08 Mai 2025
"É isso que está em jogo para a fé. Não apenas a defesa da doutrina, mas a salvaguarda do humano. Francisco dizia isso no G7: falar de tecnologia significa falar sobre o que significa ser humanos", escreve Antonio Spadaro, jesuíta e ex-diretor da revista La Civiltà Cattolica, publicado por La Repubblica, 07-05-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Começa o conclave. O novo papa será escolhido em breve pelos cardeais com celulares desligados e conexões desativadas por poderosos sistemas bloqueadores. Nenhum contato com o mundo exterior, nenhuma possibilidade de interagir on-line. Enquanto os nomes dos papáveis pipocam de uma manchete para outra, com análises muitas vezes enquadradas em categorias desgastadas - progressistas contra conservadores, teólogos contra pastores, globalistas contra “papáveis italianos” - no cerne desse jogo de previsões, o que corre o risco de escapar é o desafio que o futuro papa terá de enfrentar não apenas para a Igreja, mas para toda a humanidade. E que, com aqueles celulares desligados e desconectados, tem uma assonância mais do que simbólica: a inteligência artificial.
Não será apenas uma questão tecnológica. Já é uma questão espiritual, antropológica e cultural. O próximo pontífice herdará de Francisco uma Igreja já em caminho, sinodal e atenta ao mundo. Mas ele terá que liderar esse caminho em uma época em que a inteligência artificial não é mais apenas instrumento, mas um ecossistema: permeia a vida cotidiana, condiciona o pensamento, molda o desejo. E coloca em discussão o próprio ser humano.
O Papa Francisco compreendeu o sentido profundo do desafio. Ele não opôs resistência ao digital, não sucumbiu ao fascínio ideológico da negação à tecnologia. Lembro que, nas Filipinas, conversando com um estudante de engenharia que lhe perguntou como viver em um tempo de sobrecarga de informações, ele falou sobre o risco de nos tornarmos “museus” cheios de dados, mas sem sabedoria, seres humanos reduzidos a bancos de dados. E, em janeiro passado, quis que um dos últimos documentos do dicastério de seu pontificado, Antiqua et nova - assinado pelos dicastérios para a doutrina da fé e para a cultura e educação - fosse dedicado precisamente à relação entre inteligência humana e artificial.
Mas agora estamos entrando em outra fase. Não se trata mais apenas de se adaptar à cultura digital, mas de discernir a forma que a inteligência humana assumirá no confronto - eventualmente desigual - com as máquinas. Gunther Anders falava sobre a “vergonha prometeica” que se apodera de nós, seres humanos, diante dos poderosos prodígios que somos capazes de produzir: coramos. Já em 1964, Paulo VI falava, com extraordinária visão ampla, sobre a necessidade de o “cérebro mecânico” estar a serviço do “cérebro espiritual” a ponto de “tocar o sagrado”. Hoje, o risco é o oposto: que o cérebro espiritual seja moldado pelo cérebro mecânico, que acabe assumindo suas lógicas e seus ritmos, a ponto de confundir o discernimento com a eficiência, o pensamento com o output.
É isso que está em jogo para a fé. Não apenas a defesa da doutrina, mas a salvaguarda do humano. Francisco dizia isso no G7: falar de tecnologia significa falar sobre o que significa ser humanos. Se a inteligência artificial se tornar “commodity” - como disse um empresário do Vale do Silício citado no Wall Street Journal em 31 de março último - será ainda mais urgente reafirmar o valor da inteligência espiritual: aquela que busca sentido, que reconhece a pergunta, que não se contenta com respostas preditivas. A admiração pela complexidade do cosmos, a angústia existencial diante da superabundância de informações, a sensação de impotência diante da onipotência do algoritmo: tudo isso nos leva a se questionar sobre o que distingue o homem da máquina. E a resposta, mais uma vez, passa pela fé. E o novo papa não poderá ignorar isso porque o tema defronta-se com a própria missão da Igreja em modalidades nunca antes experimentadas. É aqui que entra em cena uma nova temporada para a teologia. O que é necessário é uma “ciberteologia” - como eu a tinha definido em 2012 - que não banalize a fé em códigos éticos para startuppers, mas saiba questionar o sentido da vida em uma época de dados e algoritmos.
O risco, como Elizabeth Bruenig escreveu no Atlantic, é que alguns ambientes tecnológicos redescubram o cristianismo apenas como utility: um código moral para tornar os líderes mais confiáveis, uma rede para obter crédito, uma disciplina para orientar as escolhas empresariais. Mas o cristianismo – se for tal - não é um macete, um expediente para resolver pequenos problemas cotidianos. É, antes, uma rendição radical ao amor divino, uma verdade que transforma e desestabiliza, não que otimiza.
No centro da cultura digital, portanto, ressurge a questão religiosa. Isso pode ser visto nos sinais de renovado interesse espiritual, mesmo em ambientes insuspeitos. Foi isso que se viu, emblematicamente, durante um encontro realizada no Sheldonian Theatre, em Oxford, onde dois fundadores do Twitter e do Pinterest falaram da necessidade de “reconectar-se com o sagrado” em um mundo dominado pelo digital. A tecnologia, disseram, é apenas uma extensão do ser humano, não seu fim. E as religiões, com suas milenárias sabedorias, ainda guardam a “mais preciosa tecnologia da Terra”: a do sentido, do limite, da relação.
E é exatamente aqui que poderia estar a grande responsabilidade do futuro papa: não apenas compreender a época, mas oferecer à Igreja - e ao mundo – os instrumentos para proteger o ser humano no tempo da inteligência artificial. Não se trata de demonizar a tecnologia, mas de entendê-la como “inteligência estendida” de valor espiritual, como um recurso a ser orientado, não como um poder o qual se submeter.
Sabendo que grande parte de nossa inteligência espiritual e seus produtos estarão ali, alimentando os algoritmos. Francisco intuiu a magnitude do desafio e iniciou um grupo de trabalho sinodal, um laboratório teológico e cultural que, também on-line, continua a explorar os pontos mais complexos dessa mudança. Provavelmente será seu sucessor que colherá os frutos desse trabalho e que terá de se mensurar com a pergunta decisiva: a inteligência humana, imersa na rede, saberá como continuar sendo humana?
Para responder, será preciso uma fé capaz de habitar o futuro, de falar ao coração do homem hibridizado com o digital, de mostrar - mesmo em meio aos algoritmos - a verdade da pergunta que nenhuma máquina pode gerar sozinha: quem eu sou?
Em um tempo que parece ter substituído Deus pelo código, os cardeais votarão no escuro e no silêncio. Mas quando o papa for eleito, o sinal será reativado. O pontífice poderá reafirmar que todo algoritmo, por mais sofisticado que seja, continua sendo um fio na longa teia que nos liga ao Criador. E que, mais cedo ou mais tarde, todos nós sentiremos - como escrevia Chesterton – o “twitch upon the thread”: a contração daquele fio invisível que nos leva de volta, para além de toda inovação, à pergunta mais antiga e mais verdadeira.