito a ti”, quem sabe vetando-nos caricaturas ofensivas para o Islã, conjugando a nossa liberdade com o respeito pelo outro, sobretudo nesta hora histórica na qual nos sentimos ameaçados por um terrorismo que recorre ao nome de Deus e se pretende islâmico? É verdade: uma caricatura, também ofensiva, jamais pode ser vingada com a violência e o homicídio, esta é uma barbárie criminal! Mas, com a metáfora da reação espontânea do punho fechado a quem ofende a mãe, o Papa Francisco se fez entender pelas pessoas mais simples e cotidianas.
Ora, se é verdade que judaísmo e cristianismo são principalmente formas de fé e não somente religiões, é preciso reconhecer também ao Islã a capacidade de ser uma religião tendo no próprio coração a fé. A única coisa que me ouço dizer – e uso as palavras de Marcel Gauchet – é que “o cristianismo é a religião que requer a saída da religião”, por ser capaz de uma crítica, de uma distância da própria religião. No cristianismo, de fato, não é o livro que está no centro, mas um homem, Jesus Cristo, que os cristãos confessam como Senhor que foi morto condenado precisamente por suas tomadas de posição que rompiam com a religião existente. Nesta relação entre religião e fé, relação que o cristianismo soube por em foco e distinguir, continua verdade que o Islã, em sua não contemporaneidade com a nossa cultura, tem uma lenta evolução e ainda deve fazer um longo caminho de confronto com a modernidade, isto é, com a crítica literária e teológica dos escritos sagrados em primeiro lugar, mas também com a racionalidade humana, exercício absolutamente necessário para purificar toda e qualquer religião. Além disso, os próprios judeus “religiosos” de Mea Shearim, que são uma minoria significativa, ainda não elaboraram a possibilidade de um estado que não seja teocrático e de uma lei civil distinta da religiosa... E, análoga tentação golpeia ainda franjas fundamentalistas de cristãos americanos.
Há um caminho a fazer da parte de todos os monoteísmos que no passado, embora em formas, modos e intensidade diversas, combateram guerras de religião, perseguiram os hereges, foram intolerantes. Neste caminho, é urgente uma leitura interpretativa diversa do Antigo Testamento e do Corão, sobretudo nas páginas carregadas de violência e de vinganças ameaçadas e consumadas. Nem seja esquecido que no decurso da história também algumas páginas do Novo Testamento conheceram interpretações violentas e intolerantes, tornadas praxes violentas e intolerantes. Quanto à relação entre judeus e cristãos – que não pode ser comparada àquela com o Islã ou com as outras religiões porque de natureza intrínseca e iniludível – é preciso permanecer sempre vigilantes para não judaizar da parte dos cristãos e para não ceder à indiferença com os cristãos da parte dos judeus. São para sempre irmãos gêmeos.
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Enzo Bianchi: um caminho para as três religiões - Instituto Humanitas Unisinos - IHU