Aos 88 anos, Gustavo Gutiérrez, o pai da Teologia da Libertação, é um vovô afetuoso que, apesar de sua fama, não se dá importância, e a quem todos veneram. Pequeno, com sua bengala sempre na mão, continua a ditar o rumo da corrente teológica que fundou e pela qual foi perseguido por 20 anos. Agora, recebe os reconhecimentos do próprio Papa Francisco e de toda a comunidade teológica mundial. Um dos últimos 'gurus' vivos aposta em Francisco, "um kairós, um grande dom", após participar do I Encontro Ibero-Americano de Teologia, realizado na Boston College.
A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital, 01-03-2017.
Como chegou à Teologia?
Fui uma vocação tardia. Entrei no seminário quando já tinha completado 24 anos e depois de ter estudado Medicina. Quando decidi ser padre, estudei Filosofia e Psicologia em Lovaina e Teologia em Lyon, além de algum curso na Gregoriana de Roma, com o padre Alfaro. Fui ordenado em 1959 e comecei a ensinar e a trabalhar em uma paróquia.
Entrou para dar aulas na Faculdade de Teologia?
Não. Nunca estive na Faculdade de Teologia. Não queriam saber de mim nela. Dava aulas na Universidade Católica, mas não na Faculdade de Teologia. Na verdade, minha primeira nomeação para ensinar em uma Faculdade de Teologia data de apenas 12 anos, nos EUA. Na velhice, catapora. Há anos, passo três meses na Universidade de Notre Dame.
O que recorda do seu trabalho pastoral na paróquia?
Continuo trabalhando na paróquia. Nunca a deixei. Na verdade, já conheci duas gerações de paroquianos. Adoro o trabalho paroquial e, ao mesmo tempo, sou apaixonado pela Teologia. Por isso, às vezes, tive dificuldades para conciliar ambas as coisas na minha vida. Gosto de ensinar, mas não em tempo integral. Sou padre pároco.
Esperava a repercussão de seu livro sobre a Teologia da Libertação?
Nunca pensei que a publicação desse livro faria tanto barulho.
E logo começaram seus 'problemas' com Roma.
Fiquei muitos anos em diálogo com a Doutrina da Fé. 20 anos de diálogo. Sempre fui uma nulidade em Direito Canônico, mas aprendi a diferenciar o diálogo do processo. Fui forçado ao diálogo, mas nunca me abriram um processo. Por isso, quando os jornalistas me perguntam se o Papa vai me reabilitar, sempre respondo que ele não pode me reabilitar, porque nunca fui desabilitado. Isso sim, houve uma enxurrada de cartas e idas e vindas.
No entanto, sempre se diz que o senhor foi condenado por Roma.
Os meios de comunicação têm uma força enorme e esses clichês, divulgados erroneamente, tendem a permanecer e cristalizar nas pessoas. Há alguns meses, uma senhora, após assistir à missa que celebrei, se aproximou e me disse: 'Pensei que tinha sido proibido de celebrar'.
O que pensa do Papa Francisco?
É um momento de 'kairós' que ninguém esperava. Um grande dom. Ele vai ao essencial da mensagem cristã, ao frescor do Evangelho. Além disso, é muito valente. Embora alguns peçam mais dele, mas esses estão loucos. Francisco é uma bênção, tem claríssima a solidariedade com o pobre, as pessoas o entendem e, além disso, ele tem senso de humor e faz piadas, além de sua impressionante capacidade de criar metáforas. Estou disposto a apoiar o Papa a fundo, dentro das minhas possibilidades.
Como aproveitar este kairós?
A reforma da Igreja exige a mudança da Cúria, que detesta o Papa.
Há resistências contra Francisco?
Só conhecemos 10% das resistências. Os outros 90% estão ocultos, mas ele sabe disso e tem uma fibra muito forte. O Papa precisa de muito apoio, porque enfrenta problemas. Até há cardeais que criticam publicamente o Papa, algo nunca visto em nossa época e uma prova evidente das resistências que ele tem que enfrentar.
O que podem fazer os que o apoiam?
Sustentá-lo e torná-lo presente na Igreja. Porque este excelente momento e este dom que o Papa representa nos exige uma tarefa. É preciso ter uma visão ampla de Igreja. É necessário preparar a continuidade. E manter-se firmes. Falta uma bem-aventurança: 'bem-aventurados os teimosos, porque deles é o Reino dos céus'.
O senhor se encontrou pessoalmente com Francisco?
Sim, mas não quisemos dar publicidade a esse encontro.
Em que está trabalhando?
Tenho um livro terminado, mas sem revisar.
O título?
Isso não se diz, dá azar.
Sobre qual tema?
Sobre o pobre e a situação teológica. O livro e o título girarão em torno desta frase: 'Perto do pobre, perto de Deus'. Temos que resolver a questão da pobreza. A pobreza é morte precoce e injusta. A pobreza destrói pessoas e famílias. A pobreza nunca é boa, nunca. Como diz Hannah Arendt, 'o pobre é aquele que não tem direito de ter direitos'. Por isso, o compromisso com o pobre não pode evitar a denúncia das causas da pobreza.
As pessoas se aburguesaram?
As pessoas se cansam. Um cansaço que ocorre muito na política. Mas também é preciso levar em conta a experiência do martírio. Há pessoas que deram suas vidas. Por exemplo, Enrique Pereira Neto, que foi assassinado aos 28 anos por defender os pobres. A Igreja deveria abrir uma nova linha de santidade: os santos das causas sociais. O primeiro, Dom Romero.
Que lugar ocupa a espiritualidade na prática teológica da TdL?
É fundamental, entendida como um estilo de vida e uma maneira de ser. Como dizia Chenu, 'é a espiritualidade que está por trás da teologia'. Espiritualidade como comportamento e como prática. A mensagem cristã é como carne congelada: está lá, mas não pode ser comida. É preciso descongelá-la, ou seja, colocá-la na realidade. Como diz Simone Weil, 'se quer saber se uma pessoa acredita em Deus, não veja o que ela diz sobre Ele, mas o que diz sobre o mundo'. Ou como assinala Nicolás Berdiaeff, 'se eu tenho fome, é um problema material. Se outra pessoa tem fome, é um problema espiritual para mim'.
Chama a atenção sua amizade com o atual prefeito da Doutrina da Fé, Gerhard Müller.
Após entrar em contato comigo, Müller foi durante 15 anos seguidos dar aulas aos seminaristas do seminário de Cuzco. Nunca vi um teólogo europeu fazer algo parecido. O próprio Müller diz que lá ele se converteu.