O Papa que veio no fim do mundo. Artigo de Antonio Spadaro

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01 Julho 2025

Leão XIV se vê diante da crise do modelo liberal que nasce em sua América. Eis o desafio de um pontífice que, como Francisco, não acredita que a alternativa seja o Estado ético.

O artigo é de Antonio Spadaro, jesuíta e ex-diretor da revista La Civiltà Cattolica, publicado por La Repubblica, 01-07-2025.

Eis o artigo.

À frente da Igreja Católica, a complexidade freudiana e imaginativa de Buenos Aires foi entregue a uma dupla lente focal: Chicago e Chiclayo. Leão XIV é uma figura complexa, ainda a ser descoberta porque ainda não se descobriu na forma de seu governo papal. Certamente, sua biografia — de sua experiência na ordem agostiniana à sua missão no Peru, passando por seus papéis na Cúria Romana — fez dele um profundo especialista em tensões eclesiais globais. Mas seu primeiro passaporte é americano. E é justamente de sua terra que vêm algumas das questões mais prementes sobre o papel público do cristianismo hoje.

Depois de décadas em que o liberalismo parecia oferecer garantias de liberdade, prosperidade e respeito mútuo, hoje muitos intelectuais e fiéis denunciam seus limites. Em particular, enfatiza-se como o liberalismo, em seu desenvolvimento recente, produziu solidão, desintegração social, enfraquecimento dos laços comunitários e, acima de tudo, uma crescente marginalização da religião no espaço público.

Diante desse cenário, o chamado “pós-liberalismo cristão” ganha espaço em solo americano, propondo uma alternativa: repensar o papel da religião como fundamento da unidade política. Nessa visão, o Estado deve reconhecer – de alguma forma – a verdade religiosa e orientar-se para um bem comum objetivo, que não pode ignorar a lei moral e a tradição cristã.

Adrian Vermeule, professor de direito na Faculdade de Direito de Harvard, propõe que o Estado supere a neutralidade liberal e se oriente deliberadamente para uma visão do bem enraizada na doutrina católica. De acordo com essa perspectiva, a democracia representativa não é mais considerada uma necessidade. O Estado deve ter o poder de direcionar a vida pública para valores objetivos, mesmo que isso implique uma redução da liberdade individual. É uma proposta que rompe com a tradição moderna e remonta, em parte, à tradição medieval e contrarrevolucionária.

Esse tipo de pensamento não se limita aos círculos acadêmicos. Na vida pública americana, encontrou expressão, entre outros, na figura de J.D. Vance, atual vice-presidente dos Estados Unidos. E continua a encontrá-la ao almejar uma mudança de regime com todos os seus elementos, como argumenta Patrick Deneen em seu livro Mudança de regime: rumo a um futuro pós-liberal.

Francisco e Leão revelaram uma profunda contradição nesse pensamento: enquanto proclamam a primazia da religião sobre a política, muitos pós-liberais acabam subordinando a Igreja ao interesse nacional. É a velha tentação já vista na Europa na década de 1930, quando parte do catolicismo europeu foi atraído por regimes autoritários que exaltavam a religião como o elo da identidade: "Deus, pátria e família". Hoje, o risco reaparece na forma de um catolicismo funcional a um projeto político e nacional, em vez de fiel à sua vocação universal e profética.

O Papa americano, embora seu olhar seja universal, já se vê atraído para o debate pelo próprio fato de ser americano. Ele encontrou algumas questões cruciais em sua mesa, mesmo antes de se sentar pela primeira vez: qual é o papel da religião no espaço público? Como se constrói o bem comum em um mundo pluralista? Elas já estavam na mesa de Bergoglio, e ele respondeu circunavegando as periferias da Europa e do mundo – da Amazônia à Mongólia – em busca de uma resposta, e então trazendo essas fronteiras para Roma com seus sínodos e consistórios. Prevost carrega essas questões consigo, até mesmo na maneira como se veste.

Ele sabe que este é um ponto crucial do seu pontificado. E tem um nome: Dignitatis humanae, a declaração conciliar sobre a liberdade religiosa. Para muitos pós-liberais, representa uma rendição ao relativismo. Defender essa declaração hoje significa reconhecer que a liberdade é a condição da fé autêntica. Em seu discurso de 17 de maio à Fundação Centesimus Annus, Prevost declarou que a Igreja "não quer levantar a bandeira da posse da verdade, nem na análise dos problemas, nem na sua resolução". E acrescentou: "A doutrinação é imoral, impede o juízo crítico, ataca a sagrada liberdade da consciência – mesmo que errônea – e se fecha a novas reflexões porque recusa o movimento, a mudança ou a evolução das ideias diante de novos problemas". Essas palavras representam uma resposta clara àqueles que, em nome da verdade, invocam formas de coerção ou hegemonia.

O cenário global não é alheio a este debate eclesial. Um ensaio com o título emblemático de América em um mundo pós-americano foi publicado recentemente na Foreign Affairs. A autora, Kori Schake, observa que os Estados Unidos, na tentativa de reafirmar sua grandeza, estão empurrando o mundo a construir alternativas à ordem outrora liderada por Washington. Neste contexto geopolítico, o cristianismo corre o risco de seguir o mesmo destino: refúgio na identidade, suspeita do pluralismo, uso da religião como instrumento de coesão nacional em vez de proposta de liberdade. E é por isso que Leão, em sua homilia para as ordenações sacerdotais de 31 de maio, propôs uma imagem luminosa e alternativa: a da "Igreja extrovertida". Francisco a definiu como "extrovertida", reiterando: "O sagrado não deve ser um suporte de poder e o poder não deve ser sustentado pela sacralidade".

Leão, com sábia prudência e passo furtivo, busca caminhos para encontrar na sua experiência passada uma base sólida, embora obviamente não suficiente: à medida que o Papa muda, as proporções explodem. A verdadeira alternativa ao liberalismo esgotado – porque é isso que ele realmente é – não será o retorno à ordem, mas uma nova fase de criatividade eclesial.

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