Mundo ferido pela “profanassíma trindade”. Destaques da semana

Por: Cristina Guerini | 26 Outubro 2024

Financeirização, corporativismo e a violência do Estado neoliberal formam a "profanassíma trindade", que mata, fere e deixa cicatrizes profundas. Inspirados pela poesia de Mia Couto, hoje, mais uma vez trazemos as chagas de um mundo ferido. Nos despedimos de Gustavo Gutiérrez, principal expoente da Teologia da Libertação e que sempre esteve ao lado dos mais pobres. Em Cali, na Colômbia, começou a 16ª COP da Biodiversidade, na esperança de salvar as espécies. Na política brasileira estamos à espera do segundo turno, presos ao neoliberalismo e à extrema-direita. Na Argentina, o desmonte do Estado.  Esses e outros assuntos nos Destaques da Semana do IHU.

Confira os destaques na versão em áudio.

Cicatrizes

A estrada é uma espada. A sua lâmina rasga o corpo da terra. Não tarda a nossa nação seja um emaranhado de cicatrizes, um mapa feito de tantos golpes que nos orgulharemos mais das feridas que do intacto corpo que ainda conseguimos salvar. – Mia Couto (Mulheres Cinza. Caminho: Portugal, 2015

Adeus ao pai da Teologia da Libertação

Gustavo Gutiérrez, um dos precursores da Teologia da Libertação, nos deixou essa semana, aos 96 anos. Perseguido por décadas pelo Vaticano por defender a opção preferencial pelos pobres, foi recebido em 2015 pelo papa Francisco e viu Roma levantar o veto ao seu pensamento em 2019. Com uma teologia de “pés no chão”, "que é – e é chamada a suportar – como aguilhão e provocação, além de carícia, consolo e alegria”, que encarnou o espírito do Vaticano II, Gutiérrez reconheceu o pontificado de Francisco como um “'kairós' que ninguém esperava, um grande dom”. São muitas as memórias de uma das mais importantes figuras da Teologia Latino-americana. Confira a seguir alguns dos textos que publicamos essa semana:

A luta continua

Em um clima de despedida, Pepe Mujica apareceu de surpresa no comício de encerramento na campanha da Frente Ampla uruguaia. Comovendo todas as gerações, ele disse que a “luta continua, [...] os mais jovens vão viver uma mudança do mundo que não é conhecida pela humanidade, a inteligência será tão importante quanto o capital.”. Lembrou ainda que o “maior desafio é educar as próximas gerações”. Ao final, exortou o povo: “não ao ódio, é preciso trabalhar pela esperança”. E na insurgência da América Latina, onde há um laboratório dos movimentos de luta populares dos povos, pode ser vejamos a construção de seus mundos em resistência, avalia Raúl Zibechi

Política dos afetos

A mobilização de afetos da extrema-direita aqui no Brasil ganha eco entre as camadas médias de trabalhadores, que, por ironia, ascenderam socialmente durantes os governos progressistas  Da mesma forma, Javier Milei mobiliza uma multidão na Argentina, cujo desmonte da proteção social vai mais longe, porque “não há ‘modernização’ do estado, mas sim ‘destruição’ do estado sob a ilusão de que os capitais privados substituem suas funções”. Na esteira do projeto neoliberal, com um discurso sedutor, que se vale de técnicas de treinamento e da estética religiosa e converte milhões de brasileiros: a Teologia Coaching, que distorce o Evangelho de Jesus Cristo. O assunto também foi tema de debate essa semana por aqui. Nos Estados Unidos, o nacionalismo se tornou uma religião, e o resultado das próximas eleições vai definir parte da política futura do planeta. E a igreja católica não é coadjuvante no processo eleitoral dos EUA. Ainda sobre esse receituário que tem levado o mundo ao fracasso, Marcio Pochmann foi cirúrgico: “o fanatismo religioso e o banditismo social são consequências diretas da predominância do receituário neoliberal”. 

Amor ao inimigo

Por falar em seguir o EvangelhoMassimo Recalcati nos provocou a amarmos os nossos inimigos, como ensinou Cristo. “O amor pelo inimigo é escandalosamente afirmado por Jesus: ame quem não é seu, quem não é como você, quem não está à sua disposição, ame a distância que o separa de você, ame que ele vá embora, que não fique, que não esteja aqui, que nunca pertença a você. Disruptura radical de toda simetria e reciprocidade especular. É por isso que ele nos lembra que o ato de amor é sempre a fundo perdido. Não se realiza ao ser retribuído, mas ao ser despendido sem medida, ilimitadamente, sem interesses”. 

Desocidentalização

Começou o encontro dos BRICS, na Rússia. Mais um movimento de desocidentalização. A criação de uma nova moeda para fazer frente ao dólar está no radar. A proposta de João Nogueira Jr. afirma que será um “divisor de águas nos assuntos monetários e financeiros globais” para substituir um “sistema monetário comandado pelos EUA tornou-se obsoleto e disfuncional; além de injusto, é claro. Mas substituí-lo exige determinação e criatividade políticas”. Enquanto isso, a moeda dos BRICS ainda é um sonho distante. Mas    

BANCOS

Novo contrato pela biodiversidade

No dia 21 de outubro começou a COP16 da Biodiversidade, que segue com as discussões até dia 01 de novembro. Apesar de apenas 33 países (o Brasil só levou um esboço) terem apresentados seus planos para cumprir o Marco Global da Biodiversidade,  “defender a conservação da biodiversidade também tem um aspecto ético e moral. Todos os organismos vivos hoje têm um pedigree que remonta a 3,7 bilhões de anos”. Na esteira da busca por um mundo biodiverso mais justo, a conferência encontra desafios para solucionar os problemas dos recursos para o financiamento das ações de mitigação e adaptação e também ao banco de dados genéticos que será digital e compartilhado entre as nações. Na esteira da crise climática, o governo brasileiro dá mais um passo para colapsar a Amazônia com o asfaltamento da BR-319. Tudo isso acontece na semana em o mundo ultrapassou sete dos oito limites que garantem a segurança do planeta.

ASSUSTADOR E PREOCUPANTE

Novo relatório divulgado pela Comissão de Segurança Planetária mostra que a Terra ultrapassou sete dos oito parâmetros de segurança para a integridade e para a vida.

Vários parâmetros vêm sendo examinados exaustivamente por mais de 60 cientistas há 15… pic.twitter.com/WfeIoTRaaK

Reparação fake news

Dois dias após o anúncio de um julgamento histórico em Londres em que 620 mil pessoas, 46 municípios e 1,5 mil empresas afetadas que pedem indenização bilionária, o governo federal se coçou para assinar um acordo com as mineradoras Samarco, Vale e BHP. A ação é sobre o caso do rompimento da barragem de rejeitos de minérios de Mariana, em Minas Gerais, em 2015. O pagamento do valor irrisório de R$ 30 mil para as indenizações individuais causou indignação nos atingidos. 

Giro ao extermínio do Oriente Médio

O extermínio de Israel em Gaza não arrefece, continua causando feridas, cicatrizes e dá poucas chances à sobrevivência do povo palestino. Mariana Mazzucato foi certeira ao afirmar que “para a guerra, o dinheiro surge do nada”. Impressionante mesmo, pois nesta sexta-feira Israel cumpriu sua promessa e atacou o Irã. Enquanto o conflito se expande, a população de Gaza é encurralada pela fome, doenças e amputações. As crianças que sobreviveram já não têm infância e o caso das irmãs solitárias na estrada é mais um entre tantos outros. A reconstrução não deve acontecer tão cedo. Por isso, Gaza, com suas vidas indignas, recruta a todos nós.

 Qamar and Sumaya Subuh were selling biscuits to support their family in Gaza when Sumaya was struck by a car. Images of Qamar carrying her sister slung over her shoulder quickly spread online. Al Jazeera later located the sisters and their family. pic.twitter.com/EGE4ToMfa2

Compromisso com os vulneráveis

“O padre mexicano Marcelo Perez, conhecido por seu ativismo social e denúncia da violência dos cartéis, foi assassinado em 20 de outubro. Seu assassinato faz parte de uma onda crescente de violência em um país onde o estado luta para controlar o crime organizado”. Realizava um trabalho incansável e corajoso pela paz e pelos direitos dos povos indígenas, além de ter incorporado uma pastoral marcada por seu compromisso com as comunidades mais vulneráveis. Desde a posse da nova presidenta mexicana, Claudia Sheinbaum, este é o segundo assassinato. O crime organizado parece testar os limites do novo governo.

Reta final

Entramos na reta final do Sínodo sobre a Sinodalidade. Em vistas do documento final, Mario Grech e Timothy Radcliffe pediram “profunda renovação da Igreja em novas situações, não em decisões e titulares” e liberdade e coragem, respectivamente. As mulheres e os LGBT+ suscitam expectativas de mudanças, mesmo que o prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé tenha deixado claro que a admissão de mulheres ao diaconato está fora de questão por enquanto, o que pode ser uma decepção

Desejamos uma boa semana a todos e todas!