“O que nos absorve como povos e classes é um processo de barbárie que implica a canibalização das relações sociais e no que diz respeito à natureza. Sobreviver como povos será tão árduo como foi para os povos originários da invasão colonial espanhola”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 27-03-2020. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
“O período compreendido entre 1990 a 2025/2050 provavelmente será um período de pouca paz, pouca estabilidade e pouca legitimação”, escrevia Immanuel Wallerstein em 1994 [1]. Em períodos de turbulência e confusão, convém consultar bússolas. Ele era uma das mais notáveis e, além disso, era um de nós.
A rigor, grandes eventos globais, como guerras e pandemias, não criam novas tendências, mas aprofundam e aceleram as existentes.
Três tendências fundamentais, que nasceram provavelmente como resultado da revolução de 1968, estão se desenrolando de maneira formidável no momento: a crise do sistema-mundo, com a consequente transição hegemônica do Ocidente-Oriente, a militarização das sociedades, diante da incapacidade dos Estados-nação de integrar e conter as classes perigosas, e as múltiplas insurgências dos de baixo, que são o aspecto central deste período.
Quem pensa na centralidade do conflito entre Estados, na hegemonia e na geopolítica, pode confiar que a tendência à ascensão da Ásia-Pacífico, em particular da China, e o declínio dos Estados Unidos está se acelerando durante a pandemia.
O Pentágono e outras agências farão tudo o que for possível para desacelerar esse processo, uma vez que não podem revertê-lo, com as mais diversas medidas, incluindo um não descartável confronto nuclear, que acreditam que podem vencer. Nem mesmo algo tão sinistro pode modificar as tendências de fundo.
Aqueles de nós envolvidos na luta contra o patriarcado, o colonialismo e o capitalismo não podemos confiar nos Estados que estão militarizando rapidamente nossas sociedades. Quero me concentrar em como a situação atual afeta os povos/sociedades em movimento na situação atual.
Primeiro, acelera-se a crise civilizatória, que se sobrepõe à crise do sistema-mundo. Não estamos enfrentando mais uma crise, mas o início de um longo processo (Wallerstein) de caos sistêmico, atravessado por guerras e pandemias, que durará várias décadas até que se estabilize uma nova ordem.
Este período que, insisto, não é uma conjuntura ou uma crise tradicional, mas algo completamente diferente, pode ser definido como colapso, desde que não entendamos por isso um evento pontual, mas um período mais ou menos prolongado.
Durante esse colapso ou caos, produz-se uma forte concorrência entre estados e capitais, um poderoso conflito entre classes e povos com esses poderes, em meio a uma crescente crise climática e de saúde.
Por colapso, entendo (seguindo Ramón Fernández e Luis González) [2] a diminuição drástica da complexidade política, econômica e social de uma estrutura social. Sistemas complexos perdem resiliência na medida em que aumentam sua complexidade para responder aos desafios que enfrentam. As sociedades baseadas na dominação tendem a aumentar sua complexidade em resposta aos desafios que vão enfrentando (p. 26, t. I).
Por exemplo: gastam energia, tornam-se mais hierárquicas e rígidas e não podem evoluir. Concretamente, a grande cidade é muito mais vulnerável do que uma comunidade rural. Esta é autossuficiente, usa a energia necessária, não polui, é menos hierárquica e, portanto, é mais eficiente. Aquela não tem saída, exceto o colapso.
Em segundo lugar, durante esse longo processo de colapso, mais parecido com uma pedra rolando por uma ladeira que caindo de um precipício, haverá uma enorme destruição material e, infelizmente, de vidas humanas e não humanas. É a condição para passar do complexo, grande, rápido e centralizado, para o simples, lento, pequeno e descentralizado (p. 337, t. II).
O que nos absorve como povos e classes é um processo de barbárie que implica a canibalização das relações sociais e no que diz respeito à natureza. Sobreviver como povos será tão árduo como foi para os povos originários da invasão colonial espanhola. Um cataclismo que chamaram de “pachakutik”.
A terceira questão é como agir como movimentos antissistêmicos. O básico é entender que vivemos no interior de um campo de concentração, algo evidente nestes dias de confinamento obrigatório. Como se resiste e muda o mundo dentro de um campo?
Organizarmo-nos é a primeira coisa. Fazer isso com discrição, para que os guardas não descubram (da direita e da esquerda), pois é uma condição de sobrevivência.
O que se segue: trabalhar em coletivo (minga/tequio), comunitariamente, para garantir autonomia de alimentos, água, saúde, em uma palavra: reprodução da vida. Decidir em coletivo, em assembleia.
Podemos agir assim. Os povos originários em movimento fazem isso diariamente: zapatistas, mapuche, nasa/misak, entre outros. Assim como os companheiros da Comunidade Acapantizingo de Iztapalapa (Cidade do México), na barriga do monstro.
Podemos construir arcas. Exemplos não nos faltam.
Notas:
[1] “Paz, estabilidad y legitimación”, en “Capitalismo histórico y movimientos anti-sistémicos”, Akal, 2004.
[2] “En la espiral de la energia”, Libros en Acción/Baladre, 2014.
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