11 Agosto 2014
"No Iraque como na Síria, não está em risco apenas a sobrevivência de uma comunidade cristã presente na região desde os primeiríssimos séculos: está em risco a humanidade entendida como capacidade de se sentir e de ser responsável pelo seu próprio semelhante; está em risco aquele dote humano de expressar sentimentos e questões morais que chamamos de cultura; está em risco o patrimônio ético da convivência, do diálogo, do debate para enfrentarmos juntos o duro trabalho do viver; está em risco a própria relação com a criação", escreve o monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal La Stampa, 08-08-2014.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"Aqui em Qaraqosh as pessoas têm muito medo: se os fundamentalistas entrarem aqui, vai ser um caos, uma tragédia gravíssima." Assim, no dia 21 de julho, nos escrevia Wisam, monge iraquiano que foi várias vezes hóspede da nossa Comunidade em Bose, junto com seus dois coirmãos.
A última mensagem que ele nos mandou estava datada de 2 de agosto e continha os votos para a festa da Transfiguração: "Esperamos que também seja a Transfiguração do Iraque que está sofrendo muito".
Nestas horas, Wisam e os seus irmãos também estão entre as dezenas de milhares de refugiados cristãos em fuga para um lugar que não existe. A história dessa pequena comunidade monástica é emblemática da tragédia que os cristãos estão vivendo naquelas terras: em 2005, o carro em que dois deles, então estudantes universitários de Bagdá, estavam viajando para ir a uma cerimônia de casamento foi atingida por um projétil disparado de um carro blindado norte-americano.
Um deles morreu, o outro sairia do estado de coma depois de alguns meses: desde então, ele se move com duas pernas artificiais, e não ouso imaginá-lo hoje em fuga apressada.
De Bagdá, depois, se deslocaram para a planície de Nínive, onde parecia que os cristãos podiam encontrar maior proteção: lá, levavam a sua vida monástica alternando a oração da noite com o trabalho de manutenção das estradas e de coleta de detritos e resíduos para se sustentarem e para ajudar as pessoas que estavam ainda mais em dificuldade do que eles.
Tudo isso até ontem. Depois, eles também devem ter acabado engolidos no rio de sofrimentos que está varrendo os cristãos daquela região martirizada. O Papa Francisco, e com ele bispos e patriarcas daquelas terras, não perdem uma oportunidade para chamar a atenção, exortar, admoestar, invocar gestos e ações dignas do ser humano: mas a situação só piora.
Os órgãos internacionais estão paralisados, a política externa europeia é inexistente, o Parlamento italiano está comprometido ao extremo para reformar a si mesmo, as urgências de cada um de nós são outras, da crise econômica e ocupacional à organização das "merecidas" férias... e assim dezenas de milhares de pessoas abandonam as suas casas sem levar nada consigo, centenas são mortas, os mais vulneráveis – idosos, doentes, crianças – morrem pelas insustentáveis fadigas de uma viagem sem esperança.
Os cristãos são as primeiras vítimas dessas atrocidades, e a sua perseverança na fé dos pais é motivo de ostracismo e de condenação, mas, junto com eles, também são atingidos os seus vizinhos muçulmanos.
Voltam à mente aqui as palavras do testamento do frei Christian, sequestrado e morto com os seus irmãos na Argélia: "Seria um preço caro demais para aquela que, talvez, chamaríamos de 'graça do martírio', devê-la a um argelino, qualquer que seja, especialmente se ele disser que está agindo em fidelidade ao que crê ser o Islã. Eu sei o desprezo que foi empilhado sobre os argelinos globalmente. Sei também as caricaturas do Islã que um certo islamismo encoraja. É fácil demais ter a consciência tranquila, identificando essa forma religiosa com os integrismos dos seus extremistas".
São palavras que eu ouvi serem aplicadas por Wisam à situação iraquiana e aos muçulmanos da sua terra e que, em seu nome, sinto que devo reafirmar ainda hoje.
Certamente, o desencorajamento, o sentimento de impotência, o instinto de remoção para vencer a angústia, a impossibilidade de assumir sobre as nossas próprias costas todas as misérias do mundo nos freiam, mas o que ainda tem que acontecer para que as nossas consciências sejam sacudidas e para que quem tem o poder faça algo para frear o massacre?
A história vai nos pedir contas dessa catástrofe humanitária que não conseguimos ou não queremos impedir. Porque, no Iraque como na Síria, não está em risco apenas a sobrevivência de uma comunidade cristã presente na região desde os primeiríssimos séculos: está em risco a humanidade entendida como capacidade de se sentir e de ser responsável pelo seu próprio semelhante; está em risco aquele dote humano de expressar sentimentos e questões morais que chamamos de cultura; está em risco o patrimônio ético da convivência, do diálogo, do debate para enfrentarmos juntos o duro trabalho do viver; está em risco a própria relação com a criação.
Na tragédia iraquiana, está em jogo a nossa resposta à lancinante interrogação posta por Primo Levi há 70 anos: perguntamo-nos "se isto é um homem", se somos seres humanos, nós que nos acostumamos a acompanhar esses eventos protegidos por uma tela, sempre prontos para mudar de canal, se são dignos da autoridade e do poder a eles conferido aqueles que fecham os olhos e pensam em outra coisa ou, pior ainda, que engenhosamente encontram oportunidades de ganhar com as catástrofes que se abatem sobre os outros.
Perguntemo-nos que crescimento econômico é esse alimentado pelos mercadores de armas e pelos aproveitadores de todos os tipos; que diplomacia é essa que só se preocupa com equilibrismos, com não ingerência, com respeito de zonas de influência; que política é essa que perdeu o sentido da polis e do mundo como espaço comum.
Se não agora, quando é que vamos nos decidir a trabalhar com resoluta paciência por um desarmamento das mentes, dos corações, dos braços? Quando nos lembraremos de que quem pronunciou a terrível frase "Por acaso eu sou o guarda do meu irmão?" era, na realidade, o seu assassino?
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O nosso silêncio culpado. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU